Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0597/05.9BELRS 0861/17
Data do Acordão:11/21/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:ACÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
RESPONSABILIDADE POR ACTO LÍCITO
REDUÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
JUROS DE MORA
Sumário:I - Para os efeitos do art. 9º, n.º 1, do DL n.º 48.051, são especiais e anormais os anos decorrentes do cumprimento de uma ordem administrativa de destruição de produtos avícolas, imposta a uma sociedade por razões sanitárias e a título preventivo, se o julgamento de facto não revelar que os produtos destruídos estivessem viciados ou contaminados.
II - O art. 494º do Código Civil não é aplicável à responsabilidade por actos lícitos.
III - O art. 805º, n.º3, do Código Civil deve ser extensivamente interpretado por forma a abranger a responsabilidade por actos lícitos.
Nº Convencional:JSTA000P25179
Nº do Documento:SA1201911210597/05
Data de Entrada:10/11/2017
Recorrente:A... SA
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, nesta Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
O réu Estado, representado pelo MºPº, e a autora A…………, SA, interpuseram recursos de revista do acórdão do TCA Sul que, revogando parcialmente o sentenciado no TAC de Lisboa – onde se julgara a acção de condenação dos autos procedente em parte – condenou o réu a pagar à autora a indemnização de € 1.111.679,98, fundada na responsabilidade do Estado por actos lícitos, e os respectivos juros de mora, todavia apenas contáveis a partir do trânsito em julgado da decisão.

A autora A………… findou a sua minuta de recurso enunciando as seguintes conclusões:
I. O presente recurso enquadra-se e é subsumível à previsão normativa do referido art. 150.º n.º 1 do CPTA, porque no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul foi adotado um entendimento quanto ao disposto no art. 805.º, n.º 3 do Código Civil que implicou que fosse seguido um critério para a contagem dos juros, contrária não apenas à posição que maioritariamente é defendida em termos da doutrina civilística, mas também, senão sobretudo, contrária à mais recente orientação que tem sido seguida por parte do Supremo Tribunal de Administrativo, que sempre acolheu a tese que os juros de mora, mesmo nas situações emergentes da responsabilidade por ato lícito, contam-se da data citação, e não do trânsito em julgado

II. O problema da aplicação/interpretação do disposto no art. 805.º, n.º 3 do Código Civil, em particular quando conjugada com o art. 566.º, n.º 2 do mesmo diploma, trata-se de uma questão que se reveste de especial complexidade ou dificuldade na aplicação do Direito,

III. Todavia a relevância jurídica do presente caso revela-se, sobretudo, na circunstância de a ter vencimento a solução jurídica que entende que os juros moratórios devidos à Recorrente, devem ser fixados a contar da data do trânsito em julgado da Decisão, e não, e bem, a nosso ver, desde a citação do Recorrido, prevalece uma orientação que contraria o entendimento jurisprudencial que tem sido conferido a esta mesma matéria por parte do Supremo Tribunal Administrativo.

IV. O Acórdão ora impugnado contradiz frontalmente a orientação jurisprudencial lavrada por um Tribunal hierarquicamente superior, em concreto o sentido das decisões exaradas nos Doutos Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo proferidos em 15/01/2013 (proc. n.º 610/12) e em 18/06/2015 (proc. n.º 1314/13), onde, precisamente, também se debatia uma ação para efetivação de responsabilidade civil extracontratual por ato lícito e no qual se decidiu que os juros de mora, mesmo nas situações em que se julga a efetivação de responsabilidade civil extracontratual por ato lícito, são devidos desde a data da citação e não do trânsito em julgado da sentença

V. Assim sendo, a interpretação jurídica efetuada pelo Venerando Tribunal Central Administrativo do Sul ao art. 805.º, n.º 3 do Código Civil não pugna pela harmonia de julgados, nem pela unidade do sistema jurídico.

VI. De acordo com a orientação jurisprudencial firmada pelo Colendo Supremo Tribunal Administrativo, o art. 805.º, nº 3 não deve ser objeto de uma interpretação meramente enunciativa, relevando a omissão de previsão normativa quanto àquele meio de imputação de danos, mas sim, extensiva, devendo incluir os juros moratórios devidos à efetivação da responsabilidade civil por facto lícito.

