Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0207/19.7BEFUN
Data do Acordão:10/14/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO FISCAL
DÍVIDA
CONTRATO
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário:I - A obrigação pecuniária emergente de um contrato celebrado entre o município Utilizador de um sistema multimunicipal de águas e de resíduos da Região Autónoma da Madeira e a empresa concessionária daquele não tem natureza tributária;
II - Na execução fiscal da obrigação pecuniária emergente de um contrato, que não foi liquidada no prazo contratualmente previsto, e relativamente à qual foi extraída, nos termos legais, certidão com valor de título executivo, os seus requisitos de validade são os que constam das regras legais e contratuais para a validade do título, bem como aqueles que resultam do disposto no artigo 163.º do CPPT, e não os constantes das normas dos artigos 36.º e 39.º, n.º 12, do CPPT;
III - A oposição à execução fiscal não é a via adequada para discutir a legalidade das dívidas emergentes de contratos, mesmo quando essas dívidas sejam, por lei, equiparadas a dívidas ao Estado ou a uma Região Autónoma.
Nº Convencional:JSTA000P26472
Nº do Documento:SA2202010140207/19
Data de Entrada:07/22/2020
Recorrente:MUNICÍPIO DO FUNCHAL
Recorrido 1:ARM – ÁGUAS E RESÍDUOS DA MADEIRA, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1 – Relatório

O Município do Funchal recorre para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que julgou improcedente a oposição deduzida contra a execução fiscal nº 2810201901051750, instaurada para cobrança da quantia de €72.828,34 euros, relativa a dívida titulada por certidão emitida pela “ARM – Águas e Resíduos da Madeira, S.A.”, decorrente da prestação de serviços de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos.

O recorrente conclui a sua alegação de recurso nos seguintes termos:

“1ª A douta sentença recorrida, ao decidir como decidiu, fez uma incorreta aplicação do direito aos factos que se encontram documentalmente provados ao considerar a oposição em causa nos autos improcedente, e ao determinar que a ARM, SA. não procedeu à cobrança coerciva de um tributo, mas de um preço contratualmente assumido.
2ª Ora os supostos créditos da recorrida relativos à prestação destes serviços em “alta” apesar de serem titulados por faturas não deixam de possuir a natureza coactiva, característica de todos os tributos públicos.
3ª Dado que a ARM é a sociedade concessionária do sistema multimunicipal de águas e de resíduos da Região Autónoma e não se encontra no mercado prestações sucedâneas daquelas e a fixação destas contraprestações pela utilização desses serviços está subtraída à lógica ou às regras do mercado uma vez que é fixada autoritariamente, através de Resoluções, da Presidência do Governo Regional e posteriormente através do contrato de concessão celebrado entre a Região Autónoma da Madeira e a ARM.
4ª A contraprestação em causa nos autos é uma taxa uma vez que estamos perante uma prestação coativa, com vista à compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelos sujeitos passivos.
5ª Apesar da natureza sui generis deste processo de execução fiscal e dos créditos que procura cobrar também se aplicam aqui as regras e formalismos próprios das notificações estabelecidas nos artigos 35.º e seguintes do CPPT e os fundamentos de oposição que se encontram consagrados no artº. 204, nº.1, do C.P.P.T..
6ª A sentença recorrida considerou que se aplicava no caso dos autos as situações previstas no art.º 44.º do CPPT, pelo que, na sucessão de atos dirigida à declaração destes créditos incluem-se as regras estabelecidas nos artigos 36.º e 39°, n.º 12 do CPPT.
7ª A sentença recorrida concluiu que os formalismos e critérios na fixação/determinação do preço constam do clausulado a que as partes se vincularam, bem como do regime legal, em especial do documento “Bases da Concessão da Exploração e Gestão do Sistema Multimunicipal de Águas e de Resíduos da Região Autónoma da Madeira” anexo ao Decreto-Legislativo Regional n.º 17/2014/M.
8ª Como tal diploma é omisso sobre qual é a sucessão de atos dirigidos à declaração deste crédito, mesmo através desse raciocínio teria de se concluir que se aplicam os artigos 36.º e 39°, n.º 12 do CPPT.
9ª Por outro lado, ao aplicar-se a esta execução fiscal as normas referentes à cobrança coerciva de dívidas exigíveis em processo de execução fiscal, sempre se terão de aplicar os fundamentos de oposição previstos no artº. 204º, nº.1, do C.P.P.Tributário.
10ª A sentença recorrida violou os valores constitucionais, ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, ao fazer uma interpretação da alínea g), do n.º 1 do art.º. 13.º, da alínea a) do artigo 16.º e do artigo 16º-A do Decreto-Legislativo Regional n.º 17/2014/M, na redação dada pelo Decreto-Legislativo Regional n.º 6/2015/M, de 13 de agosto, manifestamente violadora do princípio da tutela judicial efetiva
11ª Dado que os regimes adjetivos devem conformar-se com o princípio da proporcionalidade e não criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.
12ª A interpretação que a decisão recorrida fez da alínea g), do n.º 1 do art.º. 13.º, da alínea a) do artigo 16.º e do artigo 16º-A do Decreto-Legislativo Regional n.º 17/2014/M, na redação dada pelo Decreto-Legislativo Regional n.º 6/2015/M, de 13 de agosto desprotege gravemente os direitos do recorrente, assim ofendendo os artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.
13ª O recorrente na sua oposição invocou a inexigibilidade da dívida, nos termos do art.º 204, nº.1, al.) i), do C.P.P.T., uma vez que a suposta dívida em causa nos autos apesar de não ser exigível está a ser cobrada em processo de execução fiscal.
14ª Uma vez que a factura que está na base da presente execução fiscal, não contém os elementos previstos no artigo 36.º do CPPT pelo que é ineficaz, em relação ao recorrente conforme resulta dos n.ºs 1 e 2 do artigo 36.º do CPPT.
15ª Este acto de notificação/fatura é ainda nulo, nos termos do artigo 161.°, n.º 1 do Código de Procedimento Administrativo e do artigo 39°, n.º 12 do CPPT, por não permitir descortinar quem é o órgão autor do ato, dado que apenas tem aposto no topo superior esquerdo o timbre da ARM, sem qualquer assinatura.
16ª Se assim se não entender, sempre se dirá que, no caso “sub judice”, a Lei que permite à ARM cobrar as taxas e tarifas e demais importâncias devidas pela utilização do sistema de águas e de resíduos através do processo de execução fiscal não assegura meio judicial de impugnação ou recurso contra o acto de liquidação que emite.
17ª Motivo pelo qual neste caso, sempre será fundamento de oposição à execução fiscal a discussão da ilegalidade do acto tributário (liquidação) e da ilegalidade da dívida exequenda, ao abrigo da al) h), do n.º 1, do artº. 204, do C.P.P.Tributário.
18ª O ato de liquidação desta taxa não teve por base quaisquer elementos fornecidos para o efeito pelo Município do Funchal, pelo que deve entender-se que este deveria ter sido chamado a exercer o seu direito à audição prévia.
19ª Não o tendo feito, a ARM incorreu num vício de procedimento na liquidação desta taxa, pelo que é anulável, nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do CPA, por falta de fundamentação, violando o disposto no artigo 286.º, n.º 3 da CRP e no artigo 77.º da LGT.
20ª Por outro lado, verifica-se também, que este ato de liquidação é anulável, nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do CPA, por falta de fundamentação, violando o disposto no artigo 286.º, n.º 3 da CRP e no artigo 77.º da LGT.
21ª A sentença recorrida violou os artigos n.ºs 36.º, 39°, n.º 12, 44º, 204, nº.1, do C.P.P.T., artigo 163.º, n.º 1 do CPA, artigos 60.º, n.º 1, alínea a) e 77.º da LGT e ainda os artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, ao fazer uma interpretação da alínea g), do n.º 1 do art.º. 13.º, da alínea a) do artigo 16.º e do artigo 16º-A do Decreto-Legislativo Regional n.º 17/2014/M, na redação dada pelo Decreto-Legislativo Regional n.º 6/2015/M, de 13 de agosto, manifestamente violadora do princípio da tutela judicial efetiva.
Por tudo o que ficou dito e pelo muito que será suprido deverá ser dado provimento ao presente recurso e revogada a sentença recorrida, sendo elaborada nova decisão que declare extinto este processo de execução fiscal, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 204.º do C.P.P.T, tudo com as legais consequências,
Como é de JUSTIÇA”

