Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0280/18
Data do Acordão:06/07/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:ACTO ADMINISTRATIVO
DELEGAÇÃO DE PODERES
IRREGULARIDADE
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23401
Nº do Documento:SA1201806070280
Data de Entrada:03/15/2018
Recorrente:CONSELHO DIRECTIVO DO IFAP, IP
Recorrido 1:A............ E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1. RELATÓRIO

B…………, na qualidade de cabeça de casal da herança indivisa, aberta por óbito de C…………, falecido em 09 de Março de 1982, no estado de viúvo, interpôs junto do TAC de Lisboa o presente recurso contencioso de anulação da Deliberação do Conselho Directivo do Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola - INGA, de 03 de Novembro de 1998, notificada pelo Ofício do INGA n° 046896, de 03 de Novembro de 1998 e recebido em 05 de Novembro de 1998, que ordenou a reposição da quantia de Esc. 4.064.747$00, considerada como indevidamente recebida, como ajuda à produção de azeite.

Sustentou a ilegalidade do acto recorrido por violação dos artigos 141° e 5°, n° 2, do Código do Procedimento Administrativo, 27° do DL n° 433/82, de 27 de Outubro, 118°, e 2°, n° 2 do Código Penal, 482° do Código Civil, e 266°, n° 2 da Constituição da República Portuguesa.


*

Em sede de alegações finais, o recorrente suscitou ainda o seguinte:

«O Recorrente interpôs o presente recurso convencido de que a decisão final comunicada pelo Oficio nº 046896, de 03 de Novembro de 1998, que juntou com a petição de recurso, sob o n° 3, traduzia uma anterior e genuína deliberação do Conselho Directivo recorrido;

- no entanto, tal decisão que se pretendeu imputar ao Conselho Directivo do INGA, que é um órgão colegial constituído por um presidente e por um mínimo de dois e um máximo de quatro vogais (artigo 8°, n° 1 do DL n° 282/88, de 12 de Agosto), foi apenas subscrita por dois dos seus membros e não consta, nem da decisão, nem do processo administrativo remetido com a resposta, que tenha sido precedida de reunião e votação e plasmada em acta que a comprove;

- a manifestação de vontade dos órgãos colegiais e a consequente formação das suas deliberações em reunião, bem como a expressão destas em acta, está sujeita às regras procedimentais consagradas nos artigos 18° a 28° do Código do Procedimento Administrativo;

- uma das situações geralmente apontadas pela doutrina como exemplo típico de inexistência jurídica é o caso de se pretender fazer passar por deliberação as decisões individuais de membros de órgão colegial, sem que tenha havido efectivamente a formação dessa vontade colegial;

- é o que sucede no caso dos autos, a decisão impugnada não foi precedida de reunião, votação e deliberação do órgão recorrido, ou seja, a “decisão” contida no Oficio DJ-SR 046896, de 03 de Novembro de 1998, não tem qualquer suporte jurídico, na medida em que o órgão colegial ao qual é imputado o acto não chegou a reunir, votar ou deliberar;

- o acto impugnado carece de existência jurídica já que traduz uma mera aparência de deliberação do Conselho Directivo Recorrido sem precedência de efectiva formação da vontade colegial nos termos procedimentais previstos nos artigos 18° a 28° do Código do Procedimento Administrativo, sendo a inexistência jurídica do acto invocável a todo o tempo e de conhecimento oficioso».


*

O TAC de Lisboa, por sentença datada de 29 de Setembro de 2010, decidiu:

«(…)

O acto que foi notificado ao Recorrente em nome do Recorrido Conselho Directivo do INGA, pelo Ofício do INGA n° 046896, de 03 de Novembro de 1998 (transcrito na Alínea C), dos Factos Assentes), é um simples despacho conjunto proferido por dois dos seus membros, juridicamente inexistente como deliberação daquele órgão colegial, sendo uma mera aparência de deliberação.

Não tendo existência jurídica, o acto impugnado não pode constituir objecto de recurso contencioso. No entanto, tendo o Recorrente interesse em eliminar a respectiva aparência, por esta poder afectar os direitos ou interesses que visa defender, é de declarar a inexistência jurídica do acto impugnado — neste sentido, vd. o douto Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 19 de Dezembro de 2001 (Recurso nº 46.027), AP-DR de 23.10.2003, página 8588.

(…)

Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgando procedente o presente recurso contencioso, declaro a inexistência jurídica do acto impugnado.»


