Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01008/09.6BEPRT
Data do Acordão:11/10/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IVA
TAXA REDUZIDA
INTERPRETAÇÃO
Sumário:I - Na interpretação da lei fiscal há que respeitar as regras gerais da hermenêutica jurídica consagradas no art. 9.º do CC, como prescreve o n.º 1 do art. 11.º da LGT.
II - Os serviços prestados por uma empresa a um município no âmbito de um contrato, de “campanha de sensibilização”, “exploração de canil” e “limpeza de piscinas municipais” não são subsumíveis à verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA, que, na redacção em vigor à data, se referia às «[p]restações de serviços relacionadas com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha e tratamento dos resíduos, quando efectuadas ao abrigo de contratos outorgados pelo Estado, pelas Regiões Autónomas, pelas autarquias locais, por associações de municípios ou pelas entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º», motivo por que não ficam sujeitos à taxa reduzida de IVA.
Nº Convencional:JSTA00071307
Nº do Documento:SA22021111001008/09
Data de Entrada:01/04/2021
Recorrente:SUMA (MATOSINHOS) - SERVIÇOS URBANOS E MEIO AMBIENTE SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:SENTENÇA DO TAF DO PORTO
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:IVA
Legislação Nacional:Verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA (redacção da Lei n.º 96/97, de 23 de Agosto), Art. 11.º, n.º 1, da LGT, Art. 9.º do CC
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 1008/09.6BEPRT
Recorrente: “SUMA (Matosinhos) – Serviços Urbanos e Meio Ambiente, S.A.”
Recorrida: Autoridade Tributária e Aduaneira (AT)

1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou improcedente a impugnação judicial por ela deduzida contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e dos correspondentes juros compensatórios relativamente aos meses de Janeiro a Agosto do ano de 2005, no valor total de € 16.350,50, que lhe foram efectuadas por a AT ter considerado que os serviços prestados no âmbito das actividades de “campanhas de sensibilização”, “exploração de canil” e “limpeza de piscinas” não estão sujeitas à taxa reduzida de IVA, por aplicação de verba 2.20 da Lista I anexa ao Código do IVA (CIVA), na versão aplicável, contrariamente ao que entendeu aquela sociedade, que liquidou e entregou o imposto respeitante à prestação desses serviços à taxa reduzida, por considerar que tais serviços se inserem no conceito de “prestações de serviços relacionados com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha e tratamento de resíduos”.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso, a Recorrente apresentou as alegações, com conclusões do seguinte teor:

«1. O presente recurso jurisdicional vem interposto da douta sentença, proferida nos autos referidos em epígrafe, a qual considerou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida pela ora Recorrente contra as liquidações adicionais de IRC, efectuadas pela AT, relativamente aos exercícios de 2007 e 2008 [ (Trata-se de lapso de escrita: a Recorrente queria dizer 2005 onde escreveu 2007 e 2008.)].

2. Salvo o devido respeito, entende a Recorrente que a decisão recorrida merece censura, porquanto padece de ANULABILIDADE, por erro de julgamento da matéria de direito, consubstanciada na errónea interpretação e aplicação da verba 2.20 do CIVA.

3. No entender da Recorrente, as “campanhas de sensibilização”, a “exploração de canil” e a “limpeza de piscinas” são “prestações de serviços relacionados com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha e tratamento de resíduos” e, como tal, estão sujeitas à taxa reduzida de IVA, por aplicação da verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA.

4. A lei (verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA) não limita a aplicação da taxa reduzida apenas aos serviços que se encontrem numa relação causal directa – do tipo causalidade necessária – com os de limpeza das vias públicas e de recolha e tratamento de resíduos.

5. Não encontra o mínimo suporte na letra da lei a tese defendida pelo tribunal a quo de que deve existir uma relação com a efectivação da limpeza ou de que se encontram excluídos do campo de aplicação da referida verba os serviços que se situem no campo da sua prevenção.

