Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0745/04
Data do Acordão:03/03/2005
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:PAIS BORGES
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
FACTO ILÍCITO.
RESPONSABILIDADE PELO RISCO.
CONVOLAÇÃO.
Sumário:I - A responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, prevista no art. 2º, nº 1 do DL nº 48.051, de 21.11.67, corresponde ao conceito civilista de responsabilidade civil extracontratual vertido no art. 483º do C.Civil, assentando na verificação cumulativa dos pressupostos ali considerados (facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano).
II - É inadmissível a convolação de acção de responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito e culposo (art. 2º do DL nº 48.051, de 21/11/1967) em acção de responsabilidade pelo risco (art. 8º do mesmo diploma), não só por tal representar o desrespeito do princípio da estabilidade da instância, que só consente a alteração do pedido e da causa de pedir se houver acordo das partes (art. 272º do CPCivil), mas também – e decisivamente – porque os factos que serviram de fundamento à imputação de conduta ilícita e culposa não constituem suporte bastante para a responsabilização com base no risco.
Nº Convencional:JSTA00061876
Nº do Documento:SA1200503030745
Data de Entrada:06/28/2004
Recorrente:A...
Recorrido 1:INST POLITÉCNICO DA GUARDA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAC COIMBRA DE 2003/12/05.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Área Temática 2:DIR PROC CIV.
Legislação Nacional:CCIV66 ART483.
DL 48051 DE 1967/11/21 ART2.
CONST ART59.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC38737 DE 1998/11/25.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
( Relatório )
I. A..., assistente administrativo, com os restantes sinais de fls. 2, instaurou no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, contra o INSTITUTO POLITÉCNICO DA GUARDA (IPG), acção ordinária nos termos do art. 71º da LPTA, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe uma indemnização no valor global de 18.000.000$00, acrescido de juros legais até integral pagamento.
Por sentença daquele tribunal, de 05.12.2003 (fls. 137 e segs.), foi a acção julgada improcedente, por não provada, e, em consequência, o Réu absolvido do pedido.
É desta acção que vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cuja alegação o recorrente formula as seguintes conclusões:
1. Ficou demonstrada a relação de causalidade, não só entre o acidente e os danos, como entre os danos e a demora na assistência ao autor.
2. O Réu tinha o dever, que não cumpriu, não só de garantir ao Autor um ambiente de trabalho livre de riscos, como também de o socorrer pronta e eficazmente em caso de sinistro.
3. Atendendo aos perigos a que o Autor estava sujeito, por força das substâncias perigosas que era obrigado a manusear, era o Réu quem tinha de provar, o que não fez, que empregou todas as providências destinadas a prevenir os danos e a efectivação dos riscos.
4. Violou assim o Douto Acórdão recorrido as seguintes disposições legais: art. 8°, n° 2, alíneas c) e i) do 441/91, de 14 de Novembro; arts. 483° e 496° do Código Civil – para além do artigo 59°, n° 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deverá ser revogado o Douto Acórdão recorrido, sendo o Réu condenado no pedido.
II. Não foram apresentadas contra-alegações, e o Exmo magistrado do Ministério Público neste Supremo Tribunal emitiu o parecer de fls. 181 e segs., sustentando a improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
( Fundamentação )
OS FACTOS
A sentença recorrida considerou provados, com interesse para a decisão a proferir, os seguintes factos:
1. Em 18 de Abril de 1997, o A. (então com a categoria de torneiro mecânico) sofreu um acidente de trabalho no Laboratório de Engenharia Civil da Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG) do Instituto Politécnico da Guarda (IPG) – alínea A) da matéria assente.
2. Na sequência desse acidente, o A. foi declarado pela Junta Médica da ADSE incapaz para o exercício das suas funções de torneiro mecânico mas capaz para o exercício de outras funções compatíveis com o seu estado – doc. de fls. 23 – alínea B) da matéria assente.
