Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0110/18
Data do Acordão:02/22/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P22951
Nº do Documento:SA1201802220110
Data de Entrada:02/01/2018
Recorrente:JF DE S. TOMÉ DE NEGRELOS
Recorrido 1:INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, SA E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Formação de Apreciação Preliminar da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I. RELATÓRIO

A Freguesia de S. Tomé de Negrelos intentou, no TAF de Penafiel, contra a Infraestruturas de Portugal, SA e Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP, acção administrativa comum pedindo a condenação dos réus a reconhecerem-lhe o direito de ter o nome de Negrelos na estação da CP que serve essa localidade, a retirarem da mesma o nome de “Vila das Aves” e a colocarem novamente na estação o nome de “Vila das Aves/Negrelos”.

Aquele Tribunal julgou a acção totalmente procedente a presente e condenou os RR no pedido.

Infraestruturas de Portugal, IP, recorreu para o TCA Norte e este concedeu provimento ao recurso e, revogando a sentença recorrida, absolveu os RR dos pedidos.

A Autora interpôs esta revista ao abrigo do artigo 150.º do CPTA,

II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. O TAF condenou os RR no pedido com a seguinte fundamentação:
“…
Ora, consubstanciando a actuação ora em crise o exercício de poder discricionário, o princípio da separação de poderes impede que o tribunal sindique o seu conteúdo, excepto em caso de erro grosseiro ou manifesto.

Como vimos, os Réus decidiram alterar o nome da estação por não terem recebido resposta da C.M. de Santo Tirso onde se solicitava informação sobre o nome que se deveria adoptar para a estação acima mencionada, tendo os motivos justificativos para a alteração do nome da estação se prendido fundamentalmente com a delimitação geográfica e administrativa das freguesias de Vila das Aves e de S. Tomé de Negrelos, dado o edifício da estação se encontrar implantado em terrenos pertencentes, exclusivamente, à freguesia de Vila das Aves e o traçado do caminho de ferro, naquela zona, atravessar apenas terrenos pertencentes aquela freguesia.
Sucede que a alteração da designação da estação é destituída de fundamento e razões de interesse público relevantes, pois a estação sempre esteve situada em território de Vila das Aves e esse facto nunca foi motivo de retirada do nome de Negrelos. E se não houve entendimento das freguesias no que concerne ao nome da estação e na falta de resposta da C.M. Santo Tirso, aos Réus deveriam ter-se abstido de alterar o nome e deveriam ter mantido aquele que existia respeitando a história da estação que assume, como é óbvio, uma importância fulcral para as populações.
…..
Ora, percorrendo a factualidade provada é inquestionável que o nome de Negrelos na estação de caminho de ferro assume um valor histórico que remonta a 31/12/1883, data da inauguração da estação com o nome “estação de Negrelos”, apesar de se situar na freguesia de S. Miguel das Aves. S. Miguel das Aves foi elevada a vila em 1955, data em que passou a designar-se “Vila das Aves” e S. Tomé de Negrelos foi elevada a vila em 1993. Não obstante, na década de 60, a estação adoptou o nome de Vila das Aves – Negrelos, mantendo o nome de Negrelos, ou seja, pode inferir-se que apesar da elevação a vila da freguesia de S. Miguel das Aves, Negrelos manteve a sua importância, conservando o direito a ver o nome da terra na estação. E assim foi durante mais de cerca de 4 décadas, até à requalificação da estação cuja inauguração ocorreu em janeiro de 2004. …..
Percebe-se, assim, a importância da estação ao longo da história que remonta a 31/12/1883, data da inauguração da estação com o nome “estação de Negrelos”, apesar de sempre se ter situado na freguesia de S. Miguel das Aves.
Como supra se enunciou, integram o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, designadamente histórico e social que reflicta valores de memória e antiguidade, devam ser objecto de especial protecção e valorização, integrando, igualmente, o património cultural aqueles bens imateriais que constituam parcelas estruturantes da identidade e da memória colectiva portuguesas, onde se deve incluir a designação da estação em causa nos presentes autos constituindo um património cultural para os Negrelenses. Com efeito, como vimos, integram o património cultural as realidades que, tendo ou não suporte em coisas móveis ou imóveis, representem testemunhos com valor de civilização ou de cultura com significado para a identidade e memória colectivas.
É incumbência do Estado promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, o que não sucedeu no caso dos autos por parte dos Réus.
Ante o exposto, os Réus (actuação conjunta, como vimos) violaram o princípio da proporcionalidade previsto no art.º 5.º do CPA, os art.º 78.º da CRP, os arts. 7.º, n.º 1 e 91.º, n.º 1 da Lei n.º 107/2001 de 8/9 por terem alterado o nome da estação com fundamento em critério desadequado e inaceitável nos termos descritos, padecendo a actuação de erro grosseiro sindicável pelo Tribunal.
Por conseguinte, impõe-se condená-los a reconhecerem à Autora o direito a ter o nome de Negrelos na estação, a retirarem o nome de “Vila das Aves” e a colocarem novamente na estação o nome “Vila das Aves/Negrelos” repondo o status quo ante da actuação dos Réus que se considera contrária ao bloco legal aplicável.”

