Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0759/06
Data do Acordão:11/15/2006
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:BRANDÃO DE PINHO
Descritores:IRS.
REINVESTIMENTO.
AUDIÊNCIA PRÉVIA.
FUNDAMENTAÇÃO DO ACTO TRIBUTÁRIO.
Sumário:I – Nos termos do n.º 2 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária, a audição é dispensada “no caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável”.
II – Tendo o contribuinte feito constar na sua declaração de rendimentos, relativa ao ano de 1998, a venda de um prédio e a intenção de reinvestir o respectivo preço, a liquidação adicional, efectuada com base na falta de declaração, nos dois anos seguintes, desse reinvestimento, não precisa de ser precedida da audição do contribuinte nos termos dos n.os 1, alínea a), e 2 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária.
III – É suficiente, no caso dos autos, afirmar-se que o acto de liquidação adicional teve por fundamento "a falta de reinvestimento do valor de realização no montante de 49.879,79 € constante do anexo G da declaração de rendimentos do referido ano de mil novecentos e noventa e oito”, já que o recorrente, depois de invocar a sua intenção de reinvestir o ganho proveniente da transmissão onerosa de imóvel destinado a habitação, não podia ignorar que teria que demonstrar a realização desse reinvestimento para se aproveitar da situação de não tributação prevista no n.º 5 do artigo 10.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção dada pela Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março.
Nº Convencional:JSTA00063680
Nº do Documento:SA2200611150759
Data de Entrada:07/04/2006
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF DE PENAFIEL.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR FISC - IRS.
Legislação Nacional:LGT98 ART60 N1 A ART60 N2 ART77.
CIRS88 ART10 N5.
CPPTRIB99 ART99 C.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC742/03 DE 2004/05/26.
Referência a Doutrina:PEDRO MACHETE PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO PAG322-324.
LEITE DE CAMPOS E OUTROS LEI GERAL TRIBUTÁRIA ANOTADA 2ED PAG254.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
A... vem recorrer da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel que julgou improcedente a impuganção judicial que deduzira contra liquidação adicional de IRS, relativa ao ano de 1998.
Fundamentou-se a decisão em que, por um lado, “não era devida no caso vertente, por expressa dispensa da lei, a audiência prévia”, uma vez que, nos termos do artigo 60.º, n.º 2, 1.ª parte, da Lei Geral Tributária, “é dispensada a audição no caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte” e, por outro, que inexiste “falta ou insuficiência da fundamentação” do acto de liquidação.
O recorrente formulou as seguintes conclusões:
A) A douta sentença sob recurso, ao ter como legalmente dispensada a audição do recorrente antes da liquidação impugnada, interpretou e aplicou erradamente o preceituado no artigo 60.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, primeira parte, da LGT.
B) A mesma douta sentença, ao ter por não verificado o vício de fundamentação da liquidação impugnada, incorre em erro de julgamento.
Nestes termos e nos demais de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida e a procedência da impugnação, como é de Justiça.
Não houve contra-alegações.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido do provimento parcial do recurso, já que “no caso subjudice não haveria lugar à dispensa de audição prévia, mostrando-se preterido o exercício do respectivo direito” mas “no mais, e quanto à verificação do vício de falta de fundamentação da liquidação impugnada, o recorrente não ataca verdadeiramente a decisão recorrida”.
E, colhidos os vistos legais, nada obsta à decisão.
Em sede factual, vem apurado que:
I - Em 30 de Abril de 1999 o impugnante apresentou a sua declaração de rendimentos modelo 3, respeitante ao IRS do ano de 1998, fazendo constar do respectivo anexo G a alienação onerosa do prédio "...", em 7 de Julho de 1998, bem como a intenção de reinvestir o preço da venda - a saber: esc. 10 000 000$00 (fls. 7 e 23 do processo administrativo apenso aos autos);
II - Através do ofício n.° 024 327, de 5 de Junho de 2002, da Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares, foi ordenado à Direcção de Finanças do Distrito do Porto, relativamente a seis contribuintes, entre os quais se contava o ora impugnante, que provocasse a liquidação adicional de IRS do ano de 1998, mediante o preenchimento oficioso e a recolha de declarações oficiosas do tipo 6 - "outros", por se verificar o não reinvestimento integral do valor da realização (fls. 16 a 17 do processo administrativo);
III - Nas declarações de IRS relativas aos anos de 1999 e 2000, com base nas quais foi feita a liquidação adicional, não fez constar qualquer reinvestimento nem consta o anexo G entre os documentos apresentados (fls. 18, 23, 24 e 25 do processo administrativo);
IV - Em 2002 foi emitida a liquidação adicional n.° ... relativa ao IRS de 1998, no montante de € 9 340,60 (fls. 4, verso, do processo administrativo);
V - Que o ora impugnante pagou em 27 de Dezembro de 2002 no processo de execução fiscal n.° ... ao abrigo do Decreto-Lei n.° 248-A/2002, de 14 de Novembro (fls. 18 do processo administrativo);
VI - E contra a qual não apresentou reclamação graciosa (fls. 18 do processo administrativo);
VII - Em 17 de Outubro de 2002, foi emitida pelo Serviço de Finanças de Baião certidão atestando que a liquidação referida supra em IV deste probatório "teve por base a falta de reinvestimento do valor de realização no montante de 49.879,79 € constante do anexo G da declaração de rendimentos do referido ano de mil novecentos e noventa e oito” (fls. 6 do processo administrativo).