Contra-alegou a recorrida, concluindo nos seguintes termos:

A) As decisões contidas na sentença que foram impugnadas pelo Recorrente cingem-se na redacção do próprio Recorrente, à:
i) Inexigibilidade da dívida exequenda – falta de notificação dos elementos essenciais previstos nos artigos 36.º e seguintes do CPPT e nulidade “da notificação do ato tributário (liquidação),” por não identificação do autor do ato, nos termos do n.º 1 do artigo 161.º do CPA e n.º 12 do artigo 39.º do CPPT;
ii) Ilegalidade do ato tributário – liquidação – por preterição do direito de audiência prévia e por violação do dever de fundamentação.
B) Sem razão, porém, uma vez que a sentença recorrida fez uma correta aplicação do Direito aos factos, devendo julgar-se o recurso improcedente, como passamos a demonstrar.
C) No que toca à inexigibilidade, verifica-se que o Recorrente lança mão de um concreto argumento que, anteriormente, jamais havia invocado, a saber a pretensa violação do Princípio da Tutela Jurisdicional Efectiva por suposta impossibilidade de reação, administrativa ou judicial, contra a factura que titula as suas dívidas perante a ARM em execução nos autos.
D) Ora, tais apontadas violações dos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP nunca antes haviam sido invocadas, o que levou a que o Tribunal a quo não se tenha, sobre as mesmas pronunciado.
E) Assim, os vícios de inconstitucionalidades apenas suscitados pelo Recorrente em sede de recurso não podem ser apreciados, devendo dar-se como não escritos, sob pena de violação do disposto nos artigos 268.º do CPC e 108.º, n.º 1, do CPPT.
F) Sem prejuízo, certo é que, conforme resulta dos factos dados como provados, o Recorrente instaurou uma acção administrativa especial de impugnação, que ainda corre termos, através da qual peticionou a desaplicação das resoluções que fixaram os valores das tarifas a aplicar aos serviços de tratamento de resíduos em alta a prestar pela ARM.
G) O que demonstra que existem meios judiciais ao seu alcance – de que o mesmo fez uso – para reagir contra os preços/tarifas definidos e que não está o mesmo limitado no seu direito de acesso aos Tribunais e à Justiça.
H) Se aquilo de que o Recorrente discorda são as tarifas, então reagiu em sede própria e a Justiça não deixará de analisar a sua pretensão.
I) Já sendo a discordância do Recorrente contra a concreta medição e pesagem dos resíduos tratados em alta pela ARM, que depois legitima a realização dos cálculos aritméticos por aplicação das tarifas em vigor, então cumpre frisar que o Recorrente tem acesso, prévio à emissão das facturas, aos documentos onde se contempla a pesagem/contagem das toneladas de resíduos tratados pois o contrato celebrado prevê a forma da sua contabilização.
J) Ora, ao longo de todos estes anos de prestação de serviços pela ARM, jamais o Recorrente pôs em causa, em algum momento, a concreta quantidade de toneladas de resíduos tratadas, a efectiva prestação dos serviços ou a correção do mesmo. Na verdade, sempre optou por nada contestar quanto a tal.
K) Estando-se perante preços de serviços contratualizados, assistiam ao Recorrente os meios judiciais ou outros que entendesse para reagir contra a exigência de pagamento dos mesmos, fosse devolvendo as facturas, fosse impugnando a sua validade, comunicando o não reconhecimento do crédito, ou o não conhecimento da entidade emissora, tudo aquando da respetiva notificação, o que mesmo nunca fez.
L) Mais, defendendo estarmos perante tributos, o Recorrente não poderia ignorar que teria meios próprios de reacção contra os mesmos, fosse por via de reclamação fosse por via de impugnação, meios que optou por nunca utilizar.
M) Acresce que, é inegável que o Tribunal a quo conheceu dos argumentos invocados pelo Recorrente no seu recurso, o que consubstancia a prova de que o mesmo teve ao seu alcance meios de reação contra as faturas, apenas não tendo merecido provimento os seus argumentos.
N) É, assim, forçoso concluir que o Recorrente não foi cerceado nos seus direitos de defesa perante a cobrança das dívidas que contraiu, sendo este processo, também, prova da falsidade desse argumento.
O) Chegados ao âmago da argumentação do Recorrente – que se centra na natureza da dívida exequenda – diremos que o recurso não pode proceder, uma vez que a tese da Recorrente assenta em conclusões que pressupõem factos que não foram dados como provados na sentença recorrida (em rigor, nunca foram alegados pelo Recorrente).
P) De facto, o Recorrente alega que “não se encontram no mercado prestações sucedâneas daquelas que a ARM realiza, pelo que o recorrente se vê por isso verdadeiramente coagido a recorrer aos seus serviços, uma vez que não existe concorrência para que possa optar por outro fornecedor” e que “a fixação destas contraprestações pela utilização desses serviços está subtraída à lógica ou às regras do mercado uma vez que é fixada autoritariamente”.
Q) Salvo melhor opinião, parece-nos que é impossível a este Supremo Tribunal ajuizar e decidir se as conclusões do Recorrente são procedentes, dado que a sentença não deu como provados factos capazes de sustentar essas conclusões, nem o Recorrente impugnou a decisão proferida pelo Tribunal a quo no que diz respeito à matéria de facto.
R) Sem prejuízo, sempre se dirá que à luz do disposto no artigo 4.º, n.º 2, da LGT, o pagamento da taxa corresponde ao cumprimento da obrigação pecuniária de um dos sujeitos (o devedor) desta relação bilateral ou sinalagmática, recaindo em contrapartida sobre o credor da taxa uma obrigação que pode revestir uma das seguintes formas: i) prestação concreta de um serviço público, ii) utilização de um bem do domínio público ou iii) remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares.
S) Sucede que no caso dos presentes autos, não estamos perante uma relação jurídica entre um particular e um Município, que nasce de uma imposição legal dirigida à prestação de um serviço público mediante uma contrapartida unilateralmente fixada pela Administração.
T) Trata-se, antes, de uma relação jurídica constituída através de um contrato negociado e celebrado (a 03/10/2005) entre um Município e uma empresa de capitais públicos criada pela Região Autónoma da Madeira e vários Municípios, por via do qual se convencionou que, em contrapartida do serviço prestado, o Município pagará à Exequente ARM um preço fixado de acordo com a trajetória tarifária prevista no contrato de concessão, previamente conhecida de todos os Municípios, incluindo o Recorrente.
U) Além disso, ao contrário do que sucede nessa típica relação de serviço público, no caso dos presentes autos são os próprios Municípios que figuram como acionistas da ARM, aos quais são reservados poderes de controlo e fiscalização da atuação da sociedade.
V) Acresce que as tarifas são diferenciadas e variam de Município para Município, tendo por base as necessidades de cada um deles.
