Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01910/13.0BEBRG
Data do Acordão:02/07/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P31899
Nº do Documento:SA22024020701910/13
Recorrente:AGERE-EMPRESA DE ÁGUAS, EFLUENTES E RESÍDUOS DE BRAGA, EM
Recorrido 1:A..., LDA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:


AGERE – EMPRESA DE ÁGUAS, EFLUENTES E RESÍDUOS DE BRAGA, E.M., inconformada, veio interpor recurso da sentença proferida em 02/05/2019 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga que julgou procedente a oposição à execução e declarou extinta, relativamente à sociedade oponente – A..., LDA. - o processo de execução fiscal por aquela instaurado com vista à cobrança coerciva do montante de € 28.916,77, relativos à tarifa de ligação de saneamento e respetiva vistoria, acrescida de IVA à taxa legal.

Alegou a Recorrente, tendo apresentado conclusões como se segue:
1ª A sentença recorrida julgou a oposição procedente por entender que a Recorrida não é responsável pelo pagamento da quantia exequenda fruto de um negócio jurídico celebrado com o Município de Braga; no entanto, a Recorrente não foi (nem tinha de ser) parte naquele contrato.
2ª A Recorrente deu sequência a uma solicitação da Recorrida, tendo prestado o seu serviço e facturado o montante legalmente devido (factos provados 3, 4 e 5) e se a Recorrida pensava que não teria de pagar pelo serviço em causa terá de pedir explicações ao Município de Braga (o qual não se confunde com a Recorrente).
3ª Todos os acordos que o Município de Braga e a Recorrida possam ter outorgado são absolutamente inoponíveis à Recorrente, que é uma pessoa jurídica distinta, com personalidade jurídica própria.
4ª A circunstância do Município de Braga ser acionista da Recorrente detentor de 51% do capital em nada interfere com aquela conclusão, pois os 49% remanescentes de capital são detidos por uma entidade privada, sem qualquer relação com o Município, e que não tem nem pode ser prejudicado pelas acções do Município.
5ª A prevalência da tese sufragada na sentença recorrida configura um total desprezo pela personalidade jurídica das sociedades comerciais, prevista no artigo 5º do CSC, e da sua própria capacidade (artigo 6º do CSC) e da sua forma de vinculação (artigo 409º do CSC), pois quem gere o negócio da sociedade é o Conselho de Administração, e não os accionistas (artigo 405º do CSC).
6ª A sentença recorrida violou o artigo 204º/nº 1 b) do CPPT e os artigos 5º e 6º do CSC.»

