Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0417/16
Data do Acordão:06/01/2016
Tribunal:PLENÁRIO
Relator:COSTA REIS
Descritores:ACÇÃO DE RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
TRIBUNAL COMPETENTE
RELAÇÃO JURÍDICA ADMINISTRATIVA
RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA
Sumário:I - Não é a função – administrativa ou tributária – em que a Administração exerce o seu poder que determina a competência do Tribunal para o julgamento do conflito, visto essa competência decorrer do facto do conflito emergir de uma relação jurídica ou de uma relação jurídica tributária.
II - Só se pode falar em relação jurídica tributária quando um dos seus sujeitos for uma das entidades identificadas no n.º 3 do art.º 1.º da LGT e o seu objecto for a liquidação e cobrança de tributos ou a resolução dos conflitos daí decorrentes (art.º 30.º do mesmo diploma) como só se pode falar em relação jurídica administrativa se o sujeito público que nela intervém não for uma das citadas entidades e não prosseguir as finalidades prosseguidas pela Administração tributária.
III - Tendo sido proposta uma acção administrativa comum para efectivação de responsabilidade civil extracontratual do Estado – com vista à condenação deste no pagamento de uma quantia que repare os danos sofridos pelo Autor em resultado de uma venda ocorrida numa execução fiscal que, por ser ilegal, foi judicialmente anulada – não se está perante um conflito emergente de uma relação jurídica tributária tout court mas perante um conflito que, apesar de ter a sua origem na actividade da Administração Tributária, nasce por razões que nada têm a ver com a relação jurídica tributária.
IV - Por ser assim aquela acção é uma típica acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado a qual se rege por normas de direito civil (Cod. Civil) e de direito administrativo (Lei 67/2007, de 31/12), o que, desde logo, determina que seja a área administrativa dos TAF a competente para o seu conhecimento.
Nº Convencional:JSTA000P20623
Nº do Documento:SAP201606010417
Data de Entrada:04/05/2016
Recorrente:JUIZ DO TAF BRAGA (CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO)
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO PLENÁRIO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

1. A………, L.DA intentou na área administrativa do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (doravante TAF), contra o ESTADO PORTUGUÊS, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, acção administrativa comum pedindo a condenação do Réu no pagamento da quantia de € 27.973,28, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4% até efectivo e integral pagamento, devida pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe causou.
Para tanto alegou ter adquirido um prédio urbano que havia sido penhorado e posto à venda num processo de execução fiscal, que correu termos no 2.º Serviço de Finanças de V.N. de Famalicão, tendo para o efeito pago o respectivo preço, liquidado o correspondente imposto de selo e registado essa aquisição na competente Conservatória de Registo Predial. Sucede, porém, que a executada instaurou no TAF de Braga um incidente de anulação da referida venda e aquele Tribunal julgou-o procedente e, consequentemente, anulou-a com fundamento de que a Administração Fiscal tinha procedido a essa venda sem, previamente, ter notificado a executada do despacho que a determinou. Todavia, apesar da Autora ter pedido a devolução do preço que tinha pago e dos encargos que essa aquisição lhe provocara, certo é que a Administração Fiscal ainda não lhe devolveu essas quantias. Encontravam-se, assim, reunidos os pressupostos de que dependia a efectivação da responsabilidade civil extracontratual e a consequente condenação do R.

O Réu contestou, tendo suscitado a questão da incompetência da área administrativa, em razão da matéria, para conhecer da causa.

O Sr. Juiz a quem a acção foi distribuída, por decisão de 24/03/2014, julgou a área administrativa daquele TAF incompetente em razão da matéria para conhecer do mérito da acção, competência que atribuiu à sua área tributária por considerar que a relação jurídica que fundamentava o pedido tinha natureza tributária e não administrativa.

O processo foi, pois, distribuído a um juiz afecto à jurisdição tributária do TAF que, por sua vez, julgou a área tributária desse Tribunal materialmente incompetente uma vez que, “atento o pedido e a causa de pedir, não estamos perante um conflito emergente de uma relação jurídica tributária mas um conflito que, apesar de ter a sua génese na actividade da Administração Tributária, nasce por razões que nada têm a ver com a relação jurídica tributária.”
Por essa razão ordenou a remessa ao Plenário deste Supremo Tribunal para que se resolvesse o conflito negativo de competência assim gerado.

Cumpre, pois, decidir.

2. A questão que se coloca neste conflito de jurisdição (art.º 29.º do ETAF) é, como se vê, a de saber qual a área - administrativa ou tributária - do TAF de Braga que é materialmente competente para apreciar e decidir a acção administrativa comum intentada contra o Estado com vista a obter a condenação deste no pagamento de uma quantia que indemnize a Autora dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, provocados por uma alegada conduta ilícita e culposa dos seus serviços.