W) O que significa que o sistema multimunicipal de águas e resíduos da RAM e o sistema tarifário respetivo, não foi criado à margem dos Municípios e não lhes foi coativamente imposto, como o Recorrente defende e como sucede nos casos tratados pela doutrina e jurisprudência citada nas alegações de recurso.
X) Verifica-se, igualmente, que o Município Recorrente não é o beneficiário direto do serviço público concedido à Exequente ARM (esses são os cidadãos e empresas do Funchal), mas antes a entidade que contratou a concessionária ARM para, em sua substituição, prestar esse serviço aos cidadãos e empresas do Funchal.
Y) Não é, portanto, concebível que o preço cobrado pela Exequente ARM através da fatura sub judice possa qualificar-se como uma taxa, que, segundo a noção do n.º 2 do artigo 4.º da LGT, assenta na prestação concreta de um serviço público (prestado aos cidadãos e empresas e não propriamente ao Município).
Z) A forma como o Recorrente coloca a questão ignora, nomeadamente, o próprio conteúdo do DLR n.º 17/2014/M, no âmbito de cuja elaboração o Recorrente foi ouvido (como decorre do preâmbulo desse diploma), assim como pretende branquear o facto central de que a adesão dos Municípios ao sistema multimunicipal de gestão de águas e resíduos da RAM é feito por adesão voluntária,
AA) Tendo-se obrigado, através desse contrato, ao pagamento, de acordo com os critérios definidos no contrato de concessão celebrado entre a ARM e a RAM (no âmbito de cuja feitura, reiterase, o Município do Funchal foi ouvido) dos serviços prestados pela ARM no âmbito do tratamento e recolha de resíduos sólidos.
BB) Ademais, é falso que a sentença diga que considera aplicável aos autos o disposto no artigo 44.º do CPPT, como refere o Recorrente para sustentar a sua argumentação de que estamos perante actos tributários, a que seriam aplicáveis as normas do CPPT.
CC) A sentença diz, sempre, precisamente o inverso (que não é de aplicar à situação em análise as regras do procedimento tributário).
DD) Também é falsa a construção do Recorrente segundo a qual o que legitimaria a desnecessidade de recurso às normas do CPPT – segundo a sentença – seria o regime do DLR 17/2014/M, nomeadamente as Bases da Concessão a ele anexas. A tónica da sentença é sempre colocada na existência do contrato celebrado entre Recorrente e Valor Ambiente, S.A./ARM, o que o mesmo pretende manter oculto apesar de saber bem que é o motivo central da improcedência da sua oposição.
EE) Ora, existindo esse contrato, e decorrendo do mesmo os procedimentos a seguir para cobrança dos preços por parte da ARM, nomeadamente mediante a emissão de facturas, não cabe recorrer a outro mecanismo ou procedimento que não esse mesmo, a que as partes se vincularam, não havendo motivo que legitime: a) a aplicação analógica ou directa das regras do CPPT quanto a tributos ou b) os formalismos de notificação próprios dos actos tributários, nomeadamente os previstos nos artigos 35.º e 36.º do CPPT.
FF) Devem, por tudo quanto acima se deixou expresso, improceder os argumentos do Recorrente que pretende atribuir à dívida exequenda a natureza de tributos, não merecendo a sentença qualquer reparo a tal respeito, estando correctamente sustentada, de facto e de Direito e em conformidade com a jurisprudência e doutrina dominantes.
GG) Já quanto à ilegalidade do alegado ato tributário na tese do Recorrente, e aos demais vícios que lhe são assacados neste recurso, a verdade é que o Recorrente se limitou a repetir toda a argumentação anteriormente expendida em sede de oposição, nada de novo acrescentando.
HH) Por esse motivo e com esse fundamento, deve o recurso, também nesta parte, ser julgado improcedente, dado que não são atribuídos erros ou vícios à sentença neste particular.
II) Sem prejuízo, a verdade é que nenhum dos vícios invocados pelo Recorrente neste recurso se verifica.
JJ) Desde logo porque qualquer dos vícios invocados, poderiam quando muito consubstanciar meras irregularidades, não passíveis de afetar a fatura, além de que a assumida postura de recusa de reação ou resposta à fatura sempre seria de considerar contrária ao princípio da colaboração a que alude o artigo 59.º do CPPT (se, como entende o Recorrente, estivermos perante atos tributários) e que impende sobre o mesmo.
KK) Mais, o Recorrente reconhecimento recebeu as facturas e nada fez, por opção, não tendo recorrido ao mecanismo do artigo 37.º do CPPT quaisquer dos vícios se devem hoje considerar sanados.
LL) Quanto à falta de fundamentação, quer do acto de notificação quer da própria factura, importa realçar que em nenhum caso o mesmo configura fundamento de oposição à execução porquanto a norma do artigo 204.º do CPPT é taxativa e não prevê este vício. Ora, se a Lei não prevê especificamente, não seria nunca por via da alínea residual [i) do n.º 1 de tal preceito] que se poderia abrir a porta ao seu conhecimento, sob pena de desvirtuação completa do preceito.
MM) Mesmo que assim não se entendesse, não nos podemos esquecer que a intervenção prévia do Recorrente – quer quando foi ouvido no âmbito da criação do DLR n.º 17/2014/M, quer quanto aderiu ao sistema multimunicipal por contrato – exclui toda e qualquer necessidade de fundamentação dos actos para lá do mínimo exigível, sendo que as facturas e actos de notificação contém informação mais que suficiente para que o Recorrente possa percepcionar a origem da dívida, a entidade credora e tudo o mais que carece de saber para orientar a sua conduta.
NN) Também a alegação de não indicação do autor do órgão não faz qualquer sentido, porquanto a ARM, S.A., como bem sabe o recorrente não tem órgãos porquanto é uma sociedade comercial de direito privado, pelo que as facturas são emitidas como qualquer outra, com obediência ao disposto no CIVA e nada mais, através de programa de facturação certificado.
OO) Aliás, o Recorrente pagou dezenas de faturas iguais sem nunca as questionar no que toca aos referidos aspectos, tendo inclusivamente pago parte de algumas que depois contestou em sede de oposição à execução fiscal.
PP) Quanto à suposta preterição do direito de participação/audição prévia, os mesmos argumentos já acima expendidos são igualmente válidos a este propósito. Todo o regime legal e contratual vigente e que vincula as partes contém em si a participação do Recorrente que seria exigível, sendo as facturas emitidas apenas por realização de cálculos aritméticos (ou por aplicação de juros a montantes em dívida a partir de certa data previamente acordada como data de pagamento ou por aplicação e uma tarifa fixa que estava definida contratualmente e cujo montante se encontra igualmente definido em tal regime).
QQ) Conforme é jurisprudência dominante, sendo a audiência prévia um direito não absoluto, ela é dispensável sempre que redunde na prática de um acto inútil porque não seria passível de alterar a decisão final, ou quando em causa esteja a prática de actos em massa ou que consistam na mera realização de operações aritméticas, como é manifestamente o caso dos autos. Não ocorre, pois, o vício apontado.
RR) O recurso deve, por isso, ser julgado improcedente.

