Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0891/19.1BEAVR
Data do Acordão:05/24/2023
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CT
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
NÃO TOMAR CONHECIMENTO
MÉRITO DO RECURSO
INEXISTÊNCIA
CONTRADIÇÃO
NORMA JURÍDICA
Sumário:Inexiste contradição de acórdãos legitimadora do conhecimento do mérito do recurso para uniformização de jurisprudência se os arestos em confronto interpretaram e aplicaram restrições legais ao direito à dedução constantes de normas legais diversas: exclusivamente o n.º 3 do artigo 19.º do CIVA, no acórdão recorrido; exclusivamente o n.º 4 do artigo 19.º do CIVA, no acórdão fundamento.
Nº Convencional:JSTA000P31022
Nº do Documento:SAP202305240891/19
Data de Entrada:12/14/2022
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam no Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- Relatório -

1 – A..., LDA., com os sinais dos autos, não se conformando com o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 30 de junho de 2022, dele vem interpor recurso para uniformização de jurisprudência para o Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo, alegando contradição do ali decidido com o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 14 de abril de 2015, rec. n.º 06525/13, quanto a “IVA/FACTURASFALSAS/ÓNUS DA PROVA”.

Conclui as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

1) O recurso foi interposto com fundamento em contradição de Acórdãos, servindo de Acórdão Fundamento o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, 2.º Juízo, datado de 14/04/2015, processo n.º 06525/13, Acto tributário e facto tributário. Noção. IVA. Mecanismo de dedução do IVA, artigo 19.º n.º 4 do CIVA – Princípio do direito à dedução do IVA, publicado em www.dgci.pt.

2) A contradição de Acórdão resulta da existência de soluções opostas relativamente à mesma questão de direito, ou seja, sobre IVA, ónus da prova e faturas falsas.

3) Enquanto no Acórdão recorrido considerou-se que era à impugnante, ora recorrente, quem tinha de provar que as faturas em causa não eram falsas e que à Autoridade Tributária e Aduaneira basta alegar indícios.

4) No Acórdão fundamento, pelo contrário, é afirmado que a Autoridade Tributária e Aduaneira tem de fazer a prova cabal e absoluta de que o recorrente, ou seja, “o sujeito passivo sabia ou devia saber que, com a sua aquisição, participava numa fraude ao IVA”.

5) Contudo, no Acórdão recorrido considerou-se que: «não está em causa a prova cabal e absoluta da simulação de cada fatura, mas apenas a existência de fundados indícios dela quanto a todas as faturas de determinados emissores (artigo 75º, nº 2 a) da LGT). » (página 150 do Acórdão recorrido).

6) Ora, segundo o Acórdão Fundamento, o art. 19.º n.º 4 do CIVA, exige que o sujeito passivo adquirente tenha conhecimento da intenção fraudatória do fornecedor, de não entrega nos cofres do Estado do imposto.

7) Mais, o princípio da neutralidade do IVA impõe a salvaguarda do direito à dedução quando inexistam elementos objetivos que demonstrem que o sujeito passivo sabia ou devia saber que, com a sua aquisição, participava numa fraude ao IVA, matéria cujo ónus da prova compete à A. Fiscal (cfr. art.º 74.º n.º 1 da LGT).

8) E segundo o Acórdão fundamento, “O TJUE tem entendido que não é compatível com o regime do direito à dedução previsto na Diretiva IVA recusar esse direito a um sujeito passivo que não sabia, não lhe sendo exigível que soubesse, que a operação em causa fazia parte de uma fraude, ou que outra operação na cadeia de fornecimento, anterior ou posterior à realizada pelo sujeito passivo, era constitutiva de uma fraude ao IVA”.

9) Pelo que, no Acórdão recorrido, é patente a insuficiência de fundamentação no que se refere ao alegado conhecimento, por parte do sujeito passivo, da falta de estrutura empresarial dos seus fornecedores, vício que equivale a falta de fundamentação, pelo que deverão ser anulados os actos tributários objecto do presente processo, as Liquidações adicionais de Iva 2014.