6. Os serviços de promoção de campanhas de sensibilização são prestados com o objectivo fulcral de contribuírem não só para a prevenção do lixo, como também para o mais eficaz tratamento de resíduos, pelo que estão inquestionavelmente relacionadas com a limpeza das vias públicas.

7. O mesmo se diga da exploração do canil: esta actividade ancora-se e relaciona-se necessariamente, ainda e sempre, com a limpeza da cidade e sã e prudente gestão dos resíduos urbanos.

8. A exploração do canil – na medida em que importa a sua existência e funcionamento – contribui para a melhor e mais eficaz limpeza das vias públicas e recolha e tratamento de resíduos.

9. Só isso justifica, aliás, que estes serviços estejam cobertos directamente pelo objecto do Contrato.

10. Também os serviços de limpeza das piscinas devem considerar-se sujeitos à taxa reduzida de IVA, porquanto está em causa a limpeza da via pública.

11. Ainda que se entendesse que as piscinas não se inserem no conceito de via pública – o que não se concede – e, por conseguinte, que não está em causa a limpeza da via pública, os serviços em causa não deixariam de estar sujeitos à taxa reduzida de IVA prevista na verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA, na medida em que sempre teriam de se considerar relacionados com a limpeza da via pública.

12. A limpeza das piscinas – tal como a promoção de campanhas de sensibilização e a exploração do canil – tem efeitos directos, imediatos e fundamentais ao nível da eficiência eficácia dos serviços de limpeza das vias públicas, razão pela qual se devem considerar abrangidos pela verba 2.20 do CIVA.

13. Acresce que os serviços em causa devem considerar-se acessórios da prestação principal do contrato celebrado com o Município de Matosinhos – limpeza urbana e recolha de resíduos – e, como tal, à luz da jurisprudência do TJUE, sujeitas ao mesmo tratamento fiscal – sujeição à taxa reduzida de IVA.

14. Os actos de liquidação em crise nos presentes autos são manifestamente ilegais, designadamente por violação da verba 2.20 do CIVA.

15. Ao assim não entender, a decisão recorrida padece de ANULABILIDADE, por erro de julgamento da matéria de direito.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deve ser admitido e julgado procedente o presente recurso e revogada a sentença recorrida, nos termos e com os fundamentos supra descritos, substituindo-a por outra que julgue integralmente procedente a impugnação judicial, com todas as consequências legais».

1.3 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento. Isto, após enunciar os termos da questão, com os seguintes fundamentos:

«[…]
Ora, afigura-se-nos, salvo devido respeito por melhor opinião, não assistir razão à Impugnante, ora Recorrente, pois tais serviços não estão relacionados com a limpeza da via pública nem com a recolha e tratamento de resíduos.
Aliás o facto da Impugnante, a partir de Setembro de 2005, passar a aplicar a taxa normal de IVA a tais serviços, traduz uma confirmação com a bondade dos fundamentos subjacentes às liquidações adicionais, expressa no relatório de inspecção tributária.
Embora neste âmbito, a questão suscitada pela Impugnante, ora Recorrente prende-se com o saber se o se as prestações ora em causa se deverão considerar independentes, ou antes acessórias de uma prestação principal e, consequentemente, sujeitas ao mesmo tratamento fiscal.
A jurisprudência comunitária (o Tribunal de Justiça da União Europeia - TJUE) já se pronunciou em situações em que teve de se estabelecer se uma prestação seria de se considerar como composta (mas única) ou como várias (duas ou mais) prestações distintas.
Por exemplo, no Acórdão de 17 de Janeiro de 2013, relativo ao processo C-224/11, pode ler-se nos parágrafos 29 a 31, o seguinte: “Importa recordar que, para efeitos de IVA, cada prestação deve normalmente ser considerada distinta e independente, tal como resulta do artigo 1.º, n.º 2, segundo parágrafo, da directiva IVA” (v. acórdão de 27 de Setembro de 2012, Field Fisher Waterhouse, C-392/11, n.º 14 e jurisprudência referida).
Não obstante, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, em determinadas circunstâncias, várias operações formalmente distintas, susceptíveis de ser realizadas separadamente e de dar assim lugar, em cada caso, à tributação ou à isenção,
Devem ser consideradas uma operação única quando não sejam independentes (acórdãos de 21 de Fevereiro de 2008, Part Service, C-425/06, Colet., p. I-897, n.º 51, e de 2 de Dezembro de 2010, Everything Everywhere, C-276/09, Colet., p. I-12359, n.º 23).
Ora, in casu, salvo o devido respeito por melhor opinião, o facto de o Município de Matosinhos ter optado pela inclusão das prestações de serviços aqui em causa num contrato com aquele objecto,
Não nos permite concluir que as considerou acessórias da prestação principal (limpeza urbana e a recolha de resíduos sólidos).
Assim sendo, é de considerar que as prestações de serviços em causa (campanhas de sensibilização, exploração de canil e limpeza de piscinas), efectuadas no âmbito do contrato de prestação de serviços acima referido,
Consubstanciam prestações de serviços distintas, extravasando o âmbito de aplicação da verba 2.20, da Lista I, anexa ao CIVA».