A Recorrida apresentou as contra-alegações que se transcrevem, não formulando, no entanto, conclusões, nos termos do disposto no artigo 282.º n.º 2 in fine do CPPT:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou procedente a oposição instaurada pela Recorrida e, como consequência, declarou extinta, em relação a esta, a execução nº ...42 instaurada pela Recorrente. A Recorrente não se conforma com esta decisão uma vez que, no seu entender, a base da procedência da oposição assenta num contrato celebrado com uma entidade terceira em relação a ela (a Câmara Municipal de Braga) e que, como tal, não a pode vincular.
2. Contudo, a Recorrente não poderia estar mais equivocada.
3. Na verdade, o raciocínio da Recorrente é necessária e automaticamente reversível: a Recorrida não contratou com a Recorrente.
4. O que se prova que aconteceu -os factos provados o demonstram- foi que a Recorrida solicitou, não à Recorrente, mas à Câmara Municipal de Braga, que procedesse à ligação do saneamento que está em causa nos autos. Se a Câmara Municipal de Braga recorreu e contratou com a Recorrente é problema a acertar entre estas duas, mas não com a Recorrida.
5. Com efeito e como se alegou já, o capital social da sociedade Oponente foi objecto de um contrato de cessão de quotas entre o então titular Município de Braga (na qualidade de “Cedente”) e a sociedade B..., S.A. (na qualidade de “Cessionária”).
6. Ora, nos termos da cláusula 10ª do referido contrato, foi expressamente pactuado entre o “Cedente” e a “Cessionária” que ‘[u]ma vez que a SOCIEDADE [a aqui Recorrida] é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ...12, o qual ainda não está descrito na competente Conservatória, e foi erigido na parcela de terreno para construção descrita sob o n.º ...84... (...) e aí registada a seu favor, onde estão instaladas a sua sede social e o estabelecimento de ensino que explora, e considerando ainda que o preço aceite para a aquisição da quota nela detida pelo Município de Braga foi também determinado pelo valor desse imóvel, o CEDENTE obriga-se a entregar à CESSIONÁRIA, até 31-12-2011, o respectivo alvará de licença de utilização, promovendo e custeando tudo quanto for necessário para o indicado fim, bem como a suportar todos as despesas advindas da futura regularização cadastral e registral desse bem’.
7. Significa isto que todas e quaisquer dívidas como as que respeitarão à execução dos autos ficaram a cargo do “Cedente”. Sendo por isso este o único e exclusivo responsável. Este “Cedente” é por isso o verdadeiro titular da relação jurídica subjacente que se traz a estes autos.
8. Com efeito, como acima se deixou reproduzido, nos termos do contrato de cessão de quotas, o “Cedente” e aqui requerido Interveniente, ficou obrigado a custear todas as despesas relacionadas com a emissão do alvará de licença de utilização. Mais ficou obrigado a “promover e custear” tudo ‘quanto for necessário para o indicado fim, bem como a suportar todos as despesas advindas da futura regularização cadastral e registral desse bem’.
9. Ora, as despesas alegadamente vertidas na factura dos autos respeitam a este tipo de encargos. Pelo que são da responsabilidade do Município de Braga.
10. Restará, a finalizar, reproduzir o que foi decidido na sentença sub judice:
11. “Em função do clausulado a que se vinculou o Município de Braga, com a abrangência da enunciada cláusula, de promoção e suporte das despesas subjacentes à entrega da licença de utilização, somos de entender, em conformidade com o alegado pela Oponente, que as despesas em causa se mostram compreendidas dentro do âmbito de previsão do convencionado no contrato de cessão de quota.”
12. “Assim, tendo a enunciada factura sido emitida em .../.../2011, já após a celebração do enunciado contrato [cfr. pontos 1) e 4) dos factos considerados provados], e não se vislumbrando como possível a emissão de licença de utilização, a que o Município de Braga se vinculou a emitir até 31-12-2011, custeando as despesas necessárias para o efeito, sem a efectivação dos serviços subjacentes à factura aqui objecto de execução, será de concluir pela sua assunção pelo Município de Braga, a coberto do enunciado contrato de cessão de quota.”
13. “Em suma, decorrendo do contrato de cessão de quota a assunção, por parte do Município de Braga, da promoção e custeio de «tudo quanto for necessário para o indicado fim de emissão de licença de utilização», e integrando-se os serviços subjacentes à factura em execução (de tarifas de ligação de saneamento e de vistoria de ligação de saneamento) no âmbito da previsão do identificado fim de emissão de licença de utilização, importará considerar verificado o fundamento da ilegitimidade da Oponente para os termos do processo de execução fiscal, por não ser responsável pelo pagamento da dívida em execução, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 204º do CPPT.”
14. Concluindo: a sentença em recurso não merece qualquer reparo e, portanto, deverá manter-se em toda a sua extensão, mantendo-se assim a decisão de extinção da execução contra a Recorrida, com o que farão V. Exas. a mais nobre e elevada JUSTIÇA !!!»
4. O Ministério Público, notificado para o efeito, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e da manutenção da decisão recorrida, tendo concluído que “A douta decisão recorrida mostra-se, quanto a nós, correcta. Fez correcta análise e interpretação dos factos e correcta se mostra a sua subsunção jurídica, mostrando-se devidamente fundamentada de facto e de direito, não sendo passível de quaisquer censuras e tendo por base a matéria assente no probatório que não foi posta em causa, nomeadamente os pontos 1 a 4.”.
5. Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
«Compulsados os autos e analisada a prova produzida, dão-se como provados, com interesse e bastantes para a decisão, os factos infra indicados:
1. Por escrito denominado “contrato de cessão de quota”, datado de 18-07-2011, em que intervieram como Primeiro Outorgante e «Cedente» o “Município de Braga” e como Segundo Outorgante e «Cessionária» “B..., S.A.” e como Terceiro Outorgante e «Sociedade» “A..., Lda.”, foi declarado, no que para o caso releva, o seguinte:
“(…)
3º Pelo presente contrato, o CEDENTE transmite nesta data à CESSIONÁRIA, e esta adquire para si, pelo preço de 1 264 000,00€ (um milhão e duzentos e sessenta e quatro mil euros), a quota identificada no ponto primeiro supra.
(…)
10º Uma vez que a SOCIEDADE é proprietária do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ...12, o qual ainda não está descrito na competente Conservatória, e foi erigido na parcela de terreno para construção descrita sob o n.º ...84... (...) e aí registada a seu favor, onde estão instaladas a sua sede social e o estabelecimento de ensino que explora, e considerando ainda que o preço aceite para a aquisição da quota nela detida pelo Município de Braga foi também determinado pelo valor desse imóvel, o CEDENTE obriga-se a entregar à CESSIONÁRIA, até 31-12-2011, o respectivo alvará de licença de utilização, promovendo e custeando tudo quanto for necessário para o indicado fim, bem como a suportar todas as despesas advindas da futura regularização cadastral e registral desse bem (…)” – cfr. doc. n.º 2 junto com a petição inicial, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
2. Por requerimento apresentado na Câmara Municipal de Braga em 14-06-2011, o Director-Geral da sociedade Oponente solicitou “a ligação do saneamento correspondente à edificação sita na Rua ... ...” – cfr. doc. n.º 3 junto com a contestação, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
3. Na sequência do requerimento aludido no ponto anterior, a Entidade Exequente procedeu à ligação do identificado prédio à rede de saneamento e à realização de vistoria de ligação do saneamento – facto não controvertido e conforme à certidão de dívida de fls. 2 do processo de execução fiscal apenso, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
4. Em consequência da realização dos serviços de ligação do saneamento aludidos nos pontos anteriores, a Entidade Exequente emitiu, em 25-07-2013, a factura n.º ...25, no montante de € 28.916,77, com data limite de pagamento de 09-08-2013 – facto não controvertido e conforme a fls. 3 do processo de execução fiscal apenso, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
5. Em 24-09-2013, por falta de pagamento dos valores da factura n.º ...25, aludida no ponto anterior, a Entidade Exequente procedeu à extracção de certidão de dívida, para efeitos de instauração de processo de execução fiscal tendente à sua cobrança coerciva – facto não controvertido e conforme a fls. 2 do processo de execução fiscal apenso, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
6. Na sequência da extracção de certidão de dívida identificada no ponto anterior foi autuado, em 24-09-2013, o processo de execução fiscal n.º ...42, instaurado para a cobrança coerciva dos valores constantes da factura n.º ...25, no montante de 28.916,77€ – cfr. fls. 1 do processo de execução fiscal apenso;
7. A Oponente foi citada para o processo de execução fiscal n.º ...42 em 07-10-2013 – cfr. fls. 3, 30 e 31 do processo de execução fiscal, cujo teor se considera integralmente reproduzido;
8. A Oponente apresentou, em 07-11-2013, nos serviços da Entidade Exequente, a petição inicial dos autos – cfr. informação de fls. 4 do processo de execução fiscal apenso;
9. Os presentes autos de oposição à execução fiscal estão parados, por facto não imputável ao Oponente, desde 16-11-2017 – cfr. fls. 193 do suporte electrónico dos autos, cujo teor se considera integralmente reproduzido.
Nada mais se levou ao probatório.

