Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0684/04.0BELRA
Data do Acordão:11/09/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:REVISTA
RESPONSABILIDADE CIVIL
DEMORA NA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA
Sumário:A análise do nexo de causalidade envolve não só raciocínios imbuídos de alguma subjectividade a qual é, muitas vezes, suficiente para fazer pender esse juízo num ou noutro sentido como, por outro lado, passa pela análise de questões jurídicas de alguma dificuldade.
Nº Convencional:JSTA000P23832
Nº do Documento:SA1201811090684/04
Data de Entrada:10/12/2018
Recorrente:A............
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Formação de Apreciação Preliminar da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. RELATÓRIO

A………… intentou, no TAF de Leiria, contra o Estado Português, acção administrativa comum pedindo:
A condenação do Estado a pagar ao Autor a quantia de € 1.952.514,80, acrescida do resultado obtido por via do factor de correcção monetária a apurar na data do pagamento.
Aquele Tribunal julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou o Estado Português a pagar ao Autor a importância de € 856.480,45 por danos patrimoniais, actualizada com o factor de correcção monetária, e de € 126.000,00 a título de danos morais.

O Estado recorreu para o TCA Sul e este concedeu parcial provimento ao recurso, revogando a sentença no tocante à condenação por danos patrimoniais e reduzindo para € 20.000,00 a condenação por danos não patrimoniais.

O Autor não se conformou com essa decisão e daí a interposição desta revista.

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos dados como provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O Autor intentou, contra o Estado, acção administrativa comum pedindo a condenação deste a pagar-lhe uma indemnização que o ressarcisse dos prejuízos que o atraso na administração da justiça lhe causaram.
Para tanto alegou que, Fevereiro de 1972, intentou, no Tribunal da Comarca de Alcanena, acção cível pedindo que a sociedade B…………, L.da, da qual era sócio, fosse condenada a proceder à liquidação do valor da sua quota. Acção que foi julgada procedente apenas em Julho de 1982.
Instaurou execução em Abril de 1984, expôs o estado financeiro daquela sociedade e alertou para a circunstância do mesmo poder pôr em risco a boa cobrança do seu crédito, o que não impediu a sua degradação e a sua falência em Março de 2001. Sendo que só em Julho de 2003 foi notificado do despacho judicial que, apesar de homologar o laudo que fixou a quantia exequenda, não fixou o valor da sua quota.

O TAF considerou que excedia largamente o prazo razoável a decisão final sobre a pretensão do Autor ter demorado 25 anos e que, sendo assim, restava apenas apurar se esse atraso tinha sido responsável pelos prejuízos que aquele queria ver ressarcidos. Interrogação a que deu resposta positiva por resultar da M.F. que B…………, L.da cresceu continuadamente entre os anos de 1986 e 1988 o que lhe permitia proceder ao pagamento da quota do autor nesse período. Daí que se a acção executiva,tivesse demorado um prazo razoável, ou seja entre 2 a 4 anos … o autor teria tido condições para exigir e receber, entre os anos de 1986 e 1988, o valor real da sua quota, mas isso tornou-se impossível porquanto a sentença transitada em julgado a determiná-lo apenas ocorreu em 3 de maio de 2007, ….
Tal significa que está provado o requisito do nexo de causalidade entre a excessiva duração do processo e os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo autor.”
E, procedendo ao cálculo dos prejuízos patrimoniais, concluiu:
“Dá-se por provado o dano patrimonial do autor correspondente ao valor da quota do autor, marido, no valor de € 856.480,45 a 31 de maio de 1979, corrigido pelo fator de correção monetário aplicável, isto é, hoje no valor de € 2.660.407,22, de acordo com a Portaria n.º 400/2015, de 6 de novembro.”
Acrescentando no tocante aos danos não patrimoniais:
“O Tribunal considera perfeitamente verosímil que o autor, antigo industrial dos lanifícios, vivendo desafogadamente até 1979, decide sair da sociedade comercial B…………, L.da aos 52 anos, portanto em plena idade ativa, para com o valor correspondente da sua quota poder planear a sua vida noutro sentido, viu-se confrontado com 25 longos anos de disputa judicial, até conseguir conhecer o valor real da quota que teria direito a receber, aos 77 anos! Ou seja, parte significativa da sua vida ativa, e de sua mulher, foi privada de valores financeiros que é perfeitamente razoável prever terem feito toda a diferença na sua qualidade de vida. Acresce dizer ser, também, razoável admitir-se que à medida que viam as suas idades avançar, as carências e necessidades financeiras também aumentaram, assim como a sua angústia.
Assim, o Tribunal entende como razoável conceder uma indemnização de € 6.000,00 por cada um dos 21 anos em que o processo judicial se arrastou além do prazo razoável … num total de € 126.000,00 … .”
O que o levou a proferir a seguinte decisão:
“Tudo visto e ponderado, julga-se a presente ação parcialmente procedente, condenando-se o Estado Português a pagar ao autor:
i. O valor de € 856.480,45 reportado ao valor da quota do autor a 31/05/1979, atualizado com o fator de correção monetária aprovado e aplicável à data do respetivo pagamento;
ii. O valor de € 126.000,00, a título de danos morais.”