10) Reiterando o Acórdão fundamento: «Era a A. Fiscal que tinha o ónus da prova dos pressupostos das correcções em sede de regime de dedução de IVA, por si propostas e que fundamentaram as liquidações objecto do presente processo (cfr. art. 74.º n.º 1 da LGT), assim não abalando a presunção de verdade e boa fé das declarações periódicas apresentadas pelo impugnante (cfr. art. 75.º n.º 1 da LGT).

11) Por último, sempre se dirá que o Acórdão recorrido efetuou uma errada interpretação e aplicação dos arts. 19.º n.º 3 e 4 do CIVA, e art. 74.º, 75.º e 77.º da LGT.

12) Em suma, entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento afirma-se a existência da identidade de questão de Direito e da situação de facto e nas duas decisões judiciais em apreço, tais decisões são expressamente opostas sobre a mesma questão fundamental.

Nestes termos, nos melhores de Direito, existindo, assim, identidade de questão de direito e de facto, reafirma-se que têm as decisões proferidas no Acórdão recorrido e no acórdão fundamento sentidos opostos, pelo que existe a referida contradição de Acórdãos, que deverá ser superiormente decidida, a bem da JUSTIÇA!

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 – O Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal Administrativo emitiu douto parecer no sentido do não conhecimento do mérito do recurso porquanto As situações de facto e a matéria de direito na decisão recorrida e na decisão fundamento não são semelhantes, pelo que, não se verificam os requisitos para a admissibilidade do recurso para a uniformização de jurisprudência, sendo nosso parecer que se impõe o seu não conhecimento.

4 – Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


- Fundamentação –

5. Fundamentação de facto

Nos termos do disposto nos arts. 663.º, n.º 6, e 679.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi do art. 281.º do CPPT, remete-se para a matéria de facto constante do acórdão recorrido (fls. 26 a 137 da respectiva numeração autónoma) e do acórdão fundamento.


6 – Apreciando

6.1 Dos requisitos de admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência

Vem o presente recurso para uniformização de jurisprudência interposto do acórdão do TCA proferido nos presentes autos por alegada contradição do ali decidido com o que o foi no acórdão do TCA Sul de 14 de abril de 2015, rec. n.º 6525/13, sobre IVA, ónus da prova e faturas falsas (cfr. conclusão 2 das alegações de recurso).

Importa pois determinar se, como alegado, se verificam os requisitos de que depende o conhecimento do mérito do recurso, a saber, determinar se existe contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão invocado como fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito e ainda, havendo contradição e jurisprudência consolidada sobre a questão, se a decisão impugnada é desconforme à jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo sobre a questão – artigo 284.º n.º 1 e 3 do CPPT.

No que ao primeiro requisito respeita, como tem sido numerosas vezes explicitado pelo Pleno desta Secção relativamente à caracterização da questão fundamental sobre a qual deve existir contradição de julgados, devem adoptar-se os critérios já firmados no domínio do ETAF de 1984 e da LPTA para detectar a existência de uma contradição, quais sejam:

- Identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, que supõe estar-se perante uma situação de facto substancialmente idêntica;

- Que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica;

- Que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta;

- A oposição deverá decorrer de decisões expressas, não bastando a pronúncia implícita ou a mera consideração colateral, tecida no âmbito da apreciação de questão distinta (Acórdãos do Pleno desta Secção do STA de 26 de Setembro de 2007, 14 de Julho de 2008 e de 6 de Maio de 2009, recursos números 452/07, 616/07 e 617/08, respectivamente).

A alteração substancial da regulamentação jurídica relevante para afastar a existência de oposição de julgados verifica-se “sempre que as eventuais modificações legislativas possam servir de base a diferentes argumentos que possam ser valorados para determinação da solução jurídica” (v. Acórdãos do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA de 19 de Junho de 1996 e de 18 de Maio de 2005, proferidos nos recursos números 19532 e 276/05, respectivamente). Por outro lado, a oposição de soluções jurídicas pressupõe identidade substancial das situações fácticas, entendida esta não como uma total identidade dos factos mas apenas como a sua subsunção às mesmas normas legais (cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário: Anotado e Comentado, volume II, 5.ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2007, p. 809 e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 1995, proferido no recurso n.º 87156).