Há agora que conhecer do recurso que nos vem dirigido.
Constitui objeto do presente recurso aferir se a sentença recorrida incorreu em erro de interpretação e de aplicação do disposto no artigo 204.º n.º 1 alínea b) do CPPT e dos artigos 5.º e 6.º do CSC ao julgar a oposição à execução procedente com o fundamento de que a Oponente, ora Recorrida, não é responsável pelo pagamento da quantia exequenda em virtude da cessão de quotas celebrada entre a mesma (Cedida), o Município de Braga (Cedente) e uma sociedade terceira (Cessionária).
Surpreende-se de forma liminar e perfunctória que a sentença recorrida, para concluir pela não responsabilidade pelo pagamento da divida exequenda por parte da recorrida, se louvou num “contrato” celebrado entre a executada e o Município, no qual não teve qualquer intervenção a entidade exequente.
Como se sabe o processo executivo inicia-se com a autuação da certidão que serve de título executivo, de onde consta a identificação do credor, do devedor, do montante em dívida e da proveniência da dívida, cfr. artigo 162º do CPPT.
Portanto, é pelo título executivo que é delimitado o âmbito da execução, quer quanto ao montante, quer quanto ao credor e ao devedor.
No caso dos autos não foi posto em causa qualquer um dos elementos que constavam do título executivo, isto é, não foi posto em causa que o título executivo contivesse qualquer erro ou falsidade que não correspondesse à realidade material que lhe servia de fundamento.
Antes apenas se colocou em causa o facto de o obrigado ao pagamento do montante em execução não dever ser a executada mas antes o Município de Braga, que se havia obrigado ao seu pagamento por via de um “contrato” anterior no qual não teve qualquer intervenção a exequente.
Como claramente resulta do disposto no artigo 406º, n.º 2 do Código Civil, em relação a terceiros, o contrato não produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei, isto é, enquanto que as partes se encontram obrigadas a cumprir pontualmente as obrigações que assumiram no “contrato” que celebraram, princípio da força vinculativa dos contratos, aos terceiros não intervenientes, por regra, não lhes é oponível qualquer uma dessas obrigações ou deveres, princípio da eficácia relativa dos contratos, cfr. igualmente artigo 287º, n.º 3 do Cód. de Contratos Públicos.
No caso dos autos não se descortina que a exequente tenha dado o seu assentimento à substituição do devedor da obrigação que recai sobre a executada, cfr. artigo 595º do Cód. Civil, nem sequer que o Município de Braga se tenha prontificado ao pagamento de tal dívida, como parece competir-lhe nos termos do “contrato” que celebrou com a executada.
Assim, não restam dúvidas que o fundamento da presente oposição não pode proceder, sendo obrigação da executada proceder ao pagamento dos montantes em execução.

Pelo exposto, acordam os juízes deste Supremo Tribunal Administrativo, Secção do Contencioso Tributário, em revogar a sentença recorrida na parte em que vinha impugnada e julgar improcedente a presente oposição à execução.
Custas pela oponente em ambas as instâncias.
D.N.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2024. - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Joaquim Manuel Charneca Condesso.