Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0125/20.6BESNT
Data do Acordão:07/15/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:ANULAÇÃO DA VENDA
ERRO
Sumário:I - O desconhecimento pelo anunciante das qualidades anunciadas não obsta à anulação da venda com fundamento em falta de conformidade com o que foi anunciado;
II - A boa-fé do anunciante não obsta à anulação da venda com fundamento em falta de conformidade com o que foi anunciado;
III - Não incorre em abuso de direito quem requer a anulação da venda de bem que não tem as qualidades que, tendo sido anunciadas pelo órgão de execução fiscal, não confirmou previamente junto de entidades externas competentes.
Nº Convencional:JSTA000P26221
Nº do Documento:SA2202007150125/20
Data de Entrada:06/25/2020
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, LDA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. Relatório

1.1. O Representante da Fazenda Pública recorre da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou procedente a reclamação da decisão do indeferimento tácito do pedido de anulação da venda n.º 3433.2019.48, efetuada na execução fiscal n.º 3433201501082558 e apensos, que no Serviço de Finanças de Cascais 2 corre termos contra B…….., contribuinte fiscal n.º ………, por reversão de dívida de C…….., Lda., contribuinte fiscal n.º ………...

Reclamação esta que tinha sido deduzida por A………., Lda., contribuinte fiscal n.º ………, com sede no lugar ponto do ………, s/n, 3240-………..

Com a interposição do recurso apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões: «(…)

I. Veio a Reclamante, acima melhor identificada, interpor reclamação ao abrigo do artigo 276.º do CPPT, do despacho do interpor reclamação ao abrigo do artigo 276.º do CPPT, contra o indeferimento tácito do pedido de anulação da venda identificada com o n.º 3433.2019.48, com referência ao imóvel penhorado no âmbito do PEF n.º 3433201501082558 e aps, instaurado no Serviço de Finanças de Cascais – 2. Por sentença datada de 16-04-2020, veio a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo conceder provimento à Reclamação apresentada e, consequentemente, anular o despacho reclamado e por consequência a referida venda judicial, considerando haver erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o que legitimaria o pedido de anulação de venda formulado pela Reclamante.

II. Dos factos dados como provados decorre que a atuação do Órgão de Execução Fiscal foi sempre pautada pelos princípios fundamentais que regem a atuação da administração pública, tendo o procedimento de venda judicial do bem imóvel subjacente aos autos o respeitado o núcleo essencial quer do princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos previsto no art.º 4.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) quer do princípio da boa-fé previsto no art.º 10º deste mesmo diploma.

III. À luz do primeiro destes princípios, decorre que venda judicial sub judice foi anunciada com os elementos que eram do conhecimento oficioso do Órgão de Execução Fiscal, designadamente por conter a descrição do imóvel que figurava na matriz predial e que sempre foram considerados para efeitos tributários. O teor do anúncio de venda judicial veiculava claramente os elementos previstos nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 91º do Código do Imposto Municipal e que dão forma às matrizes urbanas, sendo do mesmo perceptível que a entidade anunciante desconhecia os condicionalismos jurídico-urbanísticos do bem penhorado, constando do anúncio de venda a ressalva de os eventuais interessados deverem inteirar-se das qualidades e características relevantes, licenças e outros aspectos que considerassem relevantes acerca do bem imóvel, alertando que o desconhecimento destas qualidades e características não seriam fundamento para anulação do procedimento de venda. Tal ressalva teve em vista acautelar os interesses e direitos de todos os interessados, visando prevenir a apresentação de propostas para a aquisição de um bem que posteriormente se mostrasse inútil ou de pouco valor perante as expectativas do apresentante da proposta vencedora.