VII. Assim, ainda que a norma em apreço seja de índole excecional, por contrariar a regra geral quanto à determinação dos juros de mora, é passível de interpretação extensiva, nos termos do art. 11.º, 2.ª parte do Código Civil.

VIII. Conforme decorre do douto Aresto do Supremo Tribunal Administrativo, exarado em 15/01/2013, "numa leitura literalista a resposta é negativa. O texto da norma só fala em responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, silenciando a responsabilidade por facto lícito. Mas será que o silêncio é eloquente, isto é, a lei não disse porque não quis dizer, ou será que o legislador disse menos do que quis?

Vejamos.

A norma do nº 3 do art. 805º do C. Civil, na primeira parte, fixa a regra: "se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido"; na segunda parte, prevê uma excepção: tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação".
A excepção à regra in illiquidis non fit mora, foi consagrada pela nova redacção do preceito introduzida pelo DL nº 262/83 de 16 de Junho. E como se diz no preâmbulo do diploma, as alterações por ele introduzidas visam complementar as medidas anteriormente fixadas no DL nº 200-C/80, de 24 de Julho, tendo "designadamente em conta que o fenómeno da inflação tornara praticamente irrisórias ou de toda a maneira irrealistas as normas legais que, havia décadas, regiam aquelas matérias", sendo que, "no concernente, em especial aos juros moratórios (artigos 805º e 806º do Código Civil...) cuida-se, em primeiro lugar, de estabelecer, no tocante apenas à responsabilidade civil extracontratual, um termo inicial específico da mora do lesante-devedor".
Temos, assim, convergindo com a leitura do STJ, vertida no citado acórdão de uniformização de jurisprudência, que, com a inovação do DL nº 262/83, de 16 de Junho, no que respeita à obrigação de indemnizar, aos juros moratórios "passou a estar cometida não só a função específica de indemnizar os danos decorrentes do intempestivo cumprimento da obrigação, mas também a de contrabalançar a desvalorização monetária".
Veja-se ainda, neste sentido, o acórdão de 12 de Julho de 2001, proferido pelo STJ na revista nº 1861/00, 7ª Secção, no qual se pondera, passando a citar:

"(...) a acelerada corrosão provocada nos pedidos indemnizatórios pelo fenómeno inflacionário incentivava [...] os devedores a protelarem o andamento nas acções de indemnização, descansados à sombra da regra legal que, no que toca a créditos ilíquidos, como são os de indemnização, relegava o início da mora para quando se tornasse líquido o débito (cfr. a anterior redacção do citado nº 3 do art. 805º), atirando, por isso, o início da contagem de juros de mora sobre a quantia indemnizatória para o, muitas vezes longínquo, momento do trânsito em julgado da sentença. Atrasada, por efeito da demora dos processos, a liquidação definitiva da indemnização e, por via disso, o início da contagem dos juros de mora, a nova redacção do nº 3 do art. 805º, introduzida pelo DL nº 262/83, impunha-se, pois, como urgente necessidade".
Ora, se a finalidade da lei é a de compensar a desvalorização monetária, pela demora na liquidação da indemnização, então não há justificação racional para distinguir, primeiro, entre a responsabilidade extracontratual subjectiva e a responsabilidade extracontratual objectiva e, segundo, dentro desta, entre a responsabilidade pelo risco e a responsabilidade por acto lícito. Razão pela qual consideramos que, para respeitar a teleologia da lei, a norma do nº 3 do art. 805º do C. Civil, deve ser objecto de interpretação extensiva, aplicando-se o seu regime também quando se trate de responsabilidade por acto lícito.
Ao mesmo resultado interpretativo chega ALMEIDA COSTA "Direito das Obrigações", 9ª ed., reimpressão de 2004, p. 685, nota 2 que, a propósito, considera:

"Embora a letra da lei se refira apenas a «responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco», parece de interpretá-la no sentido de abranger também as hipóteses em que a obrigação de indemnização resulte de facto lícito [...]. No comum dos casos não se alcança motivo substancial que leve a distinguir, sob o aspecto em questão, entre a responsabilidade pelo risco e a responsabilidade por factos lícitos. Aliás, no nº 3 do preâmbulo do diploma, alude-se genericamente à «responsabilidade civil extracontratual». Situação paralela se verifica com o nº 2 do art. 74º do Cód. de Proc. Civil, a propósito do tribunal competente, que menciona apenas a «responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco», mas devendo entender-se que o preceito vigora para toda e qualquer espécie de responsabilidade aquiliana. Neste sentido, ver ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, p. 218. nota 1".
Posto isto, não havendo, por este lado, qualquer obstáculo à condenação ao pagamento de juros a contar da citação,
Esta, é, pois, a nosso ver, a melhor leitura da norma que, apesar de ser excepcional admite interpretação extensiva (art. 11º, 2ª parte, do C. Civil)."

IX. A ratio legis do art. 805.º, n.º 3 reside em evitar que o credor venha a ser prejudicado, no exercício da sua pretensão reintegratória, por um facto que lhe é totalmente alheio, e sobre o qual, não poderá ser afetado e lesado, em concreto, pela circunstância da determinação dos juros moratórios devidos permanecerem dependentes da ocorrência de um facto que ignora, quando os prejuízos são devidos e ainda que possam ser ilíquidos, desde a data da propositura da Ação.

X. No caso dos autos, já decorreram mais de doze anos desde a data em que a ação foi instaurada, não se podendo aceitar que a Recorrente seja prejudicada, pelas naturais demoras e delongas processuais que não obviaram pela celeridade processual, que faz com que ainda hoje em dia não se verifique o trânsito em julgado que ponha termos à presente lide.

XI. Como tal, atento parece-nos que o argumento arvorado na interpretação extensiva da norma vertida no art. 805.º, n.º 3, 1.ª parte do Código Civil, em concurso com o sentido teleológico da mesma, permite concluir que o Venerando Tribunal Central Administrativo do Sul, violou a lei substantiva, por erro sobre a interpretação da estatuição da sobredita norma, privando a Recorrente de exigir o pagamento ao Recorrido, dos juros moratórios desde a citação em 1.ª instância.

XII. Acresce ainda que o acórdão ora recorrido, certamente por lapso, não levou em linha de consideração o facto da Recorrente, em sede de reclamação do despacho saneador, ter precisamente requerido a retificação do valor do pedido formulado em sede da respetiva Petição Inicial (€ 1.111.679,98) para o montante de € 1.201.074,18, em resultado de um erro de escrita e de cálculo.

XIII. Este pedido de retificação mereceu a aceitação do Ministério Público (em sede da resposta apresentada em 10/12/2008 à reclamação da Recorrente) e foi objeto de despacho (proferido em 19/06/2009 e já transitado em julgado) que admitiu a correção do valor do pedido para € 1.201.074,18, razão pela qual deverá ser esse o valor da condenação, a título de capital, do Estado Português.


Por sua vez, o MºPº extraiu, da sua revista, as conclusões seguintes:

1. A autora, A……………, S.A. veio, em 2005/11/17, propor uma acção para efectivação de responsabilidade civil extracontratual pela prática de actos lícitos, contra o Estado Português, com vista a ser ressarcida dos danos patrimoniais que avaliou € 1 111 679,98 (correspondentes ao custo de produção das aves, aos custos suportados com a manutenção da congelação das aves desde a ordem de proibição de comercialização e da ordem de destruição, aos custos suportados com a operação de destruição e aos custos com as notas de crédito passadas aos clientes pela destruição de aves aos mesmos vendidas), que como invocou lhe causaram a determinação de 16 de Março de 2003, da Direcção Geral de Fiscalização e Controlo da Qualidade Alimentar, para cessar imediatamente a comercialização de carne de aves congeladas, bem como a determinação de 20 de Março de 2003, da Direcção Regional da Agricultura do Ribatejo e Oeste, que ordenou a destruição, por conta da autora, dessa carne de aves, com data de produção anterior a 14-3-2003.