Vejamos.

O acórdão recorrido enunciou como questões a apreciar no recurso quinze (15) questões, nenhuma das quais especificamente respeitante à questão do ónus da prova nos casos de facturas falsas. Não obstante, a propósito da 9.ª questão a decidir – a de saber se «O Mº Juiz a quo errou na apreciação da prova ao não dar por provado que as facturas em causa titulavam aquisições verdadeiras aos respectivos emitentes, apesar de admitir que as aquisições dos bens aí mencionados ocorreram e de não haver outros factos provados que permitissem considerar haver indícios sérios de os emitentes das facturas não terem fornecido os bens facturados», a questão do ónus da prova é chamado à colação e nos termos seguintes:

« (…) Já vimos por que entendemos que a AT se desempenhou cabalmente do seu ónus a que alude o artigo 75º nº 2º alª a) e que foram provados, pela AT, factos, bem para além do mero curriculum de falsário dos emitentes, para esse efeito. Satisfeito, pela AT, esse ónus, passou a ser da Recorrente o ónus de provar a genuinidade das facturas em todos os elementos das operações facturadas: tanto os atinentes ao objecto como os atinentes aos sujeitos, tanto os atinentes à natureza e à qualidade dos bens supostamente adquiridos, como os atinentes a sua quantidade. O inconformismo da Recorrente com a decisão da não prova da genuinidade das facturas supra identificadas reside na aceitação, pelo Mº Juiz a quo, de que ela adquiriu as quantidades de cortiça e rolhas e aparas em causa, o que seria suficiente para a prova da realidade das operações facturadas, ou seria contraditório com o juízo de não prova das mesmas. Contudo, o que, de todo, fica por provar e é posto em dúvida, fundadamente, pela AT e pelo juiz a quo, é que os mesmos bens tivessem sido vendidos pelos emissores das facturas e naqueles quantidade e valores e datas, o que basta para as facturas não terem objecto real. Aliás, o autor do RIT sustenta que, para a Recorrente, se tratava, ao menos em relevante medida, de um modo de ocultar aquisições no mercado “informal”, isto é, não declaradas ao Fisco, e subtrair ao IVA o valor tributável das mesmas, pelo que não há qualquer incoerência em aceitar, a um tempo, a realidade, em geral, das aquisições, e a falsidade das facturas. Como assim, julgamos ser de manter o julgamento da 1ª Instância na matéria em causa nesta questão, pelo que tão pouco por esta via o recurso procede» (destacados nossos).

O acórdão sindicado confirmou, pois, o julgado de 1.ª instância no sentido da licitude da desconsideração do direito à dedução do IVA constante das facturas reputadas como falsas exercido pela recorrente porquanto resulta do n.º 3 do artigo 19.º do CIVA que Não poderá deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura ou documento equivalente.

Por sua vez, no acórdão-fundamento, estava especificamente em causa a interpretação e aplicação do disposto no n.º 4 do artigo 19.º do Código do IVA, invocado no Relatório da inspecção como fundamento para a desconsideração do IVA deduzido, nos termos do qual “Não poderá igualmente deduzir-se o imposto que resulte de operações em que, com conhecimento do sujeito passivo, o transmitente dos bens ou prestador dos serviços, com a intenção de não entregar nos cofres do Estado o imposto liquidado, tenha declarado o exercício de uma actividade e não disponha de adequada estrutura empresarial susceptível de a exercer.”

Foi a propósito da aplicação desta disposição, a única norma interpretanda na decisão fundamento, que o TCA consignou o entendimento seguinte:

»(…) artº.19, nº.4, do C.I.V.A., na redacção do dec.lei 31/2001, de 8/2, consagrava limitações ao direito à dedução do I.V.A., ao impedir a dedução de imposto nos casos de inexistência ou desadequação da estrutura empresarial do fornecedor ou prestador à actividade desenvolvida, se não ocorrer o pagamento do imposto ao Estado. Exige a lei, para este efeito, que o sujeito passivo adquirente tenha conhecimento da intenção fraudatória do fornecedor, de não entrega nos cofres do Estado do imposto. Mais se dirá que o princípio da neutralidade do I.V.A. impõe a salvaguarda do direito à dedução quando inexistam elementos objectivos que demonstrem que o sujeito passivo sabia ou devia saber que, com a sua aquisição, participava numa fraude ao I.V.A.//Neste âmbito, o TJUE tem entendido que não é compatível com o regime do direito à dedução previsto na Directiva I.V.A. recusar esse direito a um sujeito passivo que não sabia, não lhe sendo exigível que soubesse, que a operação em causa fazia parte de uma fraude, ou que outra operação na cadeia de fornecimento, anterior ou posterior à realizada pelo sujeito passivo, era constitutiva de uma fraude ao I.V.A. (cfr.Clotilde Celorico Palma e Outros, Código do IVA e RITI, Notas e Comentários, Almedina, 2014, pág.242).

No caso "sub judice", conforme constatou o Tribunal "a quo", deve retirar-se, do exame da factualidade provada (cfr.nº.1 do probatório), que no relatório de inspecção não é explicitada a forma como se chegou à conclusão de que o impugnante tinha conhecimento das "infracções cometidas", ou seja, de que os seus fornecedores não dispunham de adequada estrutura empresarial.
Mas, adianta também este Tribunal, do probatório não pode, de todo, retirar-se o desfecho de que o impugnante e ora recorrido tinha conhecimento da intenção fraudatória dos fornecedores
(AA………………………… e BB………………………), de não entrega nos cofres do Estado do imposto, conforme exigia a lei no examinado artº.19, nº.4, na redacção do dec.lei 31/2001, de 8/2.
E recorde-se que era a A. Fiscal que tinha o ónus da prova dos pressupostos das correcções em sede de regime de dedução de I.V.A. por si propostas e que fundamentaram as liquidações objecto do presente processo
(cfr.artº.74, nº.1, da L.G.T.), assim não abalando a presunção de verdade e boa fé das declarações periódicas apresentadas pelo impugnante (cfr.artº.75, nº.1, da L.G.T.).
Por último, sempre se dirá que a decisão recorrida não efectuou uma errada interpretação e aplicação dos artºs.19, nº.3 e 4, do C.I.V.A., e 77 da L.G.T. (
devendo vincar-se que o nº.3, do artº.19, do C.I.V.A., não é objecto de apreciação por este Tribunal, visto que as liquidações impugnadas somente se basearam no nº.4 da mesma norma - cfr. nº. 1 do probatório).» (sublinhados nossos).

Ou seja, embora em ambos os arestos estejam em causa recursos de decisões proferidas em impugnações judiciais de liquidações adicionais de IVA resultantes da desconsideração pela AT de deduções de imposto com fundamento na falsidade das facturas, as correcções em causa num e noutro processo tiveram fundamento legal diverso - exclusivamente o n.º 3 do artigo 19.º do CIVA, no acórdão recorrido (cfr. o n.º 5 do probatório fixado – pp. 28 da numeração autónoma do acórdão); exclusivamente o n.º 4 do artigo 19.º do CIVA, no acórdão fundamento -, razão pela qual, para além da diversidade de enquadramento fáctico das situações em confronto, não há identidade de questão decidenda, porquanto o quadro jurídico de referência é diverso.

Não há, pois, contradição entre os arestos, o que obsta ao conhecimento do respectivo mérito.

Concluindo:

Inexiste contradição de acórdãos legitimadora do conhecimento do mérito do recurso para uniformização de jurisprudência se os arestos em confronto interpretaram e aplicaram restrições legais ao direito à dedução constantes de normas legais diversas (exclusivamente o n.º 3 do artigo 19.º do CIVA, no acórdão recorrido; exclusivamente o n.º 4 do artigo 19.º do CIVA, no acórdão fundamento).

- Decisão -

7 – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em não tomar conhecimento do mérito do recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 24 de maio de 2023. - Isabel Cristina Mota Marques da Silva (relatora) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - José Gomes Correia - Joaquim Manuel Charneca Condesso - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Gustavo André Simões Lopes Courinha - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Pedro Nuno Pinto Vergueiro.