IV. Já no que respeita ao princípio da boa-fé, este deve nortear quer a atuação da administração pública quer dos particulares, exigindo de ambos um relacionamento marcado por lealdade e confiança recíproca na celebração dos negócios jurídicos. E no caso concreto, o Órgão de Execução Fiscal deu a conhecer os elementos de que dispunha para convidar os eventuais interessados a contratar ou, mais propriamente, a apresentar propostas no leilão electrónico, tendo advertido os interessados de duas circunstâncias fundamentais que deveriam influenciar a decisão destes em apresentar ou não as suas propostas: por um lado, a administração fiscal não dispunha da posse efectiva do bem, e por outro, os interessados deveriam com antecedência relativamente à apresentação da proposta buscar as informações que considerassem relevantes sobre o bem junto das entidades competentes. Resulta, com efeito, que toda a atuação da administração fiscal no procedimento de venda judicial do bem penhorado foi transparente e ajustada aos variados interesses contrapostos.

V. Ao abrigo da al. d) do art.º 2º do Código de Procedimento e Processo Tributário, os supra referidos princípios da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos e princípio da boa-fé constituem-se como parâmetros interpretativos do direito a requerer a anulação da venda que consta do artigo 257º do mesmo CPPT. A desconsideração de tais princípios por qualquer dos sujeitos intervenientes no procedimento administrativo-tributário em causa nos presentes autos, pode ter como consequência um uso ilegítimo dos direitos que emergem da relação jurídica dele resultante.

VI. O anúncio de venda do bem imóvel continha a descrição sumária do bem com os elementos que eram do conhecimento oficioso da administração fiscal, em estrito cumprimento do disposto no n.º 5 do art.º 249º do CPPT, mais contendo as precauções que os interessados deveriam ter em consideração antes de apresentarem as suas propostas. A atuação da administração fiscal para além das normas legais aplicáveis teve sempre na sua base os variados princípios que devem reger a actividade administrativa. A Reclamante recorrida, exercendo o direito de requerer a anulação da venda judicial, ainda que formalmente estivessem preenchidos os requisitos para obter esta anulação, fê-lo em notória desconsideração do princípio da boa-fé. O uso abusivo deste direito deve ter como consequência a sua desconsideração, pois foram excedidos os limites aceitáveis do seu exercício.

VII. O Tribunal a quo, incorrendo em erro de julgamento, consubstanciado na incorreta apreciação e valoração da matéria factual à luz do Direito e dos princípios jurídicos aplicáveis ao caso dos autos, fez tábua rasa do princípio da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos previsto no art.º 4.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) bem como do princípio da boa-fé previsto no art.º 10º deste mesmo diploma, e assim interpretou mal o artigo 257º do CPPT, permitindo o exercício abusivo do direito aí previsto, motivo pelo qual a sentença que assim decidiu não se pode manter na ordem jurídica.

Pediu fosse concedido provimento ao recurso e fosse revogada a decisão recorrida, com as legais consequências.

O Recorrido apresentou contra-alegações, que resumiu nas seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto pela Fazenda Pública da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra – Unidade Orgânica 1 que julgou procedente, por provada, a Reclamação apresentada contra actos do órgão de execução fiscal (pedindo anulação de venda de imóvel).

2. A recorrente sustentou o seu recurso essencialmente no seguinte:

a) Que toda atuação plasmada no probatório permite identificar no procedimento de venda judicial do bem imóvel subjacente aos autos o respeito pelos traços essenciais quer do princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos previsto no art.º 4º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) quer do principio da boa-fé previsto no art.º 10º deste mesmo diploma.

b) O anúncio da venda do bem imóvel continha a descrição sumária do bem com os elementos que eram do conhecimento oficioso da administração fiscal, em estrito cumprimento do disposto no n.º 5 do art.º 249º do CPPT.

3. No leilão electrónico aqui em causa, a Autoridade Tributária anunciou a “venda de um lote de terreno para construção”; ora, conforme ficou provado no processo, “o terreno objecto da venda judicial não pode ser considerado um lote, por não se encontrar inserido num loteamento, e não tem aptidão construtiva, por se encontrar totalmente abrangido pela RAN.”

4. Existe, por isso, uma completa desconformidade entre o objecto transmitido e as características anunciadas, como sublinhou, no processo, o Digno Magistrado do Ministério Público, sendo este, um dos fundamentos que habilita o comprador a obter a anulação da venda judicial.