2. Estas determinações foram motivadas pelo resultado das análises em aves vivas, em que foi detectada a presença de furaltadona e Nitrofuranos e destinavam-se à preservação da saúde pública e ao retorno da confiança dos mercados, uma vez que as vendas caíram drasticamente após a publicitação da referida contaminação.

3. Em 2010/10/11 foi proferida sentença que considerou parcialmente procedente a acção, condenando o Estado a pagar uma indemnização à autora no valor de €596 380,95, a título de danos patrimoniais acrescidos de juros de mora.

4. Por acórdão deste TCAS de 2017/3/30, foi concedido total provimento ao recurso de Apelação interposto pela A e foi concedido parcial provimento ao recurso subordinado interposto pelo Ministério Público, acabando o Réu, Estado Português, por ser condenado a pagar à A. a quantia de € 1 111 679,98, acrescida de juros de mora desde o trânsito em julgado da decisão condenatória.

5. O artº 150º nº 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, a título excepcional, recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo "quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental" ou "quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito".

6. As questões jurídicas que se pretendem tratar são relevantes do ponto de vista objectivo "dado que quando estas situações ocorrem dão lugar a prejuízos que, em qualquer dos critérios que se adoptem, atingem somas em geral muito elevadas para o Estado e o erário público, sendo as diferenças de critério, também elas, determinantes de resultados (montantes indemnizatórios) que podem ser muito diferenciados, pelo que se justifica que o Supremo, tanto quanto possível, esclareça o quadro legal para uma maior paz social e boa administração da justiça" (ac do STA de 7-12-11, no Procº nº 01077/11).

7. A questão de saber se em caso de indemnização pelo sacrifício de bens privados por razões de interesse geral, a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação se deve reportar às condições gerais e objectivas do momento do facto danoso é questão jurídica controversa, de importância geral e sobre a qual a pronúncia do STA pode contribuir para uma melhor administração da justiça, pelo que se justifica a admissão de revista excepcional (ac do STA de 7-12-11).

8. O caso que aqui nos ocupa é em tudo semelhante ao caso a que se reporta o douto acórdão do STA parcialmente transcrito, pelo que, as razões que levaram à admissão do recurso de revista naquele caso, deverão levar à admissão do presente recurso.

9. Atendendo à complexidade e à tendência repetitiva das questões suscitadas, à natureza exígua e dissonante da doutrina e jurisprudência sobre responsabilidade por actos lícitos da Administração Pública (não só durante a vigência do DL nº 48051 de 21/11/67, como na vigência da actual Lei 67/08, de 31-12), ao não tratamento das questões específicas aqui abordadas pela jurisprudência desse Alto Tribunal e ainda ao valor excepcionalmente elevado da indemnização atribuída, com as inerentes repercussões na sociedade e na economia, justifica, no nosso entender, uma melhor aplicação do direito, razão por que o presente recurso deverá ser recebido.

10. Os danos invocados pela A. em consequência da chamada "crise dos Nitrofuranos" não devem ser classificados de danos especiais e anormais, indemnizáveis com fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual decorrente dos actos lícitos praticados pelas entidades públicas.

11. Nos casos de sacrifícios impostos autoritariamente através de medidas legítimas, a inadmissibilidade da indemnização de danos generalizados é a regra, sendo que, prejuízo especial é o provocado por uma anormal ingerência lesiva na esfera jurídico-patrimonial de um cidadão, ou grupo (restrito) de cidadãos e o prejuízo originado deve, ele próprio, ser grave e nessa medida anormal, devendo saber-se se um cidadão ou um grupo e cidadãos foi, através de um encargo público, colocado em situação desigual aos outros e se o ónus especial tem gravidade para ser considerado sacrifício.

12. O artº 9º do DL nº 48051 pressupõe que a acção lícita dos entes públicos seja uma acção de sua própria iniciativa determinada por necessidade ou emergência e não pressupõe acções motivadas pelo exercício de funções de controlo de actividade privada exercida com desrespeito pelas normas legais atinentes, como no caso dos autos.

13. No caso dos autos, a actividade (de controlo) levada a efeito pelas autoridades públicas foi motivada pela circunstância que motivou a "crise dos Nitrofuranos" sendo que, no sector de actividade da A. alguém agiu de forma que exigiu a intervenção das autoridades sanitárias, sendo que a actividade no sector alimentar é uma actividade sujeita a práticas rigorosas e exigentes e com inerentes deveres que incumbe respeitar.