3. Tendo requerido a sua reconversão profissional, que lhe foi defenda, classificando-o como assistente administrativo, celebrou em 21/1/2000, com efeitos a 19/11/99, contrato administrativo de provimento, nos termos do documento de fls. 25 dos autos – alínea C) da matéria assente.
4. No dia do acidente dos autos, não havia médico no Posto Médico da ESTG do IPG, local onde o A. se dirigiu – alínea D) da matéria assente.
5. O acidente de trabalho dos autos deu-se pelas 14 20 h (do dia 18/4/97) – resposta ao artigo 1º da base instrutória.
6. Quando o A. estava a deitar o produto químico WA-4002 para uma proveta de uma bilha de 10 litros – resposta ao artigo 2° da base instrutória.
7. Ao manusear o produto, o líquido saltou-lhe à cara, apanhando o olho esquerdo – resposta ao artigo 3° da base instrutória.
8. O WA-4002 é uma base – resposta ao artigo 6° da base instrutória.
9. De imediato, o A. lavou o olho e cara com água – resposta ao artigo 7° da base instrutória.
10.O olho esquerdo estava raiado com sangue, era necessário a aplicação urgente de um quelante, apenas disponível no Hospital Distrital da Guarda – resposta ao artigo 8° da base instrutória.
11.Sentindo necessidade de ser assistido, o A. foi ter com ... (... do Director da ESTG do IPG), a quem comunicou o acidente – resposta ao artigo 9° da base instrutória.
12.A ... aconselhou-o a lavar o olho com água – resposta ao artigo 10° da base instrutória.
13.O A. deslocou-se ao Hospital Distrital da Guarda (HDG) – resposta ao artigo 12º da base instrutória.
14.No Hospital foi-lhe feita uma lavagem ao olho, anestesiado e tapado e encaminhado para o oftalmologista – resposta ao artigo 13° da base instrutória.
15.O A. voltou ao IPG pedir os boletins de acidente de serviço – resposta ao artigo 14° da base instrutória.
16.Em consequência do acidente, o A. ficou com perda de visão de 8/10 no olho esquerdo, a que corresponde uma IPP de 25% – resposta ao artigo 16° da base instrutória.
17.O A. não teria essa incapacidade se tivesse sido atempadamente socorrido – resposta ao artigo 17° da base instrutória.
18.Esse socorro apenas podia ser efectuado através de lavagem ocular com produtos adequados (quelante) – resposta ao artigo 18° da base instrutória.
19.O A. sofre de dores fortes e contínuas, que o impedem de dormir normalmente – resposta ao artigo 20° da base instrutória.
20.Impedindo-o de levar uma vida normal, sendo obrigado a tomar diariamente diversos medicamentos, sobretudo analgésicos – resposta ao artigo 21° da base instrutória.
21.A nível psiquiátrico, o A. apresenta sintomas ansiosos e depressivos e insónia, associados a alterações de personalidade, directamente relacionados com o acidente e os danos físicos consequentes – resposta ao artigo 22° da base instrutória.
22.A ansiedade e o stress provocam-lhe hipertensão, que implicam medicação permanente – resposta ao artigo 23° da base instrutória.
23.No dia 29/1/2002, o A. fez um estudo poligráfico do sono – resposta ao artigo 26° da base instrutória.
24.Até à data do acidente, o A. era atleta de alta competição – resposta ao artigo 27° da base instrutória.
25.Competia em provas de velocidade, de 100, 200 e 400 metros – resposta ao artigo 28° da base instrutória.
26.Após o acidente o A. deixou de correr – resposta ao artigo 30° da base instrutória.
27.Os danos que o A. sofreu foram agravados pela falta de assistência médica atempada – resposta ao artigo 31° da base instrutória.
28.Na embalagem do WA-4002 constava do Rótulo, numa cruz preta, sobre fundo laranja a indicação de "Nocivo" e ainda constava "Precauções, evitar o contacto com a pele e olhos. Em caso de contacto lavar a zona atingida abundantemente com água e sabão. Em caso de ingestão provocar o vómito (caso a pessoa se mantenha consciente)” – resposta ao artigo 32° da base instrutória.