5. Falar-se, como faz a Recorrente, em protecção dos direitos e interesses dos cidadãos ou em boa fé, face a toda a matéria provada nos autos, parece-nos e salvo o devido respeito, um manifesto abuso de direito da Autoridade Tributária ao insistir na manutenção de uma transmissão baseada em informação incorreta e que já trouxe graves prejuízos à Reclamante.

6. Ainda quanto ao anúncio sub judicio, diz a Fazenda Pública que o mesmo continha informação sumária e que a mesma era do conhecimento oficioso da administração fiscal.

7. Ao invés, como muito bem entendeu o Tribunal recorrido, “…é irrelevante, para efeitos de anulação, o entendimento subjectivo do comprador sobre as qualidades do objecto, só podendo a venda ser anulada se for de entender que o objecto transmitido não tinha as características que foram anunciadas” – daí “…a importância que os anúncios e editais assumem na venda”.

8. Mais diz a sentença recorrida que, “…sendo estes os meios previstos para assegurar aos interessados em adquirir a informação sobre as características do bem a vender, impõe-se que daqueles resulte informação rigorosa e suficiente, capaz de fundar a formação de vontade do comprador.”

9. Diz ainda a Fazenda Pública que advertiu “os interessados a contratar ou, mais propriamente, a apresentar propostas no leilão electrónico” de que “a administração fiscal não dispunha da posse efectiva do bem, e por outro os interessados deveriam com antecedência relativamente à apresentação da proposta buscar as informações que considerassem relevantes sobre o bem junto das entidades competentes”.

10. Quanto a esta matéria, além de entender que a informação publicada era a necessária e suficiente (lote de terreno para construção), a Reclamante subscreve o entendimento do Tribunal recorrido:

“Assim, ainda que o anúncio tenha alertado para a necessidade de os interessados se inteiram previamente das qualidades e características, licenças e outros aspectos que considerem relevantes, o certo é que tal não afasta o dever de a entidade que promove a venda anunciar, de modo correcto e preciso, as características e qualidades do bem a vender. Com efeito, na fase pré-contratual nascem, desde logo, para as partes deveres de protecção, de informação e de lealdade, cujo cumprimento cria a confiança que está na base da celebração do negócio, devendo as partes prevenir lesões ou desvantagem reciprocas.”

11. Do que vem dito, resulta claramente que o anúncio de venda publicado pela Fazenda Pública induziu em erro a Reclamante, que, se conhecesse a real situação do terreno (inserido na RAN) nunca o teria licitado.

12. A manutenção da transação contrariaria elementares princípios de direito e representaria para a Reclamante o inaceitável agravamento dos prejuízos que já sofreu (pagou o preço de um lote para construção, quando, de facto, se trata de um terreno agrícola), dado que nunca poderia rentabilizar o seu investimento construindo o quer que fosse no local.».

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

1.2. Remetidos os autos a este tribunal, foram com vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer, onde concluiu que o presente recurso não merece provimento.

Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir.



2. Dos fundamentos de facto

O tribunal de primeira instância julgou provados os seguintes factos: «(...)

A. Por despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Cascais – 2, proferido a 23.08.2018, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 3433201501082558 e aps., foi ordenada a venda na modalidade de leilão electrónico do seguinte bem: Lote de terreno, destinado a construção, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ……, Concelho de Albufeira, distrito de Faro, com o art.° 3267, que deu origem ao procedimento de venda n.º 3433.2018.61 (provado por documento, a fls. 22 dos autos, referências ao suporte físico);

B. Em 06.12.2018, foi aberto o leilão electrónico, tendo-se verificado a existência de 9 propostas (provado por documento, a fls. 22 dos autos);

C. O imóvel descrito em A. foi adjudicado à melhor proposta, que foi apresentada pela D…….., Lda., pelo valor de € 125.810,00 (provado por documento, a fls. 22 dos autos);

D. Não tendo o adjudicatário efectuado o depósito do preço e constatada uma discrepância de valores muito grande entre a primeira e segunda propostas, por despacho datado de 20.02.2019, foi determinada a anulação do procedimento de venda (provado por documento, a fls. 22 dos autos);