14. As entidades públicas só intervieram porque no sector de actividade referido algum dos responsáveis mencionados no artº 9º do DL nº 148/99, não cumpriu os respectivos deveres, tendo as apreensões sido efectuadas devido a medidas cautelares, pois estas eram necessárias para defesa da saúde pública;

15. Não se verifica nexo de causalidade entre o facto lícito praticado pelas autoridades de saúde e os danos invocados pela A. uma vez que as ordens de proibição de comercialização e de destruição só ocorreram tendo em consideração a designada "crise dos Nitrofuranos" pela qual o Réu não foi responsável, mas os respectivos produtores ou outros intervenientes no ciclo de produção, comercialização e venda.

16. No caso dos autos, algum interveniente nesta actividade do sector alimentar agiu com culpa permitindo a contaminação das aves com os produtos tóxicos que foram identificados e, nessa medida tem de ser relevada essa culpa ao ser ponderada a existência do dever reparatório do Réu, atentas as acções lícitas das autoridades de saúde.

17. Existe, efectivamente, um risco inerente à própria actividade de compra e venda de aves, decorrente da sua fácil contaminação e deterioração e daí a apertada fiscalização que a Direcção Geral de Veterinária e mesmo a autora levam a cabo permanentemente.

18. A conclusão correcta será a de que, a existência de culpa de alguém estranho à lide e a inexistência de culpa do lesante deverá precludir, o direito à indemnização que foi reclamada e atribuída.

19. No caso de responsabilidade decorrente da prática de actos lícitos poderá ser devida, não uma indemnização, mas uma "compensação justa" a avaliar segundo juízos de equidade e atendendo "às demais circunstâncias do caso", nos termos do artº 494º do C.C.

20. A reparação da situação seria assegurada por uma compensação arbitrada em função do valor dos bens destruídos, ou seja, o montante que o lesado pagou para os obter (acrescido das despesas com a destruição e decorrentes da demora desta) mas tendo também em consideração as circunstâncias existentes à data da ordem de destruição, como sejam as circunstâncias de interesse público justificativas do acto lesivo, como a ameaça à segurança alimentar, a necessidade de acautelar a saúde pública e a necessidade de restabelecer a confiança do consumidor.

21. É defensável o recurso a juízos de equidade, bem como a aplicabilidade do artº 494º do C. CIVIL para aferir do cálculo indemnizatório em caso de pedido de indemnização pelo sacrifício, o que pode ser aplicável ao caso vertente.

22. O montante arbitrado a título de indemnização deverá ser arbitrado a título de compensação, sendo substancialmente reduzido e tendo em conta as circunstâncias do caso, como seja o baixo valor de mercado dos bens à data da sua destruição, bem como o risco inerente à actividade de compra e venda de carne de aves especialmente sujeitas a contaminação.

23. A responsabilização pela prática de actos lícitos tem como finalidade a criação de uma nova situação patrimonial correspondente e de igual valor, reportada à data da lesão.

24. Foram ofendidos os preceitos legais já mencionados como sejam os art.ºs 9º do DL nº 48051, 9º do DL nº 148/99 e 494º do Código Civil, impondo-se o provimento do presente recurso jurisdicional e a revogação do douto Acórdão recorrido com todas as legais consequências.


O Estado não contra-alegou.
Mas a A………….. fê-lo, concluindo do seguinte modo:

I - No caso sub iudice não verifica nenhum dos requisitos de que depende a admissão do presente recurso e a subsequente reapreciação do processo por parte do Supremo Tribunal Administrativo (STA), dado não se verificarem os pressupostos a que alude o já referido n.º 1 do art.º 150.º do CPTA.

II - Todas as questões de direito que são suscitadas por parte do recorrente Estado Português no presente recurso, foram também já invocadas em anteriores processos (e nos respetivos recursos que os mesmos compreenderam) instaurados no seguimento da Crise dos Nitrofuranos, os quais mereceram uma resposta jurisprudencial perfeitamente unânime e uniforme.