O Estado recorreu para o TCA Sul e este, por Acórdão de 14/06/2018, concedeu parcial provimento ao recurso.
No tocante ao ressarcimento dos danos patrimoniais ponderou:
A insusceptibilidade de o Recorrido se fazer pagar do valor da quota de sócio de saída da sociedade mediante execução do julgado …. tem como evento causal a declaração de falência da sociedade B…………, Lda. por sentença do Tribunal Judicial de Alcanena, de 13.03.2001.
Todavia, a falência da sociedade B…………, Lda. não é imputável ao deficiente funcionamento dos serviços de justiça por omissão de decisão em prazo razoável ... .
E não é imputável porque a entrada em falência da sociedade B…………, Lda. judicialmente declarada em 13.03.2001, constitui um facto de terceiro relativamente ao condicionalismo concreto do proc.° n° 14/C/1982 de liquidação do valor da quota de saída do ora Recorrido.
Sendo certo que a morosidade verificada neste processo conduziu à verificação do dano por omissão de decisão em prazo razoável mas não conduziu à falência da sociedade onde o Recorrido tinha a mencionada quota.
Evidentemente que a falência societária não é completamente indiferente, por ter sido a condição de insusceptibilidade de pagamento ao Recorrido do valor da quota de saída de sócio, mas não significa que essa falência (facto de terceiro) tenha sido a causa adequada na morosidade excessiva do processo de liquidação do valor da quota de saída do Recorrido.”

E no tocante à atribuição de uma indemnização pelos danos não patrimoniais:
“Consequentemente, assente que a ilicitude se refere sempre à duração global do processo e não decorre de uma consideração analítica dos actos de processo e respectivos prazos …. cabe concluir que se considera verificada a ilicitude por funcionamento anormal do serviço concretizada nos 25 anos de decurso global da instância no proc.° n° 14/C/1982 iniciada em 24.02.82 e terminada por decisão com trânsito em julgado em 03.05.2007, do Tribunal Judicial de Alcanena.
Pelo que vem de ser dito, do ponto de vista objectivo, considera-se adequado fixar o quantum no padrão referencial dos valores entre 15 mil e 20 miI euros fixados pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no quadro de petições dirigidas contra o Estado Português, para as acções cíveis cuja duração se prolongou por 14/26 anos.

Tudo visto, considera-se adequado, em juízo de equidade, arbitrar a favor do ora Recorrido a indemnização a titulo de danos não patrimoniais causados pelo funcionamento anormal dos serviços de administração da justiça, no valor de 20.000,00€ (vinte mil euros).
Não se arbitram juros de mora desde a citação até efectivo pagamento no regime dos art.°s 805° n° 2 b) e 806° C. Civil, na medida em que o Autor ora Recorrido não formulou o pedido nesse sentido, conforme decorre da petição inicial (vd. acórdão do STJ de 23.05.2002, tirado no proc.º n° 000329/ITIJINET).
Daí que tivesse proferido a seguinte decisão:
“A. revogar a sentença recorrida no segmento decisório em que determinou o arbitramento indemnizatório por danos patrimoniais referentes ao valor da quota de saída do Recorrido em € 856.480,45;
B. condenar o Estado a indemnizar o Recorrido no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros) por danos não patrimoniais causados pelo funcionamento anormal dos serviços de administração da justiça relativamente ao proc° n° 14/C/1982 do Tribunal Judicial de Alcanena, iniciado em 24.02.82 e terminado por decisão com trânsito em julgado em 03.05.2007.”

3. Como se acaba de ver as instâncias divergiram não só na análise que fizeram acerca do nexo de causalidade entre a falência da sociedade comercial de que o Autor era sócio e os danos patrimoniais que daí, alegadamente, advieram, como na avaliação dos danos não patrimoniais que aquela falência causou.
A análise do nexo de causalidade entre o facto e as causas de que ele decorre é, por vezes, complexa visto envolver raciocínios que, apesar fundados na lógica, não deixam de estar imbuídos de alguma subjectividade, sendo que esta é, muitas vezes, suficiente para fazer pender o juízo decisório num ou noutro sentido. Acrescendo que, no caso, as instâncias foram contraditórias nesse juízo.
O que, por si só, aconselha a admissão da revista.
Por outro lado, são frequentes os recursos de decisões dos Tribunais portugueses para o TEDH sobre a problemática dos autos o que nos inclina a pensar que a admissão da revista também é necessária para uma mais esclarecida aplicação do direito.

DECISÃO
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Porto, 9 de Novembro de 2018. - Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.