E. Por despacho de 25.02.2019, foi marcada nova venda, na mesma modalidade, dando-se início ao procedimento de venda n.º 3433.2019.48, com abertura das propostas para o dia 02.05.2019 (provado por documento, a fls. 28 dos autos);

F. Na sequência do despacho referido na alínea antecedente, o Serviço de Finanças de Cascais – 2 publicou o “Edital” de venda com a seguinte descrição:

“Lote de terreno, destinado a construção, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ….., Concelho de Albufeira e distrito de Faro, com o art.° 3267. Sito em ……., Lugar ……, 8200-….., ABF. Confrontações: Norte – E…….; Sul – F…….; Nascente – G……. e H………..; Poente - Caminho. Área total do terreno: 825,0000m2. Área de Implantação do Edifício: 180,0000 m2. Área bruta de construção: 180,0000m2. Área Bruta Dependente: 0,0000m2. Descrito na Conservatória de Registo Predial de Albufeira sob a ficha n.º 2353/19890920. Com o valor patrimonial de € 35.654,15. Coordenadas constantes da caderneta predial: X - 185.321,00; Y - 18.227,00. Antes de efectuarem propostas, os eventuais interessados devem inteirar-se das qualidades e características relevantes, licenças e outros aspectos que considerem relevantes, do(s) bem(s)/direito(s). A não verificação não é fundamento para anulação do procedimento de venda. A Autoridade Tributária não tem a posse efectiva do bem.”

(provado por documento, a fls. 28 verso dos autos);

G. Em 29.04.2019, a Reclamante solicitou esclarecimentos ao Serviço de Finanças de Cascais – 2 no sentido de “perceber a razão de a primeira venda não ter sido efectivada.” (provado por documento, a fls. 14 dos autos);

H. Em 30.04.2019, a Reclamante foi informada pelo Serviço de Finanças de Cascais – 2 que a venda foi anulada “por falta do depósito do preço de venda.” (provado por documento, a fls. 13 verso dos autos);

I. Em 02.05.2019, foram abertas 21 propostas, tendo o imóvel sido adjudicado à melhor proposta apresentada pela Reclamante, pelo valor de € 52.551,00 (provado por documento, a fls. 22 dos autos);

J. Em 07.05.2019, a Reclamante efectuou o depósito do preço e liquidou IS e IMT, indicando que o imóvel se destinava a revenda (provado por documento, a fls. 22 dos autos);

K. Em 31.08.2019, os Representantes Legais da Reclamante requereram à Secção de PDM da Câmara Municipal de Albufeira uma reunião para aferir do potencial índice de construção do terreno adquirido (facto não impugnado);

L. Nessa data e após análise do anúncio, a Reclamante foi informada que o terreno em causa não é um lote, por não se encontrar inserido num loteamento, e não tinha capacidade de construção, por estar totalmente abrangido pela RAN, e foi-lhe sugerido marcar uma nova reunião com a Arquiteta da Divisão de Gestão Urbanística e de Planeamento (facto não impugnado);

M. Em 03.09.2019, foi realizada a reunião na Câmara Municipal de Albufeira, tendo sido confirmada a informação referida na alínea antecedente (provado por documento, a fls. 52 dos autos; facto não impugnado);

N. Em 27.09.2019, a Reclamante dirigiu ao Serviço de Finanças de Cascais – 2 um pedido de anulação de venda, alegando erro sobre o objecto adjudicado (provado por documento, a fls. 15 dos autos);

O. O pedido de anulação de venda não foi objecto de resposta (facto não controvertido);

P. Por informação técnica prestada pela Câmara Municipal de Albufeira a 06.12.2019, validada por despacho da Vice-Presidente de 30.12.2019, foi a Reclamante informada que:

“1.A área delimitada integra o Plano Director Municipal de Albufeira (PDM) (Aviso n.º 12779/2015, publicado no Diário da República, 2ª Serie, n.º 214, de 2 de Novembro). Na carta de Ordenamento PDM, integra solo rural – zona de uso agrícola (ZUA), cujas ações possíveis são as que decorrem do artigo 21º e anexo IV do RPDM” (…)

“3. Na Carta de Condicionantes do PDM, a área do prédio é abrangida pela mancha correspondente à Reserva Agrícola Nacional, pelo que as nesta zona terão enquadramento nos termos do Decreto-Lei n.º 73/2009, de 31 de Março na redação em vigor.”