III - Não se suscitam, portanto, quaisquer questões de especial relevância jurídica, nem destinadas a permitir a melhor aplicação do direito.

IV - Por outro lado, há que reconhecer que a crise dos nitrofuranos – e as respetivas repercussões que da mesma resultaram – já está perfeitamente ultrapassada e encerrada, pelo que a sua relevância social é hoje particularmente diminuta.

V - As próprias questões que são suscitadas no Acórdão que é invocado por parte do recorrente para justificar a admissão do presente recurso (relacionadas com a mensurabilidade do dano), nem sequer se colocam nos presentes autos, dado que os prejuízos foram avaliados pelo valor corresponde ao do respetivo custo de produção, não tendo sido peticionados quaisquer lucros cessantes.

VI - Importa ainda assinalar que na base do recurso, parece estar, na realidade, a invocação de um eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, pese embora nos termos do nº 4 do art. 150º do CPTA, esteja, por norma, vedado ao tribunal de revista a reapreciação dos factos e dos juízos de facto fixados pelo tribunal a quo.

VII - Considerando o teor do recurso ora apresentado, o que resulta evidente é que o Estado Português coloca o acento tónico na questão da crise dos nitrofuranos ter sido determinada por ações de terceiros e que a ordem de destruição surgir como mera reação a uma situação criada por culpa desses terceiros.

VIII - Salvo o devido respeito pela opinião diversa, a matéria referente aos motivos e causas da crise dos nitrofuranos nunca foi alegada por qualquer das partes e por essa razão nunca constituiu objeto de qualquer discussão (inexiste, aliás, um único ponto da matéria provada que refira esta questão), pelo que a invocação desses factos apenas em sede de recurso de revista integra um verdadeiro pedido de reapreciação de factos e juízos de facto.

IX - Ao tribunal ad quem, em sede de recurso de revista, não é permitido reanalisar os fundamentos de facto atendidos por parte do tribunal a quo para efeitos de fixação da indemnização.

X - Relativamente à verificação dos pressupostos da responsabilidade civil decorrente da prática de atos lícitos, conforme decorre do teor da douta decisão recorrida, o tribunal a quo considerou que a autora sofreu um prejuízo especial e anormal, decorrente de atos administrativos e materiais lícitos praticados pelo Estado, no interesse geral.

XI - E que entre as ordens determinadas e o prejuízo sofrido pela Recorrente se verifica, efetivamente, um nexo de causalidade adequada.

XII - A decisão acolhe na sua plenitude a orientação que já vinha sendo seguida quer por parte do Supremo Tribunal Administrativo de 16/05/2002 (Proc. 0509/02), de 29/05/2003 (Proc. 688/03) e de 18/06/2015 (Proc. 1314/13), quer, mais recentemente, pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça (acórdão de 10/05/2005) - todos disponíveis in www.dgsi.pt.

XIII - Referindo-se aos danos sofridos pela autora, alega o Recorrente Estado Português que não devem considerar-se "prejuízos inerentes aos riscos normais da vida em sociedade, mas apenas perante riscos inerentes a uma certa actividade".

XIV - A jurisprudência quer do Supremo Tribunal Administrativo (STA), quer mais recentemente do próprio Supremo Tribunal de Justiça, manifestaram-se em perfeita sintonia com a doutrina que se pronunciou sobre esta matéria, ao fixarem que:

a) prejuízo especial é aquele que não é imposto à generalidade das pessoas, mas a uma pessoa (ou conjunto de pessoas) certa(s) e determinada(s) em função de uma relativa posição específica,

b) prejuízo anormal como aquele que não é inerente aos riscos normais da vida em sociedade, impostos a todos os cidadãos, ultrapassando os limites impostos pelo dever social de suportar determinadas compressões de direitos em função da atividade lícita da administração.

XV - Contrariamente à ideia defendida por parte do Recorrente, in casu subsiste inequivocamente um prejuízo especial na medida em que o dano ocorrido se verificou exclusivamente na esfera patrimonial da autora.

XVI - A Recorrida foi efetiva e concretamente visada pela atuação do Estado e o sacrifício por si sofrido, em prol do interesse geral, não foi repartido ou assumido pelos demais cidadãos.