1.5 Cumpre apreciar e decidir se a sentença fez correcto julgamento quando considerou que os serviços prestados pela Impugnante no âmbito das actividades de “campanhas de sensibilização”, “exploração de canil” e “limpeza de piscinas” não estão sujeitas à taxa reduzida de IVA, por aplicação de verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA, por não poderem ser consideradas “prestações de serviços relacionados com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha e tratamento de resíduos”.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Na sentença, o julgamento da matéria de facto foi efectuado nos seguintes termos:

«A. Em nome da impugnante foram emitidas as liquidações adicionais de IVA e dos correspondentes juros compensatórios relativamente ao ano de 2005, no valor global de € 16.310,50 – cfr. doc. 1 junto com a p.i.

B. As liquidações de IVA que antecedem assentaram no “Relatório de inspecção tributária” elaborado por referência à impugnante em 22.10.2008 com o seguinte teor – cfr. doc. 2 junto com a p.i.:

[Imagem]

C. Em 29.10.2008, sobre o relatório que antecede recaiu despacho de concordância – cfr. doc. 2 junto com a p.i..

D. Em 27.02.2009, a impugnante efectuou o pagamento das liquidações impugnadas – cfr. doc. 3 junto com a p.i..

Não se provaram quaisquer outros factos para além dos referidos com relevância para a decisão da causa».

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

Como resulta do que acima deixámos dito, no presente recurso cumpre verificar se a sentença incorreu no erro de julgamento que a Recorrente lhe assaca, qual seja o de não ter reconhecido que as liquidações adicionais impugnadas enfermam do vício de violação de lei, na medida em que a AT considerou que as “campanhas de sensibilização”, a “exploração de canil” e a “limpeza de piscinas” não são “prestações de serviços relacionadas com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha e tratamento de resíduos” e, como tal, não estão sujeitas à taxa reduzida de IVA (A taxa aplicável a operações sujeitas a IVA fixa-se no momento em que o imposto é devido, sendo que, nas prestações de serviços, tal ocorre com a realização das mesmas [cf. arts. 7.º, n.º 1, alínea b), e 18.º, do CIVA].) por aplicação da verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA, na redacção em vigor à data (Ou seja, na redacção anterior à que resulta da republicação do Código operada pelo Decreto-Lei n.º 102/2008, de 20 de Junho.
A verba 2.20 foi aditada à lista I anexa ao CIVA pela Lei n.º 96/97, de 23 de Agosto, com a seguinte redacção: «Prestações de serviços relacionadas com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha e tratamento dos resíduos, quando efectuadas ao abrigo de contratos outorgados pelo Estado, pelas Regiões Autónomas, pelas autarquias locais, por associações de municípios ou pelas entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º».)
Ulteriormente, a Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2008, alterou a redacção da verba 2.20, alargando o seu âmbito: «Prestações de serviços relacionadas com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha, armazenamento, transporte, valorização e eliminação de resíduos».
Após a referida republicação do CIVA, operada pelo Decreto-Lei n.º 102/2008, de 20 de Junho, a citada verba passou a ser a 2.22, mantendo a mesma redacção., mas antes ficam sujeitas à taxa normal.
A Recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que confirmou a inaplicabilidade da verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA aos serviços em causa.
Tendo presente que nos autos não se questiona a qualidade de sujeito passivo da ora Recorrente nem que os serviços relativamente aos quais ora se discute qual a taxa de IVA aplicável foram por ela prestados ao abrigo de contrato celebrado entre ela e um município, impõe-se apenas verificar se os serviços prestados pela ora Recorrente no âmbito das três referidas actividades – “campanhas de sensibilização”, “exploração de canil” e “limpeza de piscinas” – podem, ou não, subsumir-se à previsão da verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA, que, em ordem à aplicação da taxa reduzida, dispunha: «Prestações de serviços relacionadas com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha e tratamento dos resíduos, quando efectuadas ao abrigo de contratos outorgados pelo Estado, pelas Regiões Autónomas, pelas autarquias locais, por associações de municípios ou pelas entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º»