(provado por documento, a fls. 37 e 38 dos autos);

Q. O terreno identificado na alínea F. foi objecto de avaliação, notificada à executada a 06.12.2011, de que não houve reclamação, tornando-se a avaliação definitiva a 03.04.2012, com o valor patrimonial tributário de € 34.610,00 (provado por documento, a fls. 22 dos autos, conjugado com fls. 29 dos autos).».



3. Dos fundamentos de Direito

3.1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou procedente a reclamação da decisão tácita de indeferimento do pedido de anulação da venda judicial n.º 3433.2019.48, realizada pelo Serviço de Finanças de Cascais.

Com o assim decidido não se conforma a Recorrente Fazenda Pública, por entender, fundamentalmente, o seguinte:

a) que o princípio da prossecução do interesse público, previsto no artigo 4.º do Código do Procedimento Administrativo e o princípio da boa-fé, previsto no seu artigo 10.º ambos consagrados no Código do Procedimento Administrativo, constituem parâmetros interpretativos do direito a requerer a anulação da venda;

b) que o Órgão de Execução Fiscal observou estes princípios na realização da venda; e

c) que a Recorrida, abusou do direito de requerer a anulação da venda.

Se bem interpretamos, a Recorrente conclui que o direito à anulação da venda previsto no 257.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário só existe se puder concluir-se que o Órgão de Execução Fiscal violou algum dos princípios referidos na alínea a) supra.

No princípio da prossecução do interesse público apoia a Recorrente a conclusão de que só releva para a anulação da venda o erro sobre as qualidades do objeto vendido que são do conhecimento oficioso do Órgão de Execução Fiscal. E como os condicionalismos jurídico-urbanísticos do bem penhorado não são do conhecimento oficioso da entidade anunciante, o erro que daqui derive não releva para a anulação da venda.

No princípio da boa fé apoia a Recorrente a conclusão de que não releva para a anulação da venda o erro sobre as qualidades do objeto vendido se os autos patentearem que a Administração Tributária procedeu de boa-fé. Acrescentando que os autos revelam que isso aconteceu, no caso, porque o Órgão de Execução Fiscal advertiu os interessados, no anúncio da venda, para a necessidade de se inteirarem das qualidades e características relevantes e que o desconhecimento destas qualidades e características não serão fundamento para anulação da venda.

Deste último princípio retira ainda a Recorrente que o direito a requerer a anulação da venda só existe se não forem excedidos os limites aceitáveis do seu exercício. Que a Recorrida abusou do seu direito a obter a anulação da venda e que isso deve ter como consequência a desconsideração, no caso, desse direito.

Vejamos então.

3.2. O processo de execução fiscal tem natureza formalmente judicial – artigo 103.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária.

Isto significa que ao processo judicial são aplicáveis as regras formais dos processos judiciais, devendo os órgãos da administração tributária encarregados da prática dos autos respetivos observa-las no seu exercício.

Só assim não será quando estão em causa atos formal e materialmente administrativos enxertados na execução. O que, no caso, não importa considerar, porque a venda é uma fase normal da execução.

Assim sendo, aos atos da venda no processo de execução fiscal são aplicáveis as regras dos processos judiciais. E não as do procedimento administrativo.

Aliás, o princípio da prossecução do interesse público no respeito pelos interesses legalmente protegidos dos cidadãos é um padrão finalístico da atividade tipicamente administrativa, isto é, da que se desenrola dentro do seu espaço de autonomia e que se traduz na tarefa de otimizar os programas legislativos de intervenção administrativa nas realizações económicas e sociais. Não é o que sucede no processo de execução fiscal, onde a relação da administração com a lei não é funcional, mas estritamente formal.

Pelo que carece de fundamento legal a invocação, no caso, dos princípios que a Recorrente invoca, tirados do Código do Procedimento Administrativo.