Por todo o exposto, com o douto suprimento de V. Exas., deve a douta decisão proferida pelo TAF do Funchal ser mantida na íntegra, confirmando-se a mesma nesta sede, prosseguindo o processo executivo seus ulteriores termos até cobrança efectiva da dívida exequenda, com o que se fará a esperada JUSTIÇA!».

O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso, aderindo à jurisprudência pacífica constituída neste STA sobre as questões colocadas no presente recurso, com o seguinte teor:

“I. Objecto do recurso.
1. O presente recurso vem interposto da sentença do TAF do Funchal, que julgou improcedente a oposição deduzida contra a execução fiscal nº 2810201901051750, instaurada para cobrança da quantia de € 72.828,34 euros, relativa a dívida titulada por certidão emitida pela “ARM – Águas e Resíduos da Madeira, S.A.”, decorrente da prestação de serviços de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos.
A Recorrente insurge-se contra o assim decidido, por considerar que os créditos objeto de cobrança coerciva na execução fiscal, apesar de titulados por faturas não deixam de possuir natureza coativa, caraterística dos tributos públicos. E nessa medida entende que se aplicam no caso concreto os formalismos próprios das notificações estabelecidos nos artigos 35º e seguintes do CPPT.
Considera o Recorrente que «A sentença recorrida violou os valores constitucionais, ínsitos nos artigos 20º e 268º, nº4, da CRP, ao fazer uma interpretação da alínea g), do n.º 1 do art.º. 13.º, da alínea a) do artigo 16.º e do artigo 16º-A do Decreto-Legislativo Regional n.º 17/2014/M, na redação dada pelo Decreto-Legislativo Regional n.º 6/2015/M, de 13 de agosto, manifestamente violadora do princípio da tutela judicial efetiva».
Mais entende o Recorrente que a fatura que serve de título executivo não contém os elementos previstos no artigo 36º do CPPT, pelo que é ineficaz em relação ao Recorrente, conforme resulta do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 36º do CPPT.
Mais invoca a nulidade do ato de notificação, ao abrigo do disposto nos artigos 161º, nº1, do CPA e 39º, nº12, do CPPT, por não permitir descortinar quem é o órgão autor do ato.
Mais considera que a adotar o entendimento sufragado na sentença, por a lei não assegurar meio judicial de impugnação ou recurso contra o ato de liquidação, sempre será fundamento da oposição a discussão da ilegalidade da dívida exequenda, ao abrigo da alínea h) do nº1 do artigo 204º do CPPT.
Entende, assim que não tendo sido chamado a exercer o direito de audição prévia, a ARM incorreu num vício de procedimento do ato de liquidação, sendo anulável, nos termos do nº1 do artigo 163º, nº1 do CPA, por falta de fundamentação, por violação do disposto no artigo 286º, nº3, da CRP, e no artigo 77º da LGT.
Considera, assim, que a sentença violou o disposto nos artigos n.ºs 36.º, 39°, n.º 12, 44º, 204, nº.1, do C.P.P.T., artigo 163.º, n.º 1 do CPA, artigos 60.º, n.º 1, alínea a) e 77.º da LGT e ainda os artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP».
E termina pedindo a revogação da sentença recorrida e que em sua substituição se determine a extinção da instância.
II. Fundamentação de facto da sentença do TAF do Funchal.
1. Na sentença recorrida deu-se como assente que em 30/12/2014 foi celebrado entre o Governo Regional da Madeira e a sociedade “ARM – Águas e Resíduos da Madeira, S.A.”, um contrato de concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal de águas e de resíduos da Região Autónoma da Madeira, em regime de exclusividade.
Mais ficou assente que em 7 de março de 2017, foi emitida pela ARM – Águas e Resíduos da Madeira, S.A., em nome do Município do Funchal, a fatura nº FTV1700311, no valor total de € 72.828,94 euros, referente ao mês anterior (Fevereiro de 2017), com data de vencimento a 06/04/2017 e rececionada pelo município do Funchal em 09/03/2017.
Mais resulta que em 12/04/2019 foi emitida pela sociedade ARM – Águas e Resíduos da Madeira, S.A.” certidão de dívida referente à mesma fatura, no montante de € 83.108,11 euros, com base na qual foi instaurada execução fiscal contra o município do Funchal e no âmbito do qual se procedeu à sua citação.
2. Para se decidir pela improcedência da oposição entendeu o tribunal “a quo, adotando jurisprudência e doutrina que citou (ac. do TCA Norte de 25/11/2011, proferido no proc. nº 027/50/10.4BEPRT, e Sérgio Vasques, in “Manual de Direito Fiscal, Almedina, 2011, pág, 208º e segs.), que «a contrapartida a que o Oponente se vinculou por força do contrato de concessão outorgado com a ARM - Águas e Resíduos da Madeira, SA., pela prestação do serviço público de recolha e tratamento de resíduos sólidos tem a natureza de um preço, não se subsumindo, assim, no elenco dos tributos. Pelo que, a Exequente ARM, SA. não procedeu à cobrança coerciva de um tributo, mas de um preço contratualmente assumido, não sendo aplicável à situação em análise as regras do procedimento tributário (com a exceção das situações previstas no art.º 44.º do CPPT), designadamente as regras e formalismos próprios das notificações estabelecidas nos artigos 35.º e seguintes do CPPT, no qual se inclui as regras respeitantes aos requisitos e formalismos das notificações».
Mais se entendeu o tribunal “a quo” que a fatura que serve de título executivo teve por fonte o «sistema de tarifas aprovado pela Presidência do Governo Regional da Madeira através das Resoluções n.º 870/2005 de 22 de Junho, n.º 1405/2006 de 19 de Outubro e n.º 130/2014 de 14 de Março. Ora, acresce referir, que qualquer dissensão quanto ao teor das mencionadas resoluções que aprovaram um novo sistema de tarifas, com uma componente fixa e uma componente variável em função do tipo e quantidade de resíduos entregues e fixaram os montantes aqui em crise, era suscetível de impugnação. O que veio a suceder, como o próprio Oponente reconhece no articulado inicial, através da interposição da Ação Administrativa n.º 303/17.5BEFUN».
Mais se considerou que em relação aos vícios de procedimento, designadamente a preterição da formalidade de audiência prévia, deveria o oponente ter reagido em conformidade após a sua receção em 09/03/2017.
III. Análise do Recurso.
A Recorrente pretende ver reapreciadas as seguintes questões que colocou ao tribunal “a quo”: (i) inexigibilidade da dívida; (ii) ilegalidade da dívida, por preterição de formalidade legal, por omissão de notificação para o exercício do direito de audição e falta de fundamentação, de cuja solução discorda, nos termos que a seguir explanaremos, após enquadramento do litígio.
1. ENQUADRAMENTO DO LITÍGIO.
Antes de abordarmos as questões suscitadas pelo Recorrente não podemos deixar de enquadrar essas mesmas questões no âmbito do litígio que opõe ambas as partes, por nos parecer que de forma algo subtil e enganosa o Recorrente fez um incorreto enquadramento das relações contratuais e jurídicas subjacentes ao litígio.
Resulta da sentença recorrida que o montante em dívida e objeto de cobrança coerciva respeita a créditos da “ARM – Águas e Resíduos da Madeira, S.A.” , e que os créditos em causa respeitam a fornecimento de água e serviços de tratamento e valorização de resíduos sólidos entregues pelo município do Funchal.
Na sentença não foi levado ao probatório qualquer elemento relativo ao contrato celebrado entre a “ARM – Águas e Resíduos da Madeira, S.A.” , e o município do Funchal tendo por objeto o fornecimento de água e serviços de tratamento e valorização de resíduos sólidos1. Todavia na discussão da matéria de direito o tribunal “a quo” fez constar que «a relação entre municípios utilizadores e a empresa concessionária é regulada por contrato de fornecimento/prestação outorgado entre ambos por via do qual a concessionária, aqui Exequente, ARM – Águas e Resíduos da Madeira, SA. se obriga a prestar serviços de recolha e tratamento de resíduos e, em contrapartida, os municípios ficam adstritos ao pagamento de uma quantia destinada a remunerar os serviços, sendo os eventuais créditos equiparados a créditos da Região Autónoma da Madeira e suscetíveis de cobrança coerciva nos termos do processo de execução fiscal».
Resulta, assim, que a dívida reclamada na ação executiva tem subjacente um contrato de prestação de serviços por parte da concessionária e na sequência da adesão do município do Funchal ao sistema multimunicipal de fornecimento de água e de recolha, tratamento e valorização de resíduos sólidos, implementado pela Região Autónoma da Madeira.