*

Inconformado, o Conselho Directivo do INSTITUTO DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA E PESCAS, I.P. (IFAP, IP), interpôs o presente recurso jurisdicional, para o que alegou, vindo a concluir como segue:

«A. A jurisprudência invocada na decisão sob recurso não é transponível para o caso dos autos, porquanto na situação dos presentes autos os dois membros do Conselho Directivo do INGA que assinaram o acto impugnado tinham poderes para a prática do acto.

B. Os autores do acto praticaram o acto ao abrigo de poderes que lhes foram delegados pelo CD do INGA, apenas não tendo mencionado no acto essa sua qualidade de delegado, ao arrepio do que estabelece o art. 38º do CPA.

C. A falta da menção não impediu o recorrente contencioso de impugnar a decisão final administrativa em devido tempo e de se aperceber da imediata definitividade do acto.

D. A jurisprudência do STA tem entendido que o desrespeito pelo disposto no art. 38º do CPA se degrada em formalidade não essencial, se não puser em causa o direito do interessado ao recurso contencioso.

E. É excessivo declarar como inexistente um acto que foi praticado por quem estava habilitado com os poderes necessários à tomada da decisão impugnada, num estado de coisas em que o direito ao recurso contencioso por parte do recorrente contencioso não foi tolhido».


*

A…………, entretanto habilitada como cabeça de casal da herança ainda indivisa, aberta por morte do autor, contra-alegou, tendo concluído nos seguintes termos:

«A. A jurisprudência invocada na decisão sob recurso - Acórdão do STA n° 46027, de 19 de Dezembro de 2001, 9ª Subs. 1ª Sec. - é inteiramente transponível para o caso dos autos, como muito bem o entenderam, o meritíssimo Juiz do Tribunal a quo e a Exma. Magistrada do Ministério Público junto do mesmo Tribunal;

B. Os autores do acto recorrido não indicaram no ofício em que o comunicaram aos interessados que o tinham praticado no uso de poderes que lhe tinham sido oportunamente delegados pelo Conselho Directivo do INGA;

C. Fizeram-no, antes, dando objectivamente a entender que o acto de exigência da devolução dos 4.064.747$00 fora praticado pelo próprio Conselho Directivo do INGA;

D. A jurisprudência do STA citada pelo ora Recorrente não é uniforme como se comprova pelo Acórdão de 19 de Dezembro de 2001, acima citado;

E. Aliás, no caso dos autos, não se trata apenas da violação do disposto no art. 38° do CPA como também e sobretudo de se fazer objectivamente passar o acto recorrido como tendo sido praticado pelo próprio Conselho Directivo, o que obviamente não aconteceu;

F. Tratando-se assim de um acto aparente, enquanto acto do Conselho que, por isso mesmo, não pode deixar de se considerar como inexistente;

G. Inexistência que deve ser declarada, na exacta medida em que a permanência do acto aparente é susceptível de prejudicar os interesses da herança, ora recorrida;

H. Se assim não for entendido por V. Exªs., o que só por hipótese se admite e por absurdo se rejeita, deverá o Venerando Supremo Tribunal “ad quem” considerar os demais vícios invocados pela ora recorrida na sua petição inicial de Recurso Contencioso dirigida ao Tribunal “a quo”, com destaque para o que corresponde à violação do art. 141° do C.P.A., tendo designadamente em conta a nota final do parecer da Exma. Magistrada do Ministério Público junto a fls... dos presentes autos».


*

O Exmº Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso – cfr. fls. 295 e 296.

*

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

*

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. MATÉRIA DE FACTO

No TAC de Lisboa considerou-se assente a seguinte factualidade:

«A) Pelo Oficio n° 37268, de 13 de Julho de 1993, o Instituto Nacional de Intervenção e Garantia Agrícola (INGA) comunicou ao Recorrente a “intenção deste organismo proceder à recuperação do valor indevidamente atribuído e que, sublinhe-se, totaliza a quantia de 4.064.747$00, acrescidos de juros de mora, à taxa legal em vigor”, pelos fundamentos constantes do mesmo ofício, convidando-o para se pronunciar em sede de audiência dos interessados sobre o projecto de decisão (cfr. documento junto com a petição de recurso sob o n° 1, a fls 10/documento constante do processo administrativo apenso aos autos - não numerado, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

B) O Recorrente emitiu pronúncia sobre o projecto de decisão nos termos constantes da carta, de 26 de Julho de 1993, dirigida ao Conselho Directivo do INGA, que constitui o documento n° 2, junto com a petição de recurso, a fls. 12/13, que aqui se dá por integralmente reproduzida.