Fica a questão e saber se o artigo 257.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário deve ser interpretado no sentido pretendido pela Recorrente, à luz das regras aplicáveis e dos seus princípios norteadores, visto que o juiz não está condicionado pelas alegações das partes na indagação, interpretação e aplicação das regras do direito – artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

O que se fará de seguida.

3.3. À questão de saber se só releva, para os efeitos do artigo 257.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o erro sobre as qualidades do objeto vendido que são do conhecimento oficioso do Órgão de Execução Fiscal, respondemos negativamente.

Em primeiro lugar, porque a expressão «anunciado» associa-se a «declarado» e não a «conhecido». Não há nenhum elemento interpretativo que permita relacionar o que se anuncia com o que o declarante conhece. E, como se sabe e resulta expressamente do artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, a existência de um mínimo de correspondência verbal constitui um limite da atividade interpretativa.

Em segundo lugar, porque, quando o legislador associa o erro à declaração, releva o processo de formação da vontade do declaratário e o que o declaratário conhece ou não deve ignorar. E não o processo da formação da declaração e o que o declarante realmente conhece ou deveria conhecer. É o que deriva do artigo 251.º do Código Civil. E do artigo 913.º, n.º 1 do mesmo Código, quando alude à desconformidade com as qualidades asseguradas pelo vendedor.

Dispositivos que aqui se invocam, não porque sejam aplicáveis ao processo (especial) de venda judicial (não o são, desde logo, porque o vendedor não emite declarações negociais nem se determina por qualquer processo de vontade), mas para enfatizar que o legislador, se tivesse pretendido relevar as qualidades conhecidas do anunciante, não teria deixado de o referir expressamente.

Em terceiro lugar, porque a tutela dos interesses do comprador se justifica aqui por maioria de razão. Estamos perante uma venda tutelada pelo Estado que, por ser uma figura pública e desinteressada, goza de uma especial credibilidade e é, por isso, credora de maior confiança pelos cidadãos. Que tenderão, por isso, a duvidar menos ou até a assumir como verdadeiras as características anunciadas. O que também é do interesse público, porque da maior confiança nas instituições públicas derivará também uma maior adesão à venda judicial e, consequentemente, à realização das finalidades da execução.

Sendo esta a interpretação que se retira da lei, é também a interpretação a adotar quando o órgão executivo anuncia que não garante as qualidades e características do bem a vender e que o desconhecimento destas não constitui motivo de anulação da venda?

No que respeita aos elementos que servem a identificação sumária dos bens, mencionada na alínea c) do n.º 5 do artigo 249.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, os efeitos da eventual desconformidade face ao anunciado são os que resultam da lei.

Assim, e na ausência de um suporte legal, não pode o Órgão de Execução Fiscal eximir-se às consequências legais respetivas mediante declaração unilateral de que não garante características que devam ser consideradas elementos da sua identificação, como o facto de se tratar de um lote de terreno para construção.

Sempre se dizendo que, ao contrário do que alega a Recorrente Fazenda Pública, os condicionalismos jurídico-urbanísticos do bem penhorado de que dependa a qualificação do bem a vender também são do conhecimento oficioso dos órgãos da Administração Tributária.

Desde logo, porque deles depende a qualificação dos terrenos para construção para efeitos tributários e, por conseguinte, para efeitos da sua inscrição na matriz (ver os artigos 6.º, n.º 3, e 37.º, ambos do Código do Imposto Municipal para Imóveis).

Depois, porque se devem considerar de conhecimento oficioso todos os elementos que sejam necessários à cabal identificação do bem a vender, devendo os órgãos da Administração Tributária, no prosseguimento das suas atribuições, desenvolver oficiosamente as iniciativas que, em concreto, se revelem adequadas a confirmar os factos que lhe cabe anunciar.

E, se não fosse de assim entender, decorreria do princípio da cooperação entre o órgão executivo e os interessados – ademais consagrado no artigo 7.º do Código de Processo Civil e aqui aplicável subsidiariamente e com as devidas adaptações – que lhe caberia então explicitar quais foram os elementos que logrou confirmar e aqueles a que não pôde aceder. Não são os interessados, desconhecedores do modo de funcionamento interno dos Serviços, que terão que indagar ou deduzir quais são as qualidades ou características que estes estão em condições de assegurar.