Este Plenário tem declarado, de forma reiterada e uniforme, que é nos Tribunais Administrativos que se localiza a competência material para conhecer e decidir as acções de responsabilidade civil extracontratual dirigidas contra pessoas colectivas de direito público. – Acórdãos de 9/05/2012 (proc. n.º 0862/11), de 29/01/2014 (proc. n.º 01771/13), de 10/09/2014 (proc. n.º 0621/14), de 15/10/2014 (proc. n.º 0873/14) e de 14/05/2015 (proc. n.º 1152/14).
Daí que, inexistindo razões para divergir dessa jurisprudência, se acolha e se reitere o que nela vem sendo afirmado pelo que nos limitaremos a reproduzir o que sobre a questão foi dito no Acórdão de 29/01/2014 (proc. 01771/13), onde também estava em causa uma acção administrativa para efectivação de responsabilidade civil extracontratual do Estado pela prática de acto praticado por funcionários integrados na Administração Fiscal.

Escreveu-se nesse Aresto:
“2. É sabido que, nos termos constitucionais, compete aos tribunais administrativos e fiscais “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais" (seu art.º 212.º/3), normativo que foi vertido para a legislação ordinária pelo ETAF onde se dispôs que “os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.” (seu art.º 1.º/1).
O que quer dizer que, nesta jurisdição, o que determina a competência material do Tribunal é a circunstância do conflito cuja resolução se pretende ter emergido de uma relação jurídica administrativa ou de uma relação jurídica fiscal. No primeiro caso será competente o Tribunal Administrativo, no segundo essa competência caberá ao Tribunal Tributário.
A natureza da relação jurídica que está na origem do dissídio é, assim, o elemento chave na tarefa de identificação do Tribunal competente para o julgamento.
O que nos força a definir o que se deve entender por relação jurídica administrativa e por relação jurídica tributária por tais definições serem essenciais na economia da decisão que temos de tomar.

2. 1. O conceito de relação jurídica administrativa não tem assento legal o que não impede que possamos considerá-la, para este efeito, como uma relação que se estabelece entre dois ou mais sujeitos regulada por normas de direito administrativo, em que desses sujeitos é uma entidade ou um órgão da Administração Pública que actua no exercício de poderes de autoridade que lhe são próprios com vista à satisfação do interesse público.
Já o mesmo não acontece com a noção de relação jurídica tributária visto esta não só terem definição legal – são as “estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas” (art.º 1.º/2 da Lei Geral Tributária) - como têm o seu objecto normativamente especificado e têm indicadas as entidades da Administração Tributária que podem figurar como sujeitos dessa relação.
Não se pense, porém, que as relações jurídicas administrativas e as relações jurídicas fiscais se repelem mutuamente ou que é possível traçar entre elas uma clara e inultrapassável linha divisória pois o facto de um dos seus sujeitos ser, forçosamente, uma entidade ou órgão da Administração não só destrói essa ideia como nos leva a concluir que, na sua essência, a relação jurídica tributária é uma espécie de um género mais abrangente, a relação jurídica administrativa. Conclusão que resulta do facto de um dos sujeitos daquela relação estar integrado na Administração e de, por isso, ao menos mediatamente, a mesma ter natureza administrativa e ser, subsidiariamente, regulada por normas de direito administrativo (art.º 2.º/c) da LGT).
Por ser assim é que, por um lado, a lei fala em competências administrativas no domínio tributário (n.º 3 do art.º 1.º da LGT) e, por outro, o legislador teve grande preocupação em definir com rigor o conceito de relação jurídica tributária e de identificar as entidades que, em nome da Administração, nelas podiam intervir. Preocupação resultante da necessidade de a autonomizar, teórica e praticamente, perante a relação jurídica administrativa e de, nessa medida, se evitarem os problemas que poderiam advir de uma eventual confusão de conceitos.
Podemos, assim, dar por adquiridas duas importantes certezas; a primeira, é a de que a identificação do Tribunal competente para o julgamento da causa se afere em função da natureza administrativa ou tributária da relação donde emerge o litígio e, por conseguinte, não é a função – administrativa ou tributária – em que a Administração exerce o seu poder que a determina; a segunda, é a de que só se pode falar em relação jurídica tributária quando um dos seus sujeitos for uma das entidades legalmente identificadas (art.º 1.º/3 da LGT) e o seu objecto for a liquidação e cobrança de tributos ou a resolução dos conflitos daí decorrentes (art.º 30.º do mesmo diploma) e de que estaremos perante uma relação jurídica administrativa se, por um lado, o sujeito público que nela intervém não for nenhuma das citadas entidades e, por outro, essa intervenção não se destinar a prosseguir as finalidades cometidas à Administração Tributária.