XVII - É a circunstância de a atuação do Estado prosseguir um interesse geral e comum, não se reconduzindo a um simples e mero ato de regulação normal e corrente desta espécie de atividade económica, que verdadeiramente torna o prejuízo especial.

XVIII - Do mesmo passo é inexorável considerar que a autora sofreu um prejuízo anormal.

XIX - O carácter anormal determina-se igualmente pela dimensão do prejuízo sofrido pela Recorrida e nessa circunstância é fácil de alcançar, uma medida que abranja a totalidade do stock existente é sempre uma medida de extraordinária.

XX - Importa ainda sublinhar que foi exclusivamente o Estado Português que optou por proceder à destruição das carnes congeladas sem previamente realizar quaisquer análises, não estando alegado, nem demonstrado, que a autora alguma vez tivesse dificultado ou impedido a realização de tais exames.

XXI - E muito menos ainda que tivesse tido qualquer responsabilidade pela crise dos nitrofuranos.

XXII - Razão pela qual em momento algum foi alegada e muito menos ainda demonstrada qualquer responsabilidade (ou culpa) da Recorrida para o sucedido.

XXIII - Por último, o prejuízo é, para a ora recorrida, anormal, na medida em que a mesma em nada contribuiu para a sua verificação.

XXIV - Com respeito à questão do nexo de causalidade invoca o Recorrente que as ordens determinadas por parte do Estado Português tiveram na sua génese a crise dos nitrofuranos, a qual se deveu a comportamentos de terceiros e à quebra de confiança dos consumidores.

XXV - O que o Recorrente esquece é que não ficou provado que as ordens de destruição foram determinantes para o escoamento destes produtos e para repor os níveis de confiança.

XXVI - Por outro lado, não pode colher a própria consideração que o Recorrente procura transpor com respeito à eventual culpa de terceiros no sucedido, a qual é completamente irrelevante, não tendo sequer constituído objeto de discussão nos presentes autos.

XXVII - Dúvidas não restam por isso, que os danos resultaram exclusivamente das ordens de proibição de comercialização, de apreensão e finalmente de destruição.

XXVIII - Donde se conclui obrigatoriamente, que entre produção dos danos e a conduta ativa (proibição de comercialização, apreensão e destruição) e omissiva (não realização dos exames periciais pertinentes) por parte do Réu, se verifica o necessário nexo de causalidade.

XXIX - Com relação à questão da reconstituição natural a sentença cumpriu rigorosamente com o disposto no art. 562º do Código Civil, reconhecendo a específica natureza comercial dos bens em causa.

XXX - Conforme se decidiu no Acórdão do STA proferido em 18/06/2015 (proc. nº 1314/13, cujo relator foi o Conselheiro Fonseca da Paz), não distinguindo o DL 48051 de 21/11/67 entre as diversas modalidades de responsabilidade civil, a obrigação de indemnização rege-se, em relação a todas elas pelos arts. 532.º e seguintes.

XXXI - Acrescentando-se ainda nesse Aresto que "se a responsabilidade por factos lícitos tem o seu fundamento no princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos e se nela se desvaloriza a ocorrência de danos generalizados e de pequena gravidade, não há justificação para que, além deste, haja outro factor limitativos da indemnização de danos, os quais são inequivocamente graves e incidem desigualmente sobre certos cidadãos por só abrangerem um indivíduo ou um grupo restrito de indivíduos."

XXXII - Na situação concreta dos bens em causa no processo sub iudice, a verdadeira reconstituição natural não corresponde à atribuição de um valor hipotético, mas no reconhecimento do valor que na data da respetiva destruição, esses bens possuíam para a Recorrente.

XXXIII - E esse valor, outro não poderia ser outro que não fosse o respetivo custo de produção, o qual corresponde ao único mensurável de forma objetiva para os produtos pertencentes ao stock da empresa.


As revistas foram admitidas por acórdão do STA de 14/9/2017, da responsabilidade da formação a que alude o art. 150º do CPTA.