Estamos, assim, perante um sistema multimunicipal, constituído ao abrigo do disposto no Decreto Legislativo Regional nº 28/2004/M, tendo por referência o Dec.-Lei nº 379/93, de 5 de Novembro23, sendo que se consideram “sistemas multimunicipais” os sistemas “em alta”, ou seja, a montante do abastecimento de água ou a jusante da coleta de esgotos e de resíduos sólidos, que são criados em situações de importância estratégica, desde que sirvam pelo menos dois municípios, tendo a respetiva exploração e gestão sido atribuída, em regime de concessão, a entidade pública de natureza empresarial (cfr. preâmbulo do DL 379/93).
Resulta igualmente que o município do Funchal e aqui Recorrente aderiu ao referido sistema, mediante a celebração de contrato administrativo com a concessionária, obrigando-se em contrapartida ao pagamento da faturação mensal enviada por esta com base na quantidade de resíduos entregues e no tarifário aprovado pela entidade concedente (governo da Região Autónoma da Madeira).
O Recorrente insurge-se contra o entendimento vertido na sentença sobre a natureza das prestações pecuniárias cobradas pela concessionária em razão da receção, tratamento e destino dos resíduos sólidos, de cuja qualificação como “preço” discorda, pois no seu entendimento essas
1 Falha grave que só se justifica pelos inúmeros processos de cariz semelhante e envolvendo as duas partes que correm termos no mesmo tribunal, como se alcança dos inúmeros recursos que subiram ao STA.
2 Que estabelece o regime de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, de recolha, tratamento e rejeição de efluentes e de recolha e tratamento de resíduos sólidos.
3 Entretanto revogado pelo Dec.-Lei nº 92/2013, de 11 de Julho.
prestações são impostas de forma coativa e nessa medida consubstanciam “taxas”. E desta qualificação extrai o Recorrente consequências no âmbito das formalidades a observar na sua liquidação e notificação, concluindo pela verificação de ilegalidades que assaca a tais atos e que no seu entendimento contendem com a sua eficácia, validade e exigibilidade da quantia pecuniária objeto de cobrança coerciva.
Como resulta do preâmbulo do Decreto Legislativo Regional nº 28/2004/M, com a celebração do contrato de concessão com a “Valor Ambiente” e mais tarde com a “ARM”, o governo da região autónoma da Madeira visou implementar um sistema multimunicipal de recolha e tratamento de resíduos sólidos que responda às exigências da exploração e gestão desse serviço público, cuja responsabilidade é igualmente dos municípios, mas que estes, por si sós, não têm capacidade de dar uma resposta cabal, visando-se igualmente captar as sinergias de uma gestão e exploração integrada.
Com a constituição da sociedade “Valor Ambiente”, inicialmente, e depois da “ARM”, o governo da região autónoma da Madeira transferiu para esta sociedade de direito privado e de capitais públicos o encargo da prestação do serviço público de “exploração e gestão do sistema de transferência, triagem, valorização e tratamento de resíduos sólidos da Região Autónoma da Madeira (artigo 5º do DLR nº 28/2004/M).
Nos termos do artigo 15º do mesmo diploma legal, constituem receitas da concessionária as «… tarifas, taxas e demais importâncias cobradas pela utilização do sistema e por serviços prestados a entidades públicas ou privadas». Resulta igualmente do nº3 da Base XIII em anexo ao mesmo diploma legal que «O contrato de concessão e o contrato de fornecimento a celebrar entre a concessionária e cada um dos utilizadores fixam as tarifas e a forma e periodicidade da sua revisão tendo em atenção os critérios definidos na base anterior», o que consta dos artigos 7º e 10º do contrato celebrado entre o município Recorrente e a “Valor Ambiente”, ao clausurarem a periodicidade mensal das faturas e que a contrapartida consiste em “tarifas” a pagar pelo município utilizador do serviço e fixadas por despacho conjunto dos membros do governo regional que detenham a tutela das finanças e ambiente, nos termos do regulamento de cada estação de tratamento.
Estamos, assim, perante a exploração e gestão de um serviço público da titularidade do governo regional da Madeira atribuído a uma sociedade de direito privado e capitais públicos mediante a técnica de concessão, recaindo sobre os utilizadores desse serviço (v.g. os municípios) o pagamento de uma prestação pecuniária, objeto de fixação em regulamento por parte da entidade concedente, e que o legislador denominou como “tarifa”.
Como se sabe tem suscitado séria discussão as diferenças entre as figuras de “tarifas”, “preços” e “taxas” utilizadas pelo legislador nas leis de finanças locais. Em anotação ao acórdão do STA de 17/06/1997, recurso nº 40.365 (Cadernos de Justiça Administrativa, nº 6, 1997, págs. 48 e segs.), o professor Casalta Nabais pronunciou-se a este propósito da seguinte forma: “…no concernente às tarifas, é de referir que elas integram um conceito polissémico, relativamente ao qual é possível detectar, pelo menos, quatro sentidos, que podemos designar por sentido normativo, sentido financeiro, sentido tributário e sentido fiscal (ou melhor, aduaneiro). …Em sentido financeiro, por seu turno, as tarifas significam, ou podem significar, duas coisas. Umas vezes, referem-se elas aos quadros donde constam, de um lado, as unidades de consumo e, de outro, os respectivos preços: se em tais quadros figura apenas uma unidade de consumo por cada quadro, temos tarifas unitárias; se neles figuram mais do que uma unidade de consumo, então temos tarifas múltiplas. Nesta versão, as tarifas constituem quadros de unidades de consumo dos serviços públicos e dos correspondentes preços, ou seja, tabelas ou listas de preços (s) . A maioria das vezes, porém, as tarifas em sentido financeiro referem-se, não aos mencionados quadros, listas ou tabelas, mas aos preços dos serviços públicos prestados pelas administrações públicas ou pelos concessionários, sejam os mesmos preços públicos ou privados, ou seja, trate-se de tarifas públicas ou privadas. Neste caso, as tarifas reconduzem-se aos preços dos serviços públicos, relativamente aos quais se põe o problema de saber qual o exacto âmbito dessa figura financeira, ou seja, se abarcam todos e quaisquer preços dos serviços públicos, sejam estes voluntariamente estabelecidos ou autoritariamente fixados, se dizem respeito apenas aos preços voluntariamente estabelecidos, ou se integram somente os preços autoritariamente fixados. Enquanto na primeira hipótese as tarifas constituem uma figura complexa, pois integram, de um lado, um especial tipo de taxas ou preços públicos e, de outro, os preços, na segunda temos unicamente preços, e, na terceira, deparamo-nos com uma figura tributária em sentido estrito, ou seja, com um tributo bilateral ou uma taxa. E aqui temos as tarifas em sentido tributário, constituídas assim pelos preços dos serviços públicos autoritariamente fixados. Em nossa opinião, este devia ser o sentido reservado para as tarifas, um sentido que, como vamos ver, de algum modo está subjacente à Lei das Finanças Locais (arts. 11º e 12º). Neste último sentido as tarifas, como dissemos, constituem um especial tipo de taxas ou preços públicos. Um especial tipo de taxas que tem de específico o facto de não dizerem respeito a serviços públicos que sejam por essência da titularidade do Estado, uma vez que não correspondem às funções institucionais fundamentais próprias da Administração Pública nem visam, por conseguinte, a realização dos fins estaduais primários. Por isso, podem tais serviços ser objecto de oferta e procura e susceptíveis, assim, de uma avaliação em termos de mercado. Por outras palavras, trata-se de taxas equivalentes, de taxas cujo montante não deve, assim, ser inferior ao efectivo custo do correspondente serviço. Um sentido que, acentue-se, está patente no mencionado artº. 12º da Lei das Finanças Locais, ao dispor, no nº 1, que as tarifas respeitam às actividades de abastecimento de água, de recolha, tratamento e depósito de lixos, de ligação, conservação e tratamento de esgotos e de transportes urbanos colectivos de pessoas e de mercadorias, e ao estabelecer, no n° 2, o princípio de que os montantes das tarifas não devem ser inferiores aos respectivos encargos provisionais de exploração e de administração, acrescidos do montante necessário à reintegração do equipamento. Assim as tarifas equiparam-se, de algum modo, às redevances do direito francês, aos precios publicos do direito espanhol, etc" (sublinhados nossos).
Pese embora a indefinição das referidas figuras na doutrina nacional, ressalta dos diversos Autores um critério aferidor que distingue por um lado a figura das taxas (ainda que com diversos recortes, designadamente por representarem um valor inferior, igual ou equivalente ou custo do benefício obtido pelo destinatário do serviço) e as receitas patrimoniais (por referência à utilização de bens do domínio público) e que consiste na imposição coativa de determinado valor da prestação, no caso das primeiras, ou na formação consensual desse valor/preço, no caso das segundas.