O DIREITO
A sentença impugnada julgou improcedente, por não provada, a acção de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito intentada pelo A. contra o Instituto Politécnico da Guarda (IPG), na qual pediu a condenação do Réu a pagar-lhe uma indemnização por danos não patrimoniais consequentes ao acidente de trabalho sofrido no Laboratório de Engenharia Civil da Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG) daquele IPG, ao manusear o produto químico WA-4002, que lhe saltou para o olho esquerdo, e lhe veio a provocar nesse olho uma perda de visão de 8/10, a que corresponde uma IPP de 25%.
Considerou a sentença que, atenta a matéria de facto dada como provada, em contraponto com a não provada, resulta indemonstrada a verificação de quaisquer factos ilícitos praticados pelo Réu ou por qualquer dos seus órgãos ou agentes, pelo que, na ausência de prova da ilicitude, a acção teria inevitavelmente de improceder.
Insurge-se o recorrente contra tal decisão, sustentando a verificação de facto ilícito culposo gerador da responsabilidade do Réu, ou, em alternativa, da sua responsabilidade pelo risco, por apelo à violação de normas do DL nº 441/91, de 14 de Novembro, e do art. 59º, nº 1, al. c) da CRP (sobre segurança e higiene no trabalho).
Não lhe assiste qualquer razão.
1. Como bem se referiu na sentença sob impugnação, a acção intentada pelo ora recorrente foi proposta nos termos do disposto no art. 71º da LPTA, e fundou-se – face aos termos da causa de pedir em que a petição se mostra estruturada (factos jurídicos de que emerge o direito invocado) – na responsabilidade extracontratual do Réu IPG por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes, prevista no art. 2º, nº 1 do DL nº 48.051, de 21.11.67, e que corresponde ao conceito civilista de responsabilidade civil extracontratual vertido no art. 483º do C.Civil, assentando na verificação cumulativa dos pressupostos ali considerados (facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano).
O que equivale, desde já, a que se considere de todo improcedente a alegação, ainda que alternativa, de uma eventual responsabilidade objectiva ou pelo risco, assacada ao Réu por pretensa violação de normas do DL nº 441/91, de 14 de Novembro, e do art. 59º, nº 1 da CRP (sobre segurança e higiene no trabalho), uma vez que essa convolação se mostra inadmissível, desde logo por nenhum facto relativo a esse tipo de responsabilidade ter sido invocado na petição inicial, a qual assenta exclusivamente na imputação de uma responsabilidade subjectiva do Réu por factos ilícitos culposos.
Como se afirmou, a tal propósito, no Ac. deste STA de 25.11.98 – Rec. 38.737:
É inadmissível a convolação de acção de responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito e culposo (art. 2º do DL nº 48.051, de 21/11/1967) em acção de responsabilidade pelo risco (art. 8º do mesmo diploma), não só por tal representar o desrespeito do princípio da estabilidade da instância, que só consente a alteração do pedido e da causa de pedir se houver acordo das partes (art. 272º do CPC), mas também – e decisivamente – porque os factos que serviram de fundamento à imputação de conduta ilícita e culposa não constituem suporte bastante para a responsabilização com base no risco.
O que basta para concluir que a sentença sob recurso não violou, contrariamente ao alegado pelo recorrente, a referida norma do DL nº 441/91, nem o art. 59º, nº 1, al. c) da CRP, disposições que ali não foram (não tinham que ser) sequer consideradas.
2. Assim restringidos ao âmbito da responsabilidade extracontratual por facto ilícito (art. 2º, nº 1 do DL nº 48.051), dir-se-á que a pronúncia decisória quanto à inverificação do requisito ilicitude, determinante da improcedência da acção, não foi eficazmente afrontada pelo recorrente na sua alegação, na qual ele se limita a invocar a omissão de auxílio por parte da secretária do Director da ESTG, e a falta de pronta e adequada assistência médica por ausência de pessoal qualificado (médico ou enfermeiro) no Posto Médico da instituição.
