Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0357/10
Data do Acordão:04/13/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:DULCE NETO
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIRO
EXECUÇÃO FISCAL
EXTINÇÃO DA DÍVIDA EXEQUENDA
PENHORA DE CRÉDITO
Sumário:I - Os embargos de terceiro não têm por finalidade a averiguação e declaração de direitos ou responsabilidades, mas a extinção de acto ou o levantamento de diligência que o embargante considera ofensiva da sua posse ou incompatível com o direito a que se arroga.
II - A arrecadação, através da penhora de direitos de créditos, de quantia suficiente para solver a dívida exequenda e a sua aplicação no pagamento da dívida, consome e extingue esse acto de penhora, tornando impossível a lide de embargos de terceiro, por carência de objecto.
III - Esse meio processual também não pode ser instaurado após a extinção do processo executivo.
Nº Convencional:JSTA00066922
Nº do Documento:SA2201104130357
Data de Entrada:04/27/2010
Recorrente:A...
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:SENT TAF BRAGA PER SALTUM.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CPPTRIB99 ART167 ART237 ART261 N1.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. A…, com os demais sinais dos autos, recorre da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou procedente a excepção da caducidade do direito de deduzir os presentes embargos de terceiro apresentados contra a penhora de créditos efectuada em três processos de execução fiscal instaurados contra a sociedade B….
Terminou a sua alegação enunciando as seguintes conclusões:
a) O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou extemporâneos os embargos de terceiro deduzidos pela ora recorrente;
b) Os embargos visavam o levantamento da penhora de crédito efectuada à devedora C…;
c) Os embargos foram deduzidos dentro do prazo previsto no artigo 237.° do CPPT, ou seja, antes do decurso de 30 dias desde o conhecimento do acto ofensivo;
d) O douto Tribunal recorrido entendeu, no entanto, por interpretação extensiva, aplicar a parte final do artigo em causa aos presentes autos, considerando extemporânea a apresentação dos embargos por já haver ocorrido a aplicação dos montantes desses créditos;
e) Na verdade a letra da lei é clara referindo-se expressamente à venda de bens;
f) Ora, onde o legislador não distingue não cabe ao intérprete distinguir;
g) A não ser assim, estar-se-ia a desvirtuar o sentido e alcance da lei e até a criar novas normas, totalmente divergentes das que estão em vigor e foram devidamente aprovadas;
h) Não podendo aqui ser esquecida a própria natureza dos embargos que constitui a forma de defesa dos direitos do terceiro que nem sequer é parte na causa e, como tal, não deve ver os seus bens a servirem como forma de exoneração da responsabilidade de terceiros;
i) O que o CPPT faz é criar uma norma protegendo os interesses da embargante e criar uma excepção perfeitamente definida;
j) Não se pode entender que a situação ocorrida in casu é excepcional, sendo certo que a interpretação extensiva, em qualquer caso, só deverá ser ponderada se entendermos que a situação é de tal forma excepcional que o legislador não a podia prever;
k) A interpretação do douto Tribunal recorrido põe em causa o direito de um terceiro que não teve intervenção processual e, por conseguinte, forma de defesa, privando-o irremediavelmente do seu crédito;
l) O legislador foi claro ao não pretender incluir na excepção vertida na parte final do artigo 237.° n.° 3 do CPC a penhora de créditos;
m) Enquanto que na venda de bens existem outros terceiros de boa fé que os vão adquirir, podendo a admissão dos embargos causar grande embaraço aos mesmos que confiam que adquirem o bem livre de qualquer encargo, podendo a eventual anulação da venda acarretar prejuízos avultados, na penhora de créditos nada disso sucede;
n) A não ser assim o terceiro assumiria uma dívida que não é sua;
o) O douto Tribunal recorrido entende que no caso em análise a parte final do artigo 237.° n.° 3 do CPPT abrange situações em que “ocorre a aplicação de quantias pecuniárias penhoradas no pagamento das dívidas exequendas”;
p) O que pode levar à subversão da excepção criada, criando-se uma regra totalmente diferente da legalmente consagrada;
q) Se pensarmos na celeridade dos processos de execução fiscal quando comparada com processos de outra natureza a lesão causada à recorrente é ainda mais evidente;
r) A douta sentença recorrida utiliza um argumento de índole formal, defendendo que a penhora já estava extinta pelo pagamento, ficando os embargos sem objecto;
s) Se este fosse o entendimento do legislador facilmente o teria consagrado na lei, abrangendo assim todas as situações de penhora como parece querer fazer o douto Tribunal recorrido;
t) Não sendo legítimo sacrificar o direito da ora recorrente por uma mera formalidade que não poderá proceder, visto que o que se pretende nos embargos de terceiro é a extinção da penhora com fundamento diferente daquele que se verificou;
u) Não é pelo pagamento que a penhora deve ser extinta mas antes pela conclusão de que a mesma é inadmissível por incidir sobre um direito que não é do executado;
1.2. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.3. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de que devia ser negado provimento ao recurso, com a seguinte argumentação:
«A necessidade de defender direitos através de embargos de terceiro só se coloca se eles forem afectados pelo arresto, penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens. Só podem considerar-se incompatíveis com a realização de diligências daquele tipo, direitos que deixem de poder ser exercidos após a sua realização e a consequente venda.