Pelo que o recurso não pode proceder por aqui.

3.4. À questão de saber se releva para a anulação da venda o erro sobre as qualidades do objeto vendido se os autos patentearem que a Administração Tributária procedeu de boa-fé respondemos afirmativamente.

Desde logo, porque a má-fé do vendedor (ou, no caso, o órgão executivo) não constitui um requisito da anulação da venda previsto na lei tributária. O artigo 257.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário não lhe faz nenhuma referência.

Deve observar-se, de passagem, que a própria lei civil releva a má-fé ou culpa do vendedor, não para limitar o direito à anulação, mas para dosear o direito à indemnização (cfr os artigos 908.º a 909.º do Código Civil) ou para conceder outros direitos, como o direito à reparação ou substituição da coisa vendida, quando aplicável (seu artigo 914.).

Depois, porque boa-fé do vendedor nunca poderia ser fundamento bastante para onerar o comprador.

Quer dizer, não faria sentido algum que, não podendo o erro ser imputado ao comprador, o vendedor pudesse exonerar-se dos seus efeitos proclamando a sua boa-fé.

A admitir-se que a origem do erro está na declaração do executado para efeitos da inscrição o bem na matriz (o que não cumpre aqui indagar), é nas relações entre este e a Administração Tributária que devem ser imputadas as responsabilidades e extraídos os seus efeitos, e não nas relações entre o Órgão de Execução Fiscal e o comprador, que é completamente alheio às outras.

Pelo que o recurso também não pode merecer provimento por aqui.

3.5. À questão de saber se, nas circunstâncias descritas, se deve entender que o comprador excede os limites aceitáveis do exercício do direito à anulação da venda e, por conseguinte, abusa desse direito respondemos negativamente.

Poderia conceber-se o abuso de direito se a divergência entre as qualidades anunciadas e as verdadeiras qualidades do objeto tivesse sido apurada pelo comprador e viesse agora aproveitar-se da desconformidade face ao anunciado para desistir da compra por outra razão qualquer. Caso em que desconformidade face ao anunciado não teria obstado à finalidade instituída pela norma que obriga a anunciar.

Poderia, eventualmente, conceber-se o abuso de direito em circunstâncias muito especiais em que o comprador estivesse munido de informação privilegiada que lhe permitisse indagar as verdadeiras qualidades do bem e tivesse negligenciado a sua utilização.

Mas não pode conceber-se o abuso de direito baseado na circunstância de o comprador não ter obtido, com antecedência relativamente à apresentação da proposta, as informações que considerasse relevantes para confirmar as qualidades anunciadas pelo próprio Órgão de Execução Fiscal.

Em primeiro lugar, porque uma das finalidades do anuncio é precisamente a de informar sobre as qualidades do objeto, dispensando, na parte correspondente, a sua indagação externa.

Em segundo lugar, porque o dever de boa fé processual, que deve reger as relações do órgão de execução fiscal com todos os intervenientes processuais, é adequado a suscitar a confiança do comprador na conformidade do anunciado com a realidade.

Em terceiro lugar, porque o instituto do abuso de direito nunca poderia servir para retirar o direito, torna-lo inoperante em todas as situações. E era o que sucederia se vingasse a tese da Recorrente, porque seria sempre imputável ao comprador o erro sobre as qualidades do bem a vender se lhe competisse validar externamente as qualidades anunciadas.

Pelo que o recurso não merece provimento.



4. Conclusões

4.1. O desconhecimento pelo anunciante das qualidades anunciadas não obsta à anulação da venda com fundamento em falta de conformidade com o que foi anunciado;


4.2. A boa fé do anunciante não obsta à anulação da venda com fundamento em falta de conformidade com o que foi anunciado;


4.3. Não incorre em abuso de direito quem requer a anulação da venda de bem que não tem as qualidades que, tendo sido anunciadas pelo órgão de execução fiscal, não confirmou previamente junto de entidades externas competentes.



5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

D.n.

Lisboa,15 de Julho de 2020. – Nuno Bastos (relator) – Gustavo Lopes Courinha – Anabela Russo.