Já no que respeita à diferença entre “taxas” e “tarifas” ou “preços”4 o consenso sobre o elemento distintivo aferidor não se verifica. Todavia, para a grande maioria dos Autores5, ainda que se possam ressaltar diferenças entre as figuras de “tarifas”, “taxas” e “preço” de bens públicos, as mesmas devem ser consideradas como taxas, por se tratar de uma prestação imposta de forma coativa (ainda que no âmbito de contrato de adesão6). Neste sentido e ainda que a propósito de uma
4 A figura da ― tarifa foi inicialmente utilizada pela Lei das Finanças Locais, tendo sido substituída pela de preços‖ – cfr. artigos 14º, alínea f), e 21º da Lei nº 73/2013, de 3 de Setembro.
5 Cfr. sobre esta temática, António Malheiro de Magalhães, in ―o Regime Jurídico dos preços Municipais, 2012, Almedina.
6 A existência de um contrato de fornecimento (designadamente no abastecimento de água) não tem sido considerado elemento relevante, designadamente se o utilizador ou consumidor não tem outra alternativa (assim foi igualmente questão de competência, se pronunciou igualmente o acórdão do Pleno do STA de 10/04/2013, proc. 015/12, e o acórdão da seção de contencioso tributário de 25/06/2015, proc. 045/14, nos quais se faz alusão a diversa doutrina abalizada e se acentua o critério utilizado por Sérgio Vasques, segundo o qual “estaremos perante preço se o particular dispuser de liberdade de escolha entre prestações asseguradas pelo sector público e pelo sector privado…» ou «…quando o particular possa prescindir da prestação administrativa sem sacrifício relevante para a sua qualidade de vida».
Resulta, assim, que só nos casos em que se verifica uma adesão ou solicitação voluntária do serviço ou fornecimento de bem por parte do utilizador ou consumidor, por ter outras alternativas no mercado ou por não se tratar de serviço ou bem indispensável, é que estaremos perante a figura de “preço”.
Já a figura de “preço público” utilizada pelo legislador na lei de finanças locais7 ou da região autónoma no âmbito das prestações de determinados serviços públicos, apesar das especificidades da sua natureza supra enunciadas (valor mínimo correspondente aos custos suportados) não deixa de configurar para efeitos tributários uma “taxa”.
Dado que ainda não foi criado um regime geral de taxas, nem no caso concreto existe qualquer regime geral de taxas das regiões autónomas, há apenas que atender à Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro, que aprovou a Lei de Finanças das Regiões Autónomas, em cujo artigo 27º se previa constituir receita de cada região autónoma “o produto das taxas, emolumentos e preços devidos pela prestação de serviços regionais, …”, e no artigo 50º, nº1, alínea c), que as competências administrativas regionais a exercer pelos governos e administrações regionais compreendem o poder «… de fixar o quantitativo das taxas, emolumentos e preços devidos pela prestação de serviços regionais, ainda que concessionados, pela outorga regional de licenças, alvarás e outras remoções dos limites jurídicos às actividades regionais dos particulares e pela utilização dos bens do domínio público regional».
Também o nº1 do artigo 21º da Lei de Finanças Locais8 utiliza a figura de “preços”, designadamente no âmbito do serviço de recolha e tratamento de resíduos, para ressaltar que os mesmos não devem ser inferiores aos custos direta e indiretamente suportados com a prestação dos serviços e com o fornecimento dos bens9. Ora, essas prestações não deixam de ser taxas, ainda que em sentido amplo e com determinadas especificidades, designadamente pelo facto de estarmos perante a concessão da gestão e exploração do serviço a uma entidade empresarial, que se rege pelo direito privado, e o seu valor ser determinado em função do equilíbrio financeiro do concessionário10.
entendido no acórdão do Pleno de 11/04/2013, no qual se deixou exarado que: «E não se diga que, no caso concreto, estamos em face de um contrato entre consumidor e prestador do serviço …pois que isso não é suficiente para afastar o conceito de taxa».
7 Assim e à luz do disposto no artigo 21º, nº1, da Lei das Finanças Locais, o conceito de ―preço está assente no princípio da equivalência económica e não jurídica, já que tem subjacente que o valor mínimo corresponda ao custo económico do serviço prestado ou do bem fornecido, podendo, assim, compreender igualmente um acréscimo patrimonial auferido pelo concessionário (que no caso de se tratar de uma entidade empresarial corresponderá ao seu lucro).
8 Lei nº 73/2013, de 3 de Setembro.
9 ―1 — Os preços e demais instrumentos de remuneração a fixar pelos municípios, relativos aos serviços prestados
e aos bens fornecidos em gestão direta pelas unidades orgânicas municipais, pelos serviços municipalizados e por empresas locais, não devem ser inferiores aos custos direta e indiretamente suportados com a prestação desses serviços e com o fornecimento desses bens.
10 Sendo certo que o regime de fixação desses preços obedece a determinadas diretrizes, geralmente consignadas nas leis de finanças locais e regionais e nos contratos de concessão e podendo ser objeto de controlo por parte de entidades reguladoras.
Concluímos, assim, que ainda que o legislador nas leis de finanças das regiões autónomas (e na lei das finanças locais) fale em “preços” para designar a prestação pecuniária devida em contrapartida da prestação de determinados serviços públicos, cuja fixação não deve ser inferior ao valor do custo suportado pela entidade pública ou pelo concessionário privado, para efeitos tributários essa prestação pecuniária consubstancia uma taxa.
Todavia, assim não o entendeu o STA no recente acórdão de 22/01/2020, proferido no processo nº 0218/18.0BEFUN, tendo por objeto questão similar e envolvendo as mesmas partes.
No referido aresto conclui o STA que “a obrigação pecuniária emergente de um contrato celebrado entre o município utilizador de um sistema multimunicipal de águas e de resíduos da Região Autónoma da Madeira e a empresa concessionária daquele, não tem natureza tributária”.
2. À luz desses considerandos e enquadramento, importa agora apreciar cada uma das questões colocadas a este tribunal e cujo entendimento por parte do tribunal “a quo” o Recorrente vem censurar.
a) Ineficácia do ato tributário e inexigibilidade da dívida.
Considera o Recorrente que «em face da manifesta insuficiência dos elementos que instruíam os (pretensos) atos de liquidação (faturas) e a respectiva notificação, saía inelutavelmente comprometida a validade e eficácia dos mesmos, não resultando, pois, para o opoente qualquer obrigação». (…) Verifica-se, concretamente, que a notificação não respeita o prescrito no n.º 2 do artigo 36.° do CPPT e, nessa medida, não produziu quaisquer efeitos em relação ao Município do Funchal (cf. n.° 1 do artigo 36.°), inclusive quanto ao prazo de pagamento aí indicado».
Na sentença recorrida e a este propósito considerou-se, invocando em seu apoio o acórdão do TCA Norte de 25/11/2011 (proc. 02750/10.4BEPRT)11, que não se mostram aplicáveis os formalismos previstos nesse normativo por «a contrapartida a que o Oponente se vinculou por força do contrato de concessão outorgado com a ―Valor Ambiente – Gestão e Administração de Resíduos da Madeira, SA., pela prestação do serviço público de recolha e tratamento de resíduos sólidos tem a natureza de um preço, não se subsumindo, assim, no elenco dos tributos. Pelo que, a Exequente ARM, SA. não procedeu à cobrança coerciva de um tributo, mas de um preço contratualmente assumido, não sendo aplicável à situação em análise as regras do procedimento tributário (com a exceção das situações previstas no art.º 44.º do CPPT), designadamente as regras e formalismos próprios das notificações estabelecidas nos artigos 35.º e seguintes do CPPT, no qual se inclui as regras respeitantes aos requisitos e formalismos das notificações».
O Recorrente não contesta o recebimento das faturas, nem especificamente qualquer elemento que não permita perceber os respetivos valores cobrados, mas apenas que aquele documento não satisfaz o disposto no referido normativo que dispõe que as «…notificações conterão sempre a decisão, os seus fundamentos e meios de defesa e prazo para reagir contra o acto notificado, bem como a indicação da entidade que o praticou e se o fez no uso de delegação ou subdelegação de competências».