Será de afastar a possibilidade de deduzir embargos de terceiro, pelo facto dos direitos do embargante serem compatíveis com o arresto, penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, sempre que aqueles direitos não caduquem ou se possam fazer valer.
No caso concreto, a Recorrente celebrou um contrato de factoring com a executada, nos termos do qual esta última se obrigou a submeter à sua aceitação créditos sobre terceiros e aquela se obrigou a tomar por cessão os mesmos. Nos termos da cláusula IX daquele contrato a Recorrente terá direito de regresso sobre a totalidade dos créditos cedidos pela executada (fls. 27).
O direito invocado pela Recorrente não caducou nem se extinguiu por efeito da penhora realizada, visto poder sempre fazê-lo valer contra a executada através do seu direito de regresso, caso lhe tenha adiantado quantia que não venha a receber do devedor daquela.
Aliás, a Doutrina vem entendendo que os direitos de crédito são insusceptíveis de ser violados por acção de terceiros, visto a sua eficácia se restringir às partes, não sendo por isso incompatíveis com a penhora.
Nestes termos entendemos que estes embargos de terceiro deviam ter sido rejeitados liminarmente».
1.4. Colhidos os vistos dos Exmºs Juízes Conselheiros Adjuntos, cumpre decidir em conferência as questões colocadas.
2. A sentença recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto:
A- No Serviço de Finanças de Celorico de Basto foram instauradas contra a sociedade comercial B… as execuções fiscais seguintes:
I. 0388200701010972, para cobrança coerciva de IVA do mês de Junho de 2007 no montante de 19.198,61 euros;
II. 0388200701011073, para cobrança coerciva de coimas fiscais no montante de 253,40 euros;
III. 0388200701014374, para cobrança coerciva de IVA do mês de Setembro de 2007, no montante de 20.714,11 euros.
B- No âmbito das referidas execuções foi efectuada a penhora de créditos no montante de 42.329,18 euros através de notificação à devedora, a sociedade comercial C…;
C- Em 10 de Abril de 2008, foi depositado à ordem das referidas execuções fiscais por parte da referida C…, a quantia de 42.329,18 euros;
D- Em 17 de Abril de 2008, por despachos proferidos nas referidas execuções fiscais, foi determinada a aplicação do montante penhorado no pagamento das quantias exequendas em cada um dos processos;
E- Em 6 de Maio de 2008 ocorreu a confirmação do pagamento da quantia de 21.046,30 euros no âmbito da execução fiscal com o n° 0388200701010972, da qual resultou a extinção dessa execução em 9 de Maio de 2008;
F- Em 6 de Maio de 2008 ocorreu a confirmação do pagamento da quantia de 18,97 euros no âmbito da execução fiscal com o n° 0388200701011073, da qual resultou a extinção dessa execução em 8 de Maio de 2008;
G- Em 6 de Maio de 2008 ocorreu a confirmação do pagamento da quantia de 21.263,91 euros no âmbito da execução fiscal com o n.º 0388200701014374, da qual resultou a redução da quantia exequenda para 1.017,13 euros;
H- Os presentes embargos de terceiro foram instaurados em 9 de Maio de 2008.
3. O objecto do presente recurso restringe-se à questão de saber se a decisão recorrida incorreu em erro ao ter julgado que os presentes embargos foram intempestivamente deduzidos e carecem de objecto, e não, como parece ter entendido o Exm.º Magistrado do Ministério Público, saber se os direitos de crédito são ou não susceptíveis de ser defendidos através de embargos de terceiro.