2. 2. O que fica dito elucida-nos das razões que levaram o legislador a definir a competência dos Tribunais Administrativos de uma forma muito ampla e genérica e do mesmo não ter sucedido quando se tratou de definir a competência dos Tribunais Tributários. Com efeito, enquanto o art.º 44.º/1 do ETAF estatuiu que cabe aos Tribunais Administrativos conhecer “de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa”, o seu art.º 49.º indicou com rigor as matérias cujo julgamento era da competência dos Tribunais Tributários - as acções onde se impugnem os actos de fixação dos valores patrimoniais ou de fixação da matéria colectável, bem como os actos liquidação dos tributos, de aplicação de coimas e dos incidentes relacionados com esses actos e, além destas, das “demais matérias que lhes sejam deferidas por lei” [al.ª f)].
O que quer dizer que, se bem virmos, o legislador configurou os Tribunais Administrativos como uma espécie de Tribunal comum da jurisdição administrativa - vocacionados para julgar todos os conflitos que lei não comete especificamente aos Tribunais Tributários – e que a competência atribuída aos Tribunais Tributários foi definida em termos bem precisos e rigorosos – cabe-lhe julgar os conflitos emergentes das relações jurídicas tributárias elencadas na lei – o que tem por consequência que estes não podem ser chamados a intervir se inexistir disposição legal a atribuir-lhes a competência para o julgamento do conflito em questão.

Por ser assim não é lícito afirmar que o facto de inexistir no elenco do art.º 49.º do ETAF uma referência aos litígios decorrentes de responsabilidade civil emergente de questões fiscais é insuficiente para declarar que os Tribunais Tributários são incompetentes para o julgamento das acções fundadas naquela responsabilidade e não é lícito porque essa omissão quer, justamente, significar que o legislador não quis que essa matéria integrasse a competência dos Tribunais Tributários.
E de nada vale convocar o que se dispõe no art.º 4.º/1, al.ªs g) e h) do ETAF para contrariar o que fica dito, uma vez que estatuir que os Tribunais Administrativos e os Tribunais Tributários são competentes para julgar questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, sem especificar a quem cabe esse julgamento em cada caso, remete-nos para as normas gerais de atribuição de competência contidas nos art.ºs 44.º e 49.º do ETAF. E, como já sabemos, destas resulta que a competência para julgar acções fundadas naquela responsabilidade não está cometida aos Tribunais Tributários.
De resto, é muito significativo que o processo tributário não inclua as acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil extracontratual como uma das formas dos contribuintes poderem defender os seus direitos.”

3. No caso, a Autora instaurou contra o Estado uma acção administrativa comum para efectivação de responsabilidade civil extracontratual tendo em vista a sua condenação no pagamento de uma quantia que a ressarcisse dos danos sofridos em resultado da sua actuação ilícita e culposa - consubstanciada na não devolução das quantias que havia pago em resultado de ter adquirido um prédio urbano penhorado numa execução fiscal e de tal venda ter sido judicialmente anulada por a mesma ter sido realizada sem que, previamente, a Administração Fiscal tivesse notificado a executada dessa venda.
O que evidencia, de forma clara, que o que está em causa não é um conflito emergente de uma relação jurídica tributária mas um conflito que, apesar de ter a sua génese na actividade da Administração Tributária, nasce por razões que nada têm a ver com a relação jurídica tributária. O que nos permite concluir estarmos perante uma típica acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado - que se rege pelas normas de direito civil (art.ºs 483.º e seg.s Cod. Civil) e de direito administrativo (Lei 67/2007, de 31/12) – e não perante um conflito emergente de uma relação jurídica tributária cuja resolução tenha de apelar a normas de direito tributário.
E porque assim o Tribunal Tributário é materialmente incompetente para o conhecimento desta acção.

Termos em que os Juízes que compõem este Plenário acordam em anular a decisão do Sr. Juiz da área administrativa do TAF de Braga que julgou esta área materialmente incompetente para conhecer e julgar esta acção e em declarar que essa competência lhe pertence.
Sem custas.

Lisboa, 1 de Junho de 2016. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Dulce Manuel da Conceição Neto – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Jorge Artur Madeira dos Santos – Joaquim Casimiro Gonçalves – Isabel Cristina Mota Marques da Silva – José da Ascensão Nunes Lopes.