2.2.2 DO ÂMBITO DO CONCEITO DE “PRESTAÇÕES DE SERVIÇOS RELACIONADOS COM A LIMPEZA DAS VIAS PÚBLICAS, BEM COMO COM A RECOLHA E TRATAMENTO DE RESÍDUOS”

Afigurando-se-nos inquestionável que os serviços prestados em causa não são serviços de limpeza das vias públicas nem serviços de recolha e tratamento dos resíduos, a tese da ora Recorrente só poderá vingar caso tais serviços possam considerar-se como relacionados com a limpeza das vias públicas ou com a recolha e tratamento dos resíduos. Isso mesmo entendeu a Recorrente, logo em sede de petição inicial, se bem que configurando essa relação em termos que a sentença não acolheu.
Recordemos a fundamentação aduzida pela AT para suportar as liquidações adicionais impugnadas: no que respeita aos serviços referidos como “campanhas de sensibilização”, que estas visam «sensibilizar a população para as vantagens da recolha selectiva dos resíduos, bem como para um decréscimo da produção de lixos urbanos em geral», pelo que «não se encontram relacionados com a limpeza das vias públicas, mas sim com a educação ambiental da população»; quanto aos serviços relacionados com a exploração do canil, que estes «não se encontram relacionados com a limpeza de vias pública»; no que se refere aos serviços de limpeza de piscinas municipais, que os mesmos «não se encontram relacionados com a limpeza das vias públicas, uma vez que não podemos considerar as piscinas municipais abrangidas pelo conceito de via pública, tanto mais tanto mais que a sua utilização não é de acesso livre mas condicionado a bilhete de ingresso».
Por isso, a AT considerou que todos esses serviços não são enquadráveis na verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA.