Vejamos, pois:
As questões decidendas são:
I. A de saber se, tendo o contribuinte feito constar na sua declaração de rendimentos, relativa ao ano de 1998, a venda de um prédio e a intenção de reinvestir o respectivo preço, a liquidação adicional, efectuada com base na falta de declaração, nos dois anos seguintes, desse reinvestimento, precisa, ou não, de ser precedida da audição do contribuinte nos termos dos n.os 1, alínea a), e 2 do artigo 60.º da Lei Geral Tributária; e
II. A de saber se a liquidação adicional se encontra fundamentada.
I. Quanto à dispensa da audição do contribuinte.
Nos termos do artigo 60.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, encontra-se assegurada “a participação dos contribuintes na formação das decisões que lhe digam respeito”, através do exercício do direito de audição, “sempre que a lei não prescrever em sentido diverso”.
Ora, por força do n.º 2 deste artigo 60.º, a audição é dispensada “no caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável”.
Ou seja: o artigo 60.º da LGT, epigrafado “princípio da participação”, obriga a administração tributária a ouvir o contribuinte antes de tomar decisões que o afectem, sendo que, nos termos do seu n.º 1, por via de regra, a participação do contribuinte é assegurada através do exercício do direito de audição. Pretendeu, deste modo, o legislador fiscal concretizar o princípio constitucional da “participação dos cidadãos nas decisões ou deliberações que lhes disserem respeito” (artigo 265.º, n.º 5, da Constituição), criando uma disposição legal que evita que o contribuinte sofra uma decisão desfavorável da administração tributária sem que tenha previamente oportunidade de expor a sua opinião.
Ora, a ratio deste preceito não é prejudicada pela excepção constante do n.º 2 do mesmo artigo 60.º da LGT. Aliás, bem se compreende que não seja necessária a audição do contribuinte quando “a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável” (segunda parte deste último inciso normativo). E, do mesmo modo, a participação do contribuinte também não sai prejudicada, por não poder exercer o direito de audição, que é dispensado pela lei, “no caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte” – artigo 60.º, n.º 2, primeira parte, da LGT.
É que, nesta última situação, a intervenção da administração tributária é também realizada de acordo com o declarado pelo contribuinte. Daí que a lei “dispense” o direito de audição, já que o conteúdo deste direito seria idêntico ao conteúdo da declaração ao abrigo da qual a administração tributária age.
Cfr. Pedro Machete, Problemas Fundamentais de Direito Tributário, pp. 322-324, e Diogo Leite Campos e outros, Lei Geral Tributária anotada, 2.ª edição, p. 254.
Como escrevem estes últimos autores, “nos termos do n.º 2, nos casos de liquidação, a audiência poderá ser dispensada se aquela for efectuada ‘com base na declaração do contribuinte’. Por força do referido reconhecimento constitucional do direito de audiência, a audição não pode ser dispensada quando se decidir em sentido divergente da posição do contribuinte e em sentido desfavorável em relação a esta posição.
Por isso, aquela fórmula ‘com base na declaração do contribuinte’ deve ser interpretada com o alcance de apenas dispensar a audição quando a liquidação for efectuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspectos factual e jurídico. Consequentemente, nos casos em que a liquidação seja elaborada com base nos elementos factuais constantes da declaração do contribuinte, mas com diferente enquadramento jurídico, não poderá dispensar-se a audição do contribuinte antes de efectuar a liquidação”.
Ora, na declaração de rendimentos relativa ao ano de 1998, o recorrente declarou a intenção de reinvestir o produto da alienação de um imóvel na aquisição de outro.
Sendo que, nos termos do n.º 5 do artigo 10.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção dada pela Lei n.º 10-B/96, de 23 de Março, “são excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação do sujeito passivo ou do seu agregado familiar” se – alínea a) – “no prazo de 24 meses contados da data da realização, o produto da alienação for reinvestido na aquisição de outro imóvel, de terreno para a construção de imóvel, ou na construção, ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino, e desde que esteja situado em território português”.
Assim, para beneficiar da exclusão da tributação, o recorrente deveria demonstrar, “no prazo de 24 meses”, que havia reinvestido o valor realizado na venda.
Não bastava, pois, a mera intenção de reinvestir, constante na declaração de rendimentos relativa ao ano de 1998.
Contudo, nas declarações de 2000 e de 2001, o recorrente não demonstrou ter efectuado tal reinvestimento, pois que não apresentou o competente anexo G, motivando a liquidação adicional.
Que, assim, se efectuou “com base nas declarações do contribuinte” de 1999, 2000 e 2001, pelo que, nos termos do artigo 60.º, n.º 2, da LGT, não era necessária, por dispensada, a sua audição.