Ora, embora não se subscreva o entendimento vertido na sentença recorrida, entendemos que é de repudiar a argumentação aduzida pelo Recorrente para sustentar a ineficácia do ato de comunicação dos valores em dívida. E para tanto não se mostra, a nosso ver, necessário aprofundar ou especificar a natureza da prestação devida pelo município, ou seja, se estamos perante uma taxa ou preço, embora, como supra analisamos, nos inclinamos para a sua natureza de “taxa”.
11 Que por sua vez cita o acórdão do mesmo TCA de 13/05/2011, proc. 534/09.1BEBRG (o qual, embora citado tb noutros arestos do mesmo tribunal, estranhamente não se encontra publicado no site da DGSI).
Com efeito, está em causa a prestação de um serviço público por parte de uma entidade empresarial, sendo o envio de faturação ao utilizador do serviço o meio previsto no regime legal que implementou esta forma de concessão de serviços, assim como o meio previsto no contrato celebrado entre o Recorrente e a concessionária.
De facto, o cálculo da prestação devida decorre da aplicação dos tarifários constantes de regulamento aprovado pela concedente e concessionária, como ocorre neste tipo de tributo12, não havendo lugar à abertura de qualquer procedimento administrativo com vista à sua liquidação, mas a meras operações aritméticas de aplicação do valor do preço “tabelado” às quantidades de resíduos (tendo por referencia a “tonelada” e a espécie de resíduo) rececionadas e entregues pelo município.
Por outro lado a atribuição da exploração e gestão do serviço de tratamento de resíduos sólidos à concessionária “ARM – Águas e Resíduos da Madeira, S.A.” não a transmuta em órgão da administração regional, a qual continua a ser um ente privado e regido pelas leis comerciais, sendo a mesma identificada pela sua denominação comercial e emitindo nessa medida através de “faturação” o valor dos serviços prestados, tal como impõem as regras decorrentes da sua natureza empresarial e método de comunicação este previsto na lei de concessão e no contrato celebrado entre a concessionária e o município Recorrente (e no regulamento da estação de tratamento de resíduos).
Assim sendo, carece de sentido invocar que a fatura devia conter a indicação do órgão e a natureza dos poderes, pois não estamos perante a comunicação de decisão proferida em procedimento administrativo por parte de um órgão da Administração, tal como está subjacente à prescrição normativa em causa, a qual deve assim ser interpretada com as devidas adaptações a estes casos. Estando as entidades credoras e devedoras devidamente identificadas na faturação, assim como a natureza das prestações em dívida e respetivo período, a fatura contém todos os requisitos legais13.
Demonstrado que está que o Recorrente rececionou as faturas que deram origem à dívida exequenda, o ato produziu os seus efeitos e a dívida é exigível, motivo pelo qual carece de razão o Recorrente ao invocar a inexigibilidade da dívida com base na ineficácia do ato de notificação.
3. ILEGALIDADE DO ATO TRIBUTÁRIO, por preterição do direito de audição e falta de fundamentação.
Considera o Recorrente que a lei não assegura meio judicial de impugnação ou recurso contra o ato de liquidação, pelo que pode invocar vícios de ilegalidade do ato ao abrigo da alínea i) do nº1 do artigo 204º do CPPT.
E alega a este propósito que uma vez que «os atos de liquidação das taxas em análise não tiveram por base quaisquer elementos fornecidos para o efeito pelo Município do Funchal, deve entender-se que este deveria ter sido chamado a exercer o seu direito à audição prévia». E que «os atos de liquidação são anuláveis, nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do CPA, por falta de fundamentação, violando o disposto no artigo 286.º, n.º 3 da CRP e no artigo 77.º da LGT».
Mais alega que a adotar-se o entendimento vertido na sentença são violados «… os valores constitucionais, ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP, ao fazer uma interpretação da alínea g), do n.º 1 do art.º. 13.º, da alínea a) do artigo 16.º e do artigo 16º-A do Decreto-Legislativo Regional n.º 17/2014/M, na redação dada pelo
12 Método este que o próprio Recorrente deve praticar na liquidação das taxas constantes da tabela de preços do regulamentos municipais, motivo pelo qual bem se estranha a argumentação invocada.
13 Ainda que se possa criticar a omissão do legislador pela falta de clarificação do regime legal do processamento e liquidação destes tributos.
Decreto-Legislativo Regional n.º 6/2015/M, de 13 de agosto, manifestamente violadora do princípio da tutela judicial efetiva».
Na sentença recorrida o tribunal “a quo” considerou por um lado que dissentindo o Recorrente quanto à “tarifa fixa de valorização/tratamento ETRS” e tendo a mesma sido fixada por resolução do governo regional, era o este ato que devia ser impugnado, o que aliás sucedeu, e no que respeita aos vícios formais assacados ao ato de liquidação, por preterição do direito de audição e falta de fundamentação, nada impedia o Recorrente de impugnar o mesmo com esse fundamento.
E afigura-se-nos correto o entendimento vertido na sentença. Com efeito, pese embora, como deixamos supra mencionado, não tenha sido criado qualquer regime geral das taxas ou qualquer regime jurídico das taxas da região autónoma da Madeira que estabeleça os meios de impugnação desses tributos, e neste particular não se mostrar viável a aplicação subsidiária do regime geral das taxas das autarquias locais (que prevê uma reclamação necessária para o presidente da câmara14), certo é que, salvo melhor opinião, nada obstava à impugnação do ato junto dos tribunais tributários logo que foi comunicada ao Recorrente a faturação emitida pela concessionária. Na verdade, o Recorrente não teve conhecimento do ato apenas na data em que foi chamado à execução fiscal, como parece depreender-se da sua argumentação, motivo pelo qual estando assegurado meio processual de reação ao ato lesivo antes da propositura da ação executiva, carece de fundamento a invocada violação do direito de acesso aos tribunais e a uma tutela judicial efetiva.
Entendemos, assim, que improcede igualmente nesta parte o recurso.
IV. CONCLUSÃO.
1. Estando em causa nos autos a exploração e gestão de serviço público de receção e tratamento de resíduos sólidos em “alta” por parte de uma entidade empresarial, no âmbito de contrato de concessão celebrado com o governo regional da Madeira, em que a cobrança do “preço” do respetivo serviço foi feita através de fatura, comunicada e rececionada pelo município do Funchal, na qualidade de utilizador, e em conformidade com as regras consignadas nos contratos de utilização e concessão, mostra-se tal comunicação válida e eficaz e produtora de efeitos na esfera jurídica do destinatário.
2. O facto de não existir um regime geral de taxas que preveja meios processuais específicos de impugnação desses atos, nada obsta à sua impugnação junto dos tribunais tributários, ao abrigo do disposto no artigo 97º, nº1, alínea a), do CPPT, motivo pelo qual não é admissível o conhecimento de vícios de ilegalidade concreta da dívida exequenda em sede de oposição à execução fiscal, ao abrigo do disposto na alínea h) do nº1 do artigo 204º do CPPT.
3. Sobre estas questões já se pronunciou o STA, que por acórdão de 22/01/2020, proferido no processo nº 0218/18.0BEFUN, cuja doutrina foi seguida em outros arestos que lhe seguiram15, e no qual se formularam as seguintes conclusões;
“ - A obrigação pecuniária emergente de um contrato celebrado entre o município Utilizador de um sistema multimunicipal de águas e de resíduos da Região Autónoma da Madeira e a empresa concessionária daquele não tem natureza tributária;
14 Artigo 16º, nº1 e nº5 do RGTAL.
15 Acórdãos de 29/01/2020, proc.s 0241/18.4BEFUN, 0239/18.2BEFUN e 0203/18.1BEFUN, de 05/02/2020, proc.s 0209/18.0BEFUN, 0225/18.2BEFUN, 0215/18.5BEFUN, 0228/18.7BEFUN, 0205/18.8BEFUN, 0206/18.6BEFUN, 0223/18.6BEFUN, 0208/18.2BEFUN, 0200/18.7BEFUN, e de 06/5/2020, proc. 0217/18.1BEFUN.
II - Na execução fiscal da obrigação pecuniária emergente de um contrato, que não foi liquidada no prazo contratualmente previsto, e relativamente à qual foi extraída, nos termos legais, certidão com valor de título executivo, os seus requisitos de validade são os que constam das regras legais e contratuais para a validade do título, bem como aqueles que resultam do disposto no artigo 163.º do CPPT, e não os constantes das normas dos artigos 36.º e 39.º, n.º 12, do CPPT; III - A oposição à execução fiscal não é a via adequada para discutir a legalidade das dívidas emergentes de contratos, mesmo quando essas dívidas sejam, por lei, equiparadas a dívidas ao Estado ou a uma Região Autónoma;
3. A sentença recorrida não padece dos vícios que lhe são assacados pelo Recorrente, motivo pelo qual se impõe a sua confirmação, ainda que com outra fundamentação, julgando-se o recurso improcedente.”