A ora Recorrente sustentou, logo na petição inicial de impugnação judicial, como também agora, em sede de recurso, que a verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA não restringia a aplicação da taxa reduzida aos serviços «que se encontrem numa relação causal directa – do tipo causalidade necessária – com os de limpeza das vias públicas e de recolha e tratamento de resíduos».
Em ordem a demonstrar que todos esses serviços prestados tinham uma relação com a limpeza das vias pública e de recolha dos resíduos urbanos, a Recorrente alegou até diversa factualidade, em ordem a densificar o conteúdo dessas prestações de serviços, bem como arrolou testemunhas em ordem à sua comprovação.
Poderia, eventualmente, sustentar-se que a produção dessa prova seria importante para a boa decisão da causa, designadamente para melhor compreender em que consistiam os serviços prestados e, assim, melhor ajuizar da possibilidade da sua subsunção à verba 2.20 da Tabela I anexa ao CIVA, que ora se discute.
Acontece, porém, que a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto proferiu despacho a dispensar expressamente a produção da prova testemunhal, despacho que transitou em julgado por falta de oportuna reacção contra o mesmo (cf. despacho a fls. 97 do processo electrónico e processado ulterior).
Assim, não podemos sequer ponderar uma eventual anulação da sentença, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 682.º do Código de Processo Civil (CPC), e devolução dos autos à 1.ª instância, a fim de aí ser ampliado o julgamento da matéria de facto, designadamente em ordem a concretizar o âmbito dos serviços prestados ora em causa, sob pena de violação do caso julgado formal (cf. art. 620.º, n.º 1, do CPC). Por outro lado, também este Supremo Tribunal, como tribunal de revista, carece de poderes de cognição em sede de facto que lhe permitam o julgamento dessa factualidade.
Temos, pois, que cingir-nos a sindicar o julgamento efectuado pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto em face da factualidade que foi dada como provada. Na certeza, porém, de que, ainda que toda a factualidade alegada pela ora Recorrente na petição inicial tivesse ficado provada, a decisão a proferir não teria outro sentido. Senão vejamos:
A verba 2.20 da Tabela I anexa ao CIVA, no que ora nos interessa, refere-se a «prestações de serviços relacionadas com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha e tratamento dos resíduos».
Na interpretação desta norma, há que respeitar as regras gerais de interpretação da lei consagradas no art. 9.º do Código Civil (CC), como determina o n.º 1 do art. 11.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Assim, em ordem a averiguar se os serviços em causa são, ou não, subsumíveis à verba 2.20 da Tabela I anexa ao CIVA, há que reconstituir o “pensamento legislativo”, utilizando os factores hermenêuticos que são essencialmente o elemento gramatical (o texto, ou a letra da lei) e o elemento lógico, o qual, por sua vez, se subdivide em elemento racional (ou teleológico), elemento sistemático e elemento histórico (Cf. J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, págs. 181/182.).
A letra da lei é o ponto de partida da interpretação e «[c]omo tal cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei» (Idem, pág. 182. O mesmo Autor, na pág. 189, explicita: «A letra (o enunciado linguístico) é, assim o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, n.º 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto “falhado” se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação».), atento o disposto no n.º 2 do art. 9.º do CC.
Sustenta a Recorrente que o elemento literal dá apoio à tese por ela sustentada, por um lado, porque a norma não se refere apenas aos serviços de limpeza das vias públicas e de recolha e de tratamento de resíduos, mas aos serviços relacionados com aquelas actividades, e, por outro lado, porque a norma também não se referiu, restringindo o seu âmbito, aos serviços directamente relacionados e não distinguiu entre serviços directa ou indirectamente relacionados com a limpeza das vias públicas e a recolha e tratamento de resíduos. Assim, concluiu, em face do disposto no n.º 3 do art. 9.º do CC – que dispõe que «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» –, é de considerar que «a verba em referência abrange, não apenas os serviços de limpeza das vias públicas e de recolha e tratamento de resíduos ou aqueles que com estes se encontrem em relação de causalidade necessária e directa, mas todos aqueles serviços que, embora sem uma relação causal directa e necessária com os serviços de limpeza e tratamento de resíduos, estejam a eles associados – no sentido de que contribuem, ainda que mediatamente, mas de forma idónea e adequada, para impedir e prevenir a sujidade das vias públicas e para a maior e mais racional gestão dos resíduos».