Com efeito, segundo a decisão recorrida, a lei impõe um limite temporal à dedução de embargos de terceiro no artigo 237.º do CPPT, impedindo que eles possam ser deduzidos depois de os bens terem sido vendidos, e tal norma deve abranger, por interpretação extensiva, as situações em que, apesar de não ter havido um acto de venda, ocorre a aplicação de quantias penhoradas no pagamento da dívida exequenda, pois que «embora aí não possa falar-se do interesse da estabilidade da venda, existe o interesse da estabilidade dos pagamentos efectuados na execução os quais originam, por norma, a respectiva extinção.». Razão por que se entendeu que essa norma abrange situações como a dos autos, em que já houve depósito do montante do crédito penhorado e sua integral aplicação no pagamento das dívidas exequendas.
Para além disso, argumentou-se que com a aplicação do crédito penhorado no pagamento das dívidas exequendas ocorreu a extinção destas dívidas e daquela penhora, pelo que deixando de subsistir a penhora não fará sentido a dedução de embargos de terceiro. «Com efeito, se, por qualquer razão, a penhora já não subsiste, é óbvio que não fará sentido a dedução de embargos de terceiro, pois a finalidade destes consiste, essencialmente e como dissemos, em obter o levantamento da penhora.». Além de que, após «o pagamento efectuado através da aplicação de quantias penhoradas ou depositadas à ordem do processo daí decorrerá, como consequência necessária, a declaração da extinção da execução, conforme decorre do art. 261° n.º 1 do CPPT. Ora, não se compreenderia que, efectuados os pagamentos e extintos, por essa via, os créditos exequendos, pudesse reabrir-se a discussão sobre a penhorabilidade subjectiva dos bens através de embargos de terceiro.».
Discordando do assim decidido, a Embargante, ora Recorrente, defende, essencialmente, que se incorreu em erro ao julgar aplicável o artigo 237.º do CPPT à situação em apreço, porquanto a letra da lei é clara ao referir unicamente o acto de venda como momento a partir do qual não é possível deduzir embargos de terceiro, não cabendo ao intérprete distinguir o que o legislador não distinguiu. E o preceito não suportaria uma interpretação e aplicação extensivas às situações em que já ocorreu a aplicação de quantias ou créditos penhorados no pagamento da dívida exequenda, pois enquanto que «na venda de bens existem outros terceiros de boa fé que os vão adquirir, podendo a admissão dos embargos causar grande embaraço aos mesmos que confiam que adquirem o bem livre de qualquer encargo, podendo a anulação da venda acarretar prejuízos avultados, na penhora de créditos nada disso sucede». A não ser assim, estar-se-ia a desvirtuar o sentido e alcance da lei e a criar novas normas, totalmente divergentes das que estão em vigor, criando-se «um clima se insegurança e incerteza jurídicas em que qualquer pessoa poderia ver os seus bens a responderem por dívidas alheias, vendo a sua defesa comprometida por legitimamente terem confiado na lei enquanto o intérprete recriava a mesma da forma mais conveniente em cada caso.».
Por outro lado, quanto ao segundo fundamento utilizado pelo julgador – de a penhora já se encontrar extinta quando foram deduzidos os embargos – a Recorrente entende que se trata de um argumento de índole puramente formal, e que não é legítimo sacrificar o seu direito de embargar por uma mera formalidade que não deverá proceder, pois que o que se pretende nos embargos é a extinção da penhora com fundamento diferente daquele que se verificou.
Vejamos.
Da factualidade fixada na decisão, e que não vem controvertida, resulta claramente que em 9 de Maio de 2008 a ora Recorrente deduziu embargos de terceiro à penhora efectuada em três processos de execução fiscal instaurados contra a sociedade B…, penhora que incidiu sobre direitos de créditos que esta detinha sobre a sociedade C…, no montante de 42.329,18 €, e que esta havia depositara em 10 de Abril de 2008 à ordem dessas execuções.
Com esse meio processual pretendia a Embargante obter o levantamento dessa penhora, com o argumento de que os créditos penhorados lhe haviam sido cedidos pela executada através de contrato de factoring, na sequência do qual a Embargante lhe pagara o montante dos créditos que detinha sobre a sociedade C…, passando estes a pertencer-lhe a si, e não à executada, pelo que a penhora ofenderia os seus direitos, como cessionária, sobre esses créditos.