2.1. Ora, no que toca à alegada conduta omissiva da secretária do Director da ESTG, nenhuma prova de ilicitude foi conseguida, dadas as respostas negativas e restritivas do tribunal colectivo aos quesitos 9 a 11 e 14 da base instrutória.
Ali se perguntando se “Sentindo necessidade urgente de ser assistido, o A. foi ter com …, a quem pediu que fosse chamado um carro de serviço ou ambulância para o levar ao hospital porque se tinha queimado com ácido no olho”, foi respondido “Provado apenas que, sentindo necessidade de ser assistido, o A. foi ter com …, a quem comunicou o acidente”.
E perguntando-se se “Após se ter dirigido ao Posto Médico [onde, naquela altura, inexistia pessoal médico] o A. voltou à Direcção, onde a referida ... lhe disse que estava muito ocupada e com muito serviço, aconselhando-o a ir a casa pôr gotas”, respondeu-se “Não provado”.
Estas respostas do colectivo foram determinantes para a pronúncia sobre a inexistência de ilicitude, na medida em que afastaram decisivamente a imputada omissão ilícita de prestação de auxílio.
Face a elas, forçoso é concluir que não resultou provado que a dita ... do Presidente da ESTG se tivesse apercebido da gravidade da lesão, e que tivesse negligenciado a prestação de auxílio ao A.
Aliás, como bem se refere na sentença, “nem o próprio A. se apercebeu da gravidade da lesão, pois que se se tivesse apercebido, logo teria aceite a “boleia” que um professor (Engº ...) lhe ofereceu, para o levar ao Hospital, mas o A. recusou (sendo que tal facto é anterior à deslocação à Direcção da ESTG e quase concomitante, pois o Engº ... foi a primeira pessoa a falar com o A., logo após o acidente)” (vd. fundamentação das respostas aos quesitos).
2.2. No que toca à falta de pronta e adequada assistência médica por ausência de pessoal qualificado no Posto Médico da instituição, também aqui nenhuma ilicitude ficou demonstrada, como bem se decidiu.
Primeiro, porque nenhuma norma legal ou regulamentar, designadamente os Estatutos do IPG (DR, I Série B, Nº 273, de 25.11.94) ou da ESTG (DR, II Série, Nº 2, de 03.01.96) impõe a existência de um serviço de atendimento médico permanente nas instalações da instituição.
Depois – e decisivamente – porque ficou provado (cfr. nºs 10 e 18 da matéria de facto) que o socorro ao A. “apenas podia ser efectuado através de lavagem ocular com produtos adequados (quelante)”, e que esse produto era “apenas disponível no Hospital Distrital da Guarda”.
Acrescendo ainda, neste ponto, para o afastamento da ilicitude, o facto (igualmente provado – nº 28 da matéria de facto) de o rótulo da embalagem do WA-4002 conter a errada indicação de a precaução a ter em caso de contacto com a pele ser a de “lavar a zona atingida abundantemente com água e sabão”, sem qualquer alusão à necessidade do citado “quelante”, circunstância que terá sido determinante para o agravamento da lesão sofrida pelo A., mas à qual o Réu é naturalmente alheio.
Bem andou, pois, a sentença impugnada ao decidir que, em face da prova feita em audiência de discussão e julgamento, o A. não logrou demonstrar qualquer actuação ilícita por parte dos agentes ou funcionários do Réu.
Improcedem, deste modo, todas as conclusões da alegação do recorrente.
( Decisão )
Com os fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão impugnada.
Custas pelo A., sem prejuízo do apoio judiciário concedido (fls. 16 dos autos).
Lisboa, 3 de Março de 2005. – Pais Borges (relator) – Rui Botelho – Freitas Carvalho.