Salvo o devido respeito, a Recorrente leva longe de mais o conceito de relação a que alude a norma. Vejamos:
Em face da caracterização dos serviços prestados em causa podemos facilmente aceitar que aqueles que vêm identificados como “campanhas de sensibilização” e “exploração do canil” se encontram, ainda que remota e indirectamente, relacionados com a limpeza das vias públicas. Já relativamente aos serviços de “limpeza de piscinas”, não vislumbramos onde possa residir a conexão com a limpeza das vias públicas, sobretudo se atentarmos na definição legal de via pública, que, como bem salientou a Juíza do Tribunal a quo, nos é fornecida pelo art. 1.º, alínea v), do Código da Estrada, na redacção aplicável (Que é a do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.): «via de comunicação terrestre afecta ao trânsito público».
Obviamente, uma piscina, ainda que municipal, não pode considerar-se uma via pública, como pretende a Recorrente; os dois argumentos que aduziu em ordem à demonstração de que as piscinas municipais constituem via pública, salvo o devido respeito, desprezam totalmente o conceito legal de via pública que se nos impõe por força do n.º 2 do art. 11.º da LGT. Por outro lado, ainda que se demonstrassem todos os factos alegados pela Recorrente, sempre a conclusão não poderia ser outra, sob pena de completa subversão da letra da lei, em desrespeito pelo n.º 3 do art. 9.º do CC.
Mas, se relativamente aos serviços de “limpeza das piscinas” não podemos vislumbrar relação alguma com a limpeza da via pública, já no que respeita aos serviços prestados de “campanhas de sensibilização” e de “exploração do canil” é fácil estabelecer tal relação, ainda que indirecta, como o comprova a alegação da Recorrente.
No entanto, não é uma qualquer relação entre os serviços prestados e a limpeza da via pública que pode sustentar a aplicação da taxa reduzida. Essa relação tem de ser entendida de modo que os seus limites possam conferir efeito útil à norma, de modo a que o sentido extraído da norma seja conforme ao sentido e alcance que o legislador quis conferir-lhe. Como bem ficou dito na sentença, a «relação a que a norma se reporta não pode ser de tal modo distante que transforme a norma num caldeirão, onde possam caber serviços com uma qualquer e ínfima relação com serviços de limpeza».
Assim, essa relação, sob pena de esvaziamento da norma (Em tese, sempre será possível estabelecer uma qualquer relação entre todas as actividades humanas.), terá de ser próxima e directa e, por isso, bem andou a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto quando considerou que se impunha que essa relação fosse com a efectivação da limpeza, ou seja, dizemos nós, com os concretos actos praticados na limpeza da via pública, com a limpeza em concreto da via pública, e não com a limpeza enquanto conceito em abstracto. A não ser assim, poderia sempre estender-se a cadeia de conexões até achar uma qualquer relação com a limpeza, por muito remota que fosse, e sustentar-se que fosse aplicada a taxa reduzida a todas as prestações de serviços que cumprissem os demais requisitos dessa aplicação. Não poderá ter sido essa a intenção do legislador.
Se da norma for extraído o sentido que ora sustentamos, o facto de o legislador não ter levado ao texto da lei a especificação de que, para poderem beneficiar da taxa reduzida, os serviços tivessem de estar directamente relacionados com a limpeza não permite concluir, como concluiu a Recorrente, que quaisquer serviços, desde que indirecta e remotamente relacionados com a limpeza (de modo mediato, nas palavras da Recorrente), estejam compreendidos na previsão da norma.
Nem se diga que os referidos serviços fazem parte de uma única operação composta por vários elementos, como o fez a Recorrente apelando para a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), anteriormente Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), sendo que, por simplicidade, nos referiremos sempre ao TJUE.
É certo que o TJUE – cuja jurisprudência nos cumpre respeitar, pois o IVA é um imposto regulado ao nível da União Europeia – tem vindo a afirmar que, «em determinadas circunstâncias, várias prestações formalmente distintas, susceptíveis de serem realizadas separadamente e de dar assim lugar, em cada caso, a tributação ou a isenção, devem ser consideradas como uma operação única quando não sejam independentes. Tal sucede, por exemplo, quando se verifica que uma ou várias prestações constituem uma prestação principal e que a ou as outras prestações constituem uma ou várias prestações acessórias que partilham do destino fiscal da prestação principal. Em particular, uma prestação deve ser considerada acessória em relação a uma prestação principal quando não constitua para a clientela um fim em si, mas um meio de beneficiar nas melhores condições do serviço principal do prestador» (processo com o n.º C-572/07) (Vide os seguintes acórdãos, citados pela Recorrente, do TJUE:
- de 21 de Fevereiro de 2008, proferido no processo com o n.º C-425/06 (Part Service);
- de 11 de Junho de 2009, proferido no processo com o n.º C-572/07 (RLRE Tellmer Property);
no mesmo sentido, citado pelo Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal
- de 2 de Dezembro de 2010, proferido no processo com o n.º C-276/09 (Everything Everywhere).).
Será que, no caso, se pode considerar que estamos perante uma prestação única, perante uma operação composta por vários elementos?
A nosso ver e em face do critério definido pelo TJUE, não, manifestamente.
Antes do mais, convém relembrar que, como o TJUE também tem vindo a dizer, por força do art. 2.º da Sexta Directiva do Conselho, de 17 de Maio de 1977, por um lado, cada operação deve normalmente ser considerada distinta e independente e, por outro, a operação constituída por uma só prestação no plano económico não deve ser artificialmente decomposta, para não alterar a funcionalidade do sistema do IVA. Há que considerar que existe uma prestação única quando dois ou mais elementos ou actos fornecidos pelo sujeito passivo ao cliente estejam tão estreitamente ligados que formam, objectivamente, uma única prestação económica indissociável, cuja decomposição teria carácter artificial; resulta ainda da jurisprudência do TJUE que, na hipótese de uma operação complexa única, uma prestação deve ser considerada acessória em relação a uma prestação principal quando não constitua para a clientela um fim em si, mas um meio de beneficiar, nas melhores condições, do serviço principal do prestador (Vide os seguintes acórdãos do TJUE:
- de 27 de Outubro de 2005, proferido no processo com o n.º C-41/04 (Levob Verzekeringen e OV Bank);
- de 29 de Março de 2007, proferido no processo com o n.º C-111/05 (Aktiebolaget);
- de 11 de Junho de 2099, proferido no processo com o n.º C-572/07 (RLRE Tellmer Property)..
Ora, no caso, qualquer das prestações em causa pode ser prestada de modo completamente autónomo e constituir um fim em si mesmo; também não pode dizer-se que, em ordem à prestação de serviços de limpeza da via pública, as “campanhas de sensibilização”, a “exploração do canil” ou a “limpeza da piscinas municipais” surjam como “tão estreitamente ligados que formam, objectivamente, uma única prestação económica indissociável, cuja decomposição teria carácter artificial”.
Como afirma o TJUE, a realização, a título oneroso, de uma prestação que não é indispensável para atingir o objectivo visado pela prestação “principal”, se bem que possa ser considerada muito útil para essa prestação, não será considerada uma prestação estreitamente conexa () Vide o acórdão do TJUE de 1 de Dezembro de 2005, proferido nos processos apensos com os n.ºs C-394/04 e C-395/04 (Ygeia).).
Finalmente, também não pode extrair-se argumento favorável à tese da Recorrente da circunstância de todos os serviços em causa estarem inseridos no âmbito de um mesmo contrato celebrado entre a ora Recorrente e o Município, nos termos do qual foi atribuída àquela a concessão da exploração e gestão do Serviço Público Municipal de recolha de resíduos sólidos e varredura no concelho. É que de tal facto nada resulta no sentido de que o contrato tem por objecto uma única prestação económica indissociável.
O recurso não pode, pois, ser provido.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões

I - Na interpretação da lei fiscal há que respeitar as regras gerais da hermenêutica jurídica consagradas no art. 9.º do CC, como prescreve o n.º 1 do art. 11.º da LGT.

II - Os serviços prestados por uma empresa a um município no âmbito de um contrato, de “campanha de sensibilização”, “exploração de canil” e “limpeza de piscinas municipais” não são subsumíveis à verba 2.20 da Lista I anexa ao CIVA, que, na redacção em vigor à data, se referia às «[p]restações de serviços relacionadas com a limpeza das vias públicas, bem como a recolha e tratamento dos resíduos, quando efectuadas ao abrigo de contratos outorgados pelo Estado, pelas Regiões Autónomas, pelas autarquias locais, por associações de municípios ou pelas entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º», motivo por que não ficam sujeitos à taxa reduzida de IVA.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os Conselheiros desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, acordam em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente, que ficou vencida (cf. art. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT).


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Lisboa, 10 de Novembro de 2021. – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) - Joaquim Manuel Charneca Condesso – Gustavo André Simões Lopes Courinha.