Todavia, no momento em que os embargos foram deduzidos já ocorrera a aplicação do montante dos créditos penhorados no pagamento das dívidas exequendas, estando, por via disso, totalmente extintas as execuções n.º 0388200701010972 e n.º 0388200701011073, e parcialmente extinta a dívida em cobrança na restante execução.
Com efeito, a arrecadação de importâncias pecuniárias na execução - através do depósito do montante dos créditos penhorados e da sua aplicação no pagamento das quantias exequendas -constitui forma válida de extinção das dívidas em cobrança e de extinção dos respectivos processos executivos, em harmonia coo o disposto no artigo 261.° n.º 1 do CPPT, assim se compreendendo a extinção daquelas duas execuções pelo órgão da execução fiscal [alíneas E) e F) do probatório] e a redução da quantia exequenda na restante execução [alínea G) do probatório].
Ora, como é sabido, e resulta inequivocamente do disposto no artigo 167.º do CPPT, os embargos de terceiro constituem um incidente da instância executiva, um incidente com uma tramitação dependente do processo executivo, tendo por objecto «o arresto, a penhora ou qualquer outro acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens» (artigo 237.º do CPPT) e por finalidade permitir a participação de um terceiro que se diz titular de uma situação jurídica subjectiva incompatível com qualquer desses actos, devendo, por isso, ser deduzidos contra o exequente e o executado.
Tendo em conta esta ligação funcional e instrumental do processo judicial de embargos ao processo judicial de execução, é óbvio que uma vez finda a execução por se ter alcançado o fim a que se dirigia (a cobrança da dívida e do acrescido), deixa de justificar-se a pendência ou a nova instauração de embargos de terceiro destinados à eliminação de diligências e actos judiciais que naquela haviam sido ordenados e/ou praticados com vista à cobrança da dívida. Como se deixou dito na decisão recorrida, não se compreenderia que, efectuados os pagamentos e extintos, por essa via, os créditos exequendos, pudesse reabrir-se a discussão sobre a penhorabilidade subjectiva dos bens através de embargos de terceiro.
Assim sendo, e porque a finalidade dos embargos de terceiro não é a de apurar direitos ou responsabilidades, mas extinguir ou fazer levantar uma diligência ou acto praticado na execução que o embargante considera ofensiva da sua posse ou incompatível com um direito a que se arroga, não pode deixar de concluir-se que com o desaparecimento do acto ou da diligência, consumida pela arrecadação de importâncias suficientes para solver a dívida e pela extinção do próprio processo executivo, se torna impossível a lide de embargos de terceiro, por carência de objecto.
O que significa que, no caso, a extinção da dívida e dos processos executivos que visavam a sua cobrança, implicou o desaparecimento do próprio acto de penhora, da qual não restam efeitos remanescentes susceptíveis de serem atingidos pelo pedido do seu levantamento.
Concordamos, assim, com o que se deixou afirmado na decisão recorrida, no sentido de que «a procedência dos embargos de terceiro, enquanto meio processual destinado à obtenção do levantamento/extinção da penhora depende, logicamente, da existência dessa penhora. (...) se, por qualquer razão, a penhora já não subsiste, é óbvio que não fará sentido a dedução de embargos de terceiro, pois a finalidade destes consiste, essencialmente e como dissemos, em obter o levantamento da penhora. Estando em causa a penhora de um crédito pecuniário cujo montante foi depositado, a aplicação desse montante no pagamento implica, inelutavelmente, a extinção da penhora, deixando de fazer sentido lançar mão de um meio processual que se destina, justamente, a obter tal extinção. Os embargos ficarão, em tal caso, sem objecto.».
Por conseguinte, os embargos de terceiro não podem ser deduzidos num momento em que a penhora deixou de subsistir por virtude da integral aplicação das importâncias depositadas por força da penhora e da consequente extinção da dívida exequenda e do processo executivo, por carência de objecto.
Deste modo, e independentemente da questão de saber se o artigo 237.º do CPPT deve ou não ser aplicado, por interpretação extensiva, à situação em apreço, o certo é que os presentes embargos foram deduzidos num momento em que já não o podiam ser, por carecidos de objecto processual próprio, o que determina a impossibilidade originária da respectiva lide.
Nestas condições, não pode obter provimento o recurso.
4. Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas a cargo da Recorrente, com procuradoria que se fixa em 1/6.
Lisboa, 13 de Abril de 2011. - Dulce Manuel Neto (relatora) - Valente Torrão - Brandão de Pinho.