C) Em 05 de Novembro de 1998, o Recorrente recebeu o ofício do INGA n° 046896, de 03 de Novembro de 1998, assinado por dois membros do Conselho Directivo do INGA, cujo teor aqui se reproduz:

D) Da Acta da reunião do Conselho Directivo do INGA, remetida com as alegações finais da Autoridade Recorrida sob o n° 1, que aqui se dá por integralmente reproduzida, extrai-se o seguinte:

E) Foi publicado no Diário da República, II Série, n° 233, de 09 de Outubro de 1998, o seguinte:


*

2.2. O DIREITO

Nos presentes autos [RCA] importa apurar se o acto contido no ofício nº 046896, que ordenou aos AA a reposição de verbas consideradas indevidas, que se encontra assinado apenas pelo Presidente do Conselho Directivo do INGA e por um vogal, em nome do Conselho Directivo – cfr. facto provado constante da alínea C) – é um acto juridicamente inexistente, como considerado no TAC de Lisboa, por (i) dele não constar a menção de qualquer delegação de poderes e, (ii) por não ter havido qualquer reunião do órgão colegial Conselho Directivo que é composto por um presidente e um mínimo de dois e um máximo de quatro vogais [cfr. artºs 7º e 11º, nº 1 do DL nº 78/98 de 27.03].

A decisão recorrida considerou o acto inexistente fundando-se essencialmente na jurisprudência do Acórdão proferido neste Supremo Tribunal em 19.12.2001, rec. nº 46.027.

Porém, esta jurisprudência não pode ser, sem mais, aplicada à situação dos presentes autos.

Na verdade, in casu, os dois membros que assinaram o acto contido no ofício em causa, tinham poderes delegados para a prática do mesmo, como bem se fez constar da matéria de facto provada – cfr. als D) e E) da factualidade provada – o que desde logo dispensava os trâmites conducentes ao agendamento de qualquer reunião do CD do INGA.

Essa delegação de poderes para a prática do acto, foi conferida por Deliberação do Conselho Directivo e publicada no DR, II série, nº 233, de 09.10.1998.

Assim, o que verdadeiramente sucedeu, foi que apesar dos autores do acto, o terem praticado ao abrigo de poderes delegados, não fizeram constar essa qualidade de delegados no acto, em violação portanto do disposto no artº 38º do CPA/versão aplicável ao tempo, que obrigatoriamente obriga à menção dessa qualidade.

Aliás, na nova versão do artº 38º do CPA, que actualmente corresponde ao artº 48º no CPA/2015, já se afirma:

«1. O órgão delegado ou subdelegado deve mencionar essa qualidade no uso da delegação ou subdelegação.

2.A falta de menção da delegação ou subdelegação no acto praticado ao seu abrigo, ou a menção incorrecta da sua inexistência e do seu conteúdo, não afecta a validade do acto, mas os interessados não podem ser prejudicados nos exercícios dos seus direitos pelo desconhecimento da existência da delegação ou subdelegação».

Mas a verdade é que já antes da entrada em vigor da nova redacção do CPA, em relação a esta norma, a doutrina e a jurisprudência já vinham entendendo que a falta da menção de delegação de poderes no acto, não acarreta a invalidade deste, constituindo antes uma mera irregularidade.

É, pois, jurisprudência desde há muito, consolidada deste Supremo Tribunal que a falta de menção do uso de delegação de poderes, degrada-se em formalidade não essencial (irrelevante) desde que não tenha afectado nem prejudicado o direito ao respectivo recurso contencioso [v., entre outros, Ac. de 21.3. 85, rec. 17869, in Acórdãos Doutrinais 287, pág. 1176 e segs, Ac. de 23.10.97, rec. 38.607, Ac. de 24/04/2001, rec. 039895, Ac. de 30.1.2002, rec. 46135].

Esta jurisprudência é apoiada pela doutrina (cfr. FREITAS DO AMARAL, colaboração de LINO TORGAL, em “Curso de Direito Administrativo”, Vol. II, Almedina, 2001, pág. 252, onde se escreveu - “Por ocultarem elementos que dificultam a sua integral compreensão pelo destinatário ou destinatários, são irregulares os actos que, praticados ao abrigo de delegação ou subdelegação de poderes, não mencionem a existência dessas delegações ou subdelegações”; v, também, pág. 418; MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, JP GONÇALVES, JP AMORIM, ob. cit., pág. 583).