Com dispensa de vistos, cumpre decidir.
*
2.- Fundamentação
2.1.- Questões a decidir
São as de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao julgar improcedente a oposição deduzida pelo Município do Funchal à execução fiscal que lhe foi instaurada para cobrança coerciva de dívida titulada por factura respeitante a serviços de eliminação de resíduos (incineração e deposição em aterro), emitida pela concessionária da exploração e gestão do sistema de transferência, tratamento, triagem e valorização de resíduos sólidos da Região Autónoma da Madeira em regime de serviço público e de exclusividade, para o que importa decidir a) se estamos perante um tributo ou outro tipo de obrigação pecuniária; b) se na fase de oposição à execução é ou não possível discutir a legalidade da dívida exequenda; e se c) a não se admitir a oposição à execução com este fundamento (discussão da legalidade da dívida), tal consubstanciaria uma violação do princípio fundamental da tutela jurisdicional efectiva.

2.2. De facto

Na sentença objecto do presente recurso foram dados como provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:

A) Em 5 de Janeiro de 2000, foi celebrado o “Contrato de Concessão do Sistema Regional de Gestão e Abastecimento de Água da Madeira entre a Região Autónoma da Madeira”, entre a “Secretaria Regional do Equipamento Social e Ambiente” e a sociedade denominada “IGA – Investimentos e Gestão da Água, SA.” [cfr. doc. 2 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente transcrito];
B) Em 30 de Dezembro de 2014, foi celebrado o “Contrato de Concessão da Exploração e Gestão do Sistema Multimunicipal de Águas e de Resíduos da Região Autónoma da Madeira em Regime de Serviço Público e de exclusividade entre a Região Autónoma da Madeira e a ARM – Águas e Resíduos da Madeira, SA”, com a duração de 30 anos, em regime de serviço público e de exclusividade. [cfr. doc. 5 junto com a contestação, e teor das cláusulas 7.º e 6.º, que se dá por integralmente transcrito];
C) Em 7 de Março de 2017, foi emitida, pela ARM – Águas e Resíduos da Madeira, SA., a Fatura n.º FTV1700311 em nome do Município do Funchal no valor total de €72.828,94, referente aos serviços prestados de 01/02/2007 a 01/03/2017 e com data de vencimento em 6 de Abril de 2017, com o teor que se reproduz:



[cfr. doc. 2 junto com a pi, cujo teor se dá por integralmente reproduzido];
D) A fatura reproduzida na alínea antecedente foi rececionada pelo Oponente, Município do Funchal em 9 de Março de 2017. [cfr. informação que se extrai do referido doc. 2 junto com a pi];
E) Em 6 de Outubro de 2017, o Município do Funchal apresentou contra a ARM - Águas e Resíduos da Madeira, SA. o processo Ação Administrativa a correr termos neste Tribunal com o n.º 303/17.5BEFUN, com vista “à anulação do ato administrativo em matéria tributária, contido na deliberação do Conselho de Administração da ARM – Águas e Resíduos da Madeira, SA. de 31 de Março de 2017, que decidiu aprovar a atualização do Tarifário dos Serviços de Águas e Resíduos – 2017 – Serviços em Alta a praticar pela ARM – (…) para o exercício económico de 2017 e que determinou que o mesmo entraria em vigor no dia 1 de abril de 2017”. [cfr. facto alegado no ponto 33.º da p.i e que o Tribunal tem conhecimento em razão das suas funções – consulta Sitaf];
F) Em 19 de Outubro de 2017, o ora Oponente Município do Funchal apresentou em apenso à ação referenciada no ponto antecedente INCIDENTE DE CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO, o qual correu termos neste Tribunal sob o n.º 303/17.5BEFUN-A, no qual reconheceu que “deve pagar o que estaria em dívida se a deliberação do Conselho de Administração ARM – Águas e Resíduos da Madeira, S.A. de 31 de março de 2017, não existiria, ou seja, de acordo com o tarifário em vigor antes da mesma” (artigo 24.º), valores que correspondem às quantias descritas no quadro do artigo 25.º da petição inicial, que se reproduz, por extrato:

[cfr. facto que o Tribunal tem conhecimento em razão das suas funções – consulta Sitaf];
G) Em 22 de Fevereiro de 2018, foi proferida Sentença de transação no âmbito do processo n.º 303/17.5BEFUN-A (incidente de consignação em depósito), com o teor que se reproduz, em parte:
“ACORDO DE TRANSAÇÃO
CLÁUSULA PRIMEIRA – O Município do Funchal compromete-se a pagar à ARM – Águas e Resíduos da Madeira S.A., os montantes que reconhece em dívida, quer relativos a águas, quer ao tratamento de resíduos sólidos, pagamentos esses que serão imputados pela ARM – Águas e Resíduos da Madeira S.A., nas faturas a que façam referência.
CLÁUSULA SEGUNDA - Em contrapartida a ARM – Águas e Resíduos da Madeira S.A., compromete-se a dar quitação pelos montantes recebidos.
CLÁUSULA TERCEIRA – Em face o presente acordo de transação a Entidade Demandada, desiste do pedido de condenação da Autora por litigância de má-fé.
CLÁUSULA QUARTA - As partes acordam no pagamento das custas que se mostrem devidas na proporção de ⅔ pelo Autor e ⅓ pela Entidade Demandada.
CLÁUSULA QUINTA - As partes prescinde de custas de parte.
(…) A homologação da presente transação judicial tem por consequência a extinção da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 290.º, n.º 3 e 277.º, al. d) do CPC, aplicáveis por força do artigo 1.º do CPTA. (…)”. [cfr. doc. 1 junto com a pi, cujo teor se dá por integralmente reproduzido];
H) Em 12 de Abril de 2019, foi emitida pela ARM – Águas e Resíduos da Madeira SA., em nome do Município do Funchal, a certidão de dívida n.º 20190403/1, no valor total de €83.108,11 proveniente da fatura n.º FTV1700311 emitida em 7 de Março de 2017 e melhor identificada em C). [cfr. doc. de fls. 2 do PEF apenso];
I) Em 22 de Abril de 2019, foi autuado contra o Oponente, o processo de execução fiscal n.º 2810201901051750 com base na certidão de dívida, descrita na alínea anterior, com vista à cobrança coerciva de dívidas provenientes da “ARM – Águas e Resíduos da Madeira SA. – Água Alta Tratada”, no montante total de €72.828,34. [cfr. doc. de fls. 1 do PEF apenso];
J) Em 30 de Abril de 2019, foi emitido e enviado ao Oponente o documento “CITAÇÃO PESSOAL” respeitante ao processo de execução fiscal n.º 2810201901051750, com a identificação da dívida em cobrança coerciva. [cfr. doc. de fls. 3 e 4 do PEF apenso, cujo teor se dá por integralmente transcrito];
K) Em 23 de Maio de 2019, foi enviado ao Serviço de Finanças do Funchal 1, por e-mail, a presente Oposição à execução fiscal tendo como objeto o processo de execução fiscal n.º 2810201901051750. [cfr. de fls. 3 dos autos (suporte digital)];
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Inexistem factos alegados e não provados, com interesse para a decisão da causa.
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Motivação da decisão sobre a matéria de facto
Quanto aos factos dados como provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, no Processo de Execução Fiscal apenso (PEF apenso) aos autos e informações oficiais juntas, tal como se foi fazendo referência em cada um dos pontos do probatório.
A demais matéria alegada não foi aqui considerada por ser conclusiva, de direito ou não relevar para a decisão da causa.

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3. Motivação de Direito:

3.1 Dos alegados erros de julgamento da sentença recorrida

As questões que se suscitam no presente recurso são precisamente as mesmas que se suscitavam no processo n.º 218/18.0BEFUN, julgado por este STA no passado dia 22 de Janeiro.
O julgamento que aí se fez – no sentido da confirmação da sentença recorrida, atenta a natureza não tributária da dívida exequenda; a impossibilidade de, em sede de oposição, discutir a legalidade em concreto da dívida exequenda e a não violação do princípio fundamental da tutela jurisdicional efectiva – foi reiterado nos Acórdãos deste STA proferidos em 29 de Janeiro último, nos processos números 203/18.1BEFUN, 239/18.2 BEFUN e 241/18.4 BEFUN e reiterado será também aqui, por integral adesão à douta fundamentação deles constante, para a qual expressamente se remete, pois que se trata de caso análogo, entre as mesmas partes e, como tal, merecedor do mesmo tratamento.
Assim, sem mais delongas, e pelos fundamentos constantes do Acórdão de 22 de Janeiro último proferido no processo n.º 218/18.0BEFUN – de que se junta cópia – haverá que negar provimento ao recurso.

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4.- Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, em negar provimento ao recurso,
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 14 de Outubro de 2020. - José Gomes Correia (relator) - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – Paula Fernandes Cadilhe Ribeiro.

O acórdão de 22.01.2020 proferido no Processo nº 218/18.0BEFUN já se encontra disponível nesta Base de Dados.