II. Quanto à Fundamentação do Acto de Liquidação.
Dispõe o artigo 77.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária, epigrafado “Fundamentação e eficácia”, que “a decisão do procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”.
Por outro lado, o n.º 2 do mesmo artigo determina que “a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.
Exige-se, pois, em geral, a fundamentação dos actos administrativos – cfr. art. 124.º do CPA – e tributários.
Aliás, o referido direito, com relação aos actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos, constitui, hoje, princípio constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias enunciados no título II da parte 1.ª da Constituição da República – artigo 268.º da Constituição.
A fundamentação há-de ser expressa, através duma exposição sucinta dos fundamentos de facto e de direito da decisão; clara, permitindo que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide; suficiente, possibilitando ao administrado ou contribuinte, um conhecimento concreto da motivação do acto, ou seja, as razões de facto e de direito que determinaram o órgão ou agente a actuar como actuou; e congruente, de modo que a decisão constitua conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação, envolvendo entre eles um juízo de adequação, não podendo existir contradição entre os fundamentos e a decisão.
Podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anterior parecer, informação ou proposta, que, neste caso, constituirão parte integrante do respectivo acto (fundamentação por adesão ou remissão).
Pelo que, em tal caso, o despacho integra nele próprio o parecer, informação ou proposta que, assim, em termos de legalidade, terão de satisfazer os mesmos requisitos da fundamentação autónoma.
Por outro lado, é equivalente à falta de fundamentação, a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareça, concretamente, a motivação do acto.
A violação destes requisitos da decisão implica a respectiva ilegalidade, fundamento de subsequente anulação, em sede de impugnação judicial da correspondente liquidação – artigo 99.º, alínea c), do Código de Procedimento e Processo Tributário.
Assim, a fundamentação é um conceito relativo que varia em função do tipo legal de acto, visando responder às necessidades de esclarecimento do administrado, pelo que se deve, através dela, informá-lo do itinerário cognoscitivo e valorativo do acto, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática e por que motivo se decidiu num sentido e não noutro.
Pelo que um acto está fundamentado sempre que o administrado, como destinatário normal, ficar devidamente esclarecido acerca das razões que o determinaram estando, consequentemente, habilitado a impugná-lo convenientemente, não tendo, todavia, a fundamentação de ser exaustiva mas acessível, no sentido de explícita.
Cfr., por todos, o Ac. do STA de 26/05/2004 rec. 742/03.
O dever legal da fundamentação tem, a par de uma função exógena - dar conhecimento ao administrado das razões da decisão, permitindo-lhe optar pela aceitação do acto ou pela sua impugnação -, uma função endógena consistente na própria ponderação do ente administrador, de forma cuidada, séria e isenta.
Ora, na hipótese sub judice, a liquidação em causa foi efectuada com base em documentos fornecidos pelo contribuinte – as suas declarações de rendimentos relativas aos anos de 1998, 1999 e 2000.
Elementos que a Administração aceitou, tomando como válido o quantitativo expresso na declaração de 1999 – cfr. ponto I do probatório – e procedendo a uma liquidação adicional que “teve por base a falta de reinvestimento do valor de realização no montante de € 49.879,79 constante do anexo G da declaração de rendimentos do referido ano de mil novecentos e noventa e oito” – cfr. ponto VII do probatório.
Sustenta o recorrente – 10.ª alegação – que “o único motivo invocado para a liquidação é o facto de não se verificar o reinvestimento integral do valor de realização, motivo este que, para um qualquer destinatário médio, não é apreensível e esclarecedor a ponto de terem-se por satisfeitas as exigências de fundamentação legalmente estabelecidas”.
Mas, como se afirma na decisão ora em crise, “ao manifestar expressamente, no anexo G da declaração de rendimentos, a intenção de reinvestir, o impugnante sabia que o podia fazer ao abrigo de uma determinada norma legal cujos pressupostos de aplicação conhecia. Sabia, por via disso, igualmente, as consequências do não reinvestimento no prazo legal”. Aliás, no artigo 8.º da petição inicial, o ora recorrente afirma que “a liquidação desconsidera a declaração do impugnante no que respeita ao reinvestimento, desaplicando o disposto no artigo 10.º, n.º 5, do CIRS”, pelo que o Tribunal a quo entendeu que o impugnante, ora recorrente, “revela perfeito conhecimento do fundamento de direito da liquidação”.
Com efeito, não se vê como seja possível o recorrente não estar ciente das razões e factos que deram causa à liquidação, logo em face do respectivo teor: se conhece os pressupostos da não tributação dos ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóvel destinado a habitação – pois que externou, no dito modelo G, a intenção de reinvestir -, não pode ignorar as consequências da falta de reinvestimento no prazo de 24 meses contados da data da realização – cfr. artigo 10.º, n.º 5, alínea a), do CIRS -, falta que esteve na base da liquidação.
Assim, em termos de fundamentação do acto e dadas as expressas circunstâncias em que foi praticado, tem-se a mesma por suficiente - conceito relativo que é, nos apontados termos.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente com procuradoria de 50%.
Lisboa, 15 de Novembro de 2006. Brandão de Pinho (relator) – Lúcio Barbosa – Jorge Lino.