O Réu apelou para o TCA Norte e este concedeu provimento ao recurso pela seguinte ordem de razões:
“… Desde já se diga que esta última proposição - “por não terem recebido resposta da C.M. de Santo Tirso” - enquanto assente nas sobreditas razões, e no seu plano estático, não se afigura procedente, não saindo ferido o princípio da proporcionalidade nas suas vertentes da adequação, da exigibilidade ou necessidade e da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito.
….
Não se colocando óbice quanto à pertença da estação e a quem incumbe o baptismo, o tribunal “a quo”, indo de encontro ao brandido pela autora, teve como pertença do património cultural imaterial daquela …. a designação da estação com o nome “Vila das Aves/Negrelos”.
Todavia, a matéria de facto não lhe dá força.
Não basta um simples relevo, nem essa definição se poderá atingir sem mais.
Com certeza que a importância histórica da estação poderá ser afirmada, pelo que recolhe do passado, pelo que proporciona no presente, e pelo que possa projectar a futuro.
Mas, mais que isso, é na imaterialidade do seu nome que vem o litígio.
…..
Veio o DL nº 139/2009, de 15 de Junho (alterado pelo DL 149/2015, de 09/08), a estabelecer o regime jurídico de salvaguarda do património cultural imaterial, compreendendo as medidas de salvaguarda e o procedimento de protecção legal, em desenvolvimento do disposto na Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro.
…..
Assenta a protecção legal num registo patrimonial de «inventário», através de um tipificado procedimento que afere o merecimento de alcance a tal “status”.
Ora, sem demonstração que esteja abrangida nessa inventariação o objecto a que na presente acção se pretende dar garantia de tutela, não verte no caso atingido o suposto património imaterial.
Sem óbice, pois, ao exercício da competência legalmente prevista na mudança de nome da estação.”

3. A questão que se coloca nesta revista é a de saber se a alteração da designação de estação da CP de “Vila das Aves/Negrelos” para “Vila das Aves” sofre das ilegalidades que lhe foram imputadas, designadamente a de tal alteração implicar a perda da identidade cultural da Autora e de, por essa razão, ser ilegal por força do disposto no art.º 78.º/1 e 2/c) da CRP:
As instâncias divergiram na apreciação dessa questão e daí a contradição dos seus julgamentos.
Todavia, se é verdade, como o TAF afirmou, que a alteração da designação da referida estação se insere no exercício do poder discricionário dos RR e se, por essa razão, a mesma só poder ser judicialmente sindicada se decorrer de erro grosseiro ou manifesto, também o é, como o TCA demonstrou, que a protecção legal do património depende do bem em causa estar incluído, ou não, num registo patrimonial, num «inventário», o qual é alcançado através de um tipificado procedimento que afere o merecimento de alcance a tal “status”.
Deste modo, não se encontrando a estação de Vila das Aves registada no referido inventário patrimonial e, por outro lado, tudo parecendo indicar que o acto impugnado se insere no exercício do poder discricionário dos RR e que o mesmo não decorreu de erro grosseiro ou manifesto é de concluir que o Acórdão recorrido decidiu com acerto. O que vale por dizer que a admissão deste recurso não é necessária para uma melhor aplicação do direito.
Por outro lado, a impugnada alteração afecta apenas as populações de duas vilas de pequena ou média dimensão pelo que não se pode concluir que a mesma se revista de uma relevância social de importância fundamental.
Ao que acresce que a questão suscitada neste recurso não é de fácil replicação.
Não estão, assim, preenchidos os requisitos indispensáveis ao deferimento da pretensão do Recorrente.

DECISÃO.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em não admitir a revista.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.