No caso dos autos, o recorrente não ficou afectado no direito de recorrer, pois impugnou contenciosamente o acto que lhe ordenou a devolução das verbas indevidamente recebidas que considerou lesivo dos seus direitos. Nenhum prejuízo lhe adveio, assim, da omissão daquela referência, pelo que tal formalidade se degradou em não essencial, não determinando qualquer invalidade do acto.

No mesmo sentido, entre muitos outros, se pronunciou o Acórdão deste STA de 06.03.2008, in rec. nº 0928/07, ao referir: «In casu», não se duvida que o autor do acto dispunha de poderes delegados para o praticar, tendo meramente sucedido que, ao arrepio do disposto no art. 38º do CPA, essa sua qualidade não foi mencionada no despacho. Todavia, a irregularidade assim acontecida mostra-se completamente irrelevante, pois ela não impediu a recorrente de perceber a definitividade inerente ao acto e de logo o acometer na ordem contenciosa, como deveras se impunha. Ora, este STA tem constantemente dito que a ofensa do disposto naquele art. 38º constitui um dos casos de degradação de uma formalidade em não essencial, sendo impotente para causar a anulabilidade do acto se o interessado não viu tolhido, por isso, o seu direito de recorrer (cfr., v.g., os acórdãos de 21/3/85, de 23/10/97, de 24/4/2001, de 30/1/2002 e de 21/1/2003, proferidos, respectivamente, nos recs. ns.º 17.869, 38.607, 39.895, 46.135 e 44.491).

«A fortiori», nenhum efeito invalidante existe no pormenor de a notificação do acto também carecer da mesma menção – exigível ou recomendável nos termos do art. 68º, n.º 1, al. c), do CPA. Aliás, uma eventual nulidade da notificação – que seguramente se não verifica «in casu» – apenas acarretaria a perda da eficácia do acto, nunca significando que a nulidade pudesse refluir sobre o acto pretérito, causando a invalidade dele».

Posto que o recorrente foi notificado do acto impugnado, praticado pela autoridade recorrida, sem que tivesse sido advertido da existência de uma delegação de poderes válida, mas sendo certo que não obstante essa omissão impugnou o acto no tribunal, sem qualquer constrangimento, não se vislumbra onde está o seu prejuízo nem onde se situa a violação de um direito seu. Nem tão pouco, nesta parte, a ilegalidade do acto. Foi notificado do conteúdo de um acto administrativo, praticado pela entidade competente, reagiu pela via judicial contra ele.

Por isso, no seguimento de jurisprudência consolidada, o Pleno deste Supremo Tribunal decidiu que “A falta de menção da delegação no acto praticado ao seu abrigo não acarreta a invalidade deste, constituindo mera irregularidade formal, abrindo-se ao interessado a possibilidade de exercer, nos prazos legais, os meios de impugnação processualmente adequados aos actos praticados sob tal regime” [acórdão do Pleno de 15.11.2001, no rec. 43061]. De resto, como se vê no sumário do acórdão deste STA de 09.04.03, emitido no recurso 415/03, «1. A notificação do acto administrativo deve conter obrigatoriamente os elementos referidos no art.º 68, nº 1, do CPA. 2. Dela não consta a obrigatoriedade de indicação da qualidade em que o acto é praticado e a da menção do despacho de delegação ou de subdelegação, se for caso disso, embora deva constar "O órgão competente para apreciar a impugnação do acto e o prazo para este efeito, no caso de o acto não ser susceptível de recurso contencioso" (alínea c). 3. Assim, a notificação de acto administrativo praticado por órgão administrativo em matéria que se situa fora das suas competências, mas que se integra nas da pessoa colectiva a que pertence, sem a indicação do requisito previsto na referida alínea c) do n.º 1 do art.º 68 do CPA, indicia a existência de delegação de competências»

Atento tudo quanto se deixou exposto, impõe-se a procedência do recurso, devendo os autos baixar ao TAC de Lisboa, para aí continuar os seus termos se nada a tal obstar.

3. DECISÃO

Atento o exposto, concede-se provimento ao recurso e determina-se a baixa dos autos ao TAC de Lisboa para aí continuar, se nada a tal obstar.

Custas a cargo do recorrido.

Lisboa, 7 de Junho de 2018. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – José Augusto Araújo Veloso.