A matéria de facto pertinente é a dada como provada no acórdão «sub censura», a qual aqui damos por integralmente reproduzida – como ultimamente decorre do estatuído no art. 663º, n.º 6, do CPC.

Passemos ao direito.
Como flui dos articulados e da matéria de facto assente, o dissídio dos autos respeita à reparação de vários danos sofridos pela autora em virtude do Estado, através das autoridades sanitárias, lhe haver licitamente imposto a destruição de produtos avícolas – fazendo-o por razões preventivas, ligadas à denominada «crise dos nitrofuranos».
Entre esses danos, avultava o correspondente ao próprio valor dos produtos destruídos, o qual foi computado pelas instâncias em € 1.066.331,60. Elas concordaram que o réu tinha o dever de reparar esse dano; mas divergiram acerca do montante indemnizatório, já que o TAC condenou o Estado a pagar apenas metade daquele quantitativo, enquanto o TCA o condenou no pagamento da integralidade.
Reiterando o que já dissera na apelação que subordinadamente interpôs, o Estado visa, com a sua revista, obter a absolvição do pedido ou, pelo menos, a redução do «quantum» em que foi condenado.
Já a revista da autora questiona o «dies a quo» da contagem dos juros moratórios que o TCA fixou a seu favor.
Sendo assim, temos de enfrentar primariamente a revista do réu; pois, se plenamente a concedêssemos, ficaria suprimida, «ipso facto», a condenação do Estado em juros de mora – o que privaria de objecto a revista da autora.
Consideremos, portanto, a revista minutada pelo MºPº.
A crítica mais radical que o MºPº dirige ao acórdão «sub specie» consta das conclusões 15.ª e 16.ª da sua minuta de recurso – onde se afirma que não existe nexo causal entre a ordem administrativa de destruição dos referidos produtos avícolas e o prejuízo inerente à perda dos bens assim destruídos.
Mas esta tese é temerária e desafia o bom senso. A autora só destruiu os seus produtos avícolas – sofrendo o dano correspondente à perda do seu valor, para além de outros danos colaterais – porque o Estado lhe impôs essa conduta. E a simples presença, na frase anterior, da conjunção causal mostra logo que os prejuízos invocados pela autora «in initio litis» são uma consequência, aliás típica e normal, da ordem emitida pelas autoridades sanitárias.
Assim, o nexo de causalidade é, «in casu», evidente, motivo por que soçobram as duas conclusões que estiveram em apreço.
Nas conclusões 10.ª a 14.ª, o MºPº defende que o Estado não pode ser responsabilizado por actos lícitos, nos termos do art. 9º, n.º 1, do DL n.º 48.051, de 21/11/1967, já que os danos comprovadamente sofridos pela autora não seriam especiais nem anormais. E essas conclusões estão conectadas com a 17.ª, onde o mesmo recorrente sustenta que tais prejuízos da autora se inseriam nos riscos próprios da sua actividade industrial e comercial.
Mas, também aqui, o MºPº não é persuasivo. À luz da referida norma, os «prejuízos» são «especiais» quando o sacrifício pessoal do lesado o distingue do que se exija aos demais membros da comunidade – tidos, afinal, como beneficiários do interesse público acolhido na conduta lesiva legitimamente imposta. Ora, é esse o caso dos autos: correspondia ao interesse colectivo eliminar produtos alimentares possivelmente contaminados; e esse interesse geral assegurou-se através da afecção especial do património da autora, que se viu constrangida à destruição de bens que lhe pertenciam.
Por outro lado, e como as instâncias disseram, também é claro que tais prejuízos são «anormais». Decerto que a resposta das autoridades sanitárias à dita «crise dos nitrofuranos» é justificada ou compreensível – pelo que tal resposta é «normal». Contudo, esta normalidade, e aquelas justificação e compreensão, simplesmente servem para qualificar como lícita a acção do Estado. A anormalidade que consta do art. 9º, n.º 1, é de outro tipo, pois tem de colocar-se do lado dos «prejuízos». Ora, e «in casu», estes só seriam normais – ou não seriam «anormais» – se pudéssemos integrá-los dentro dos riscos inerentes à actividade da autora.
Mas essa integração é impossível. A actividade da autora comporta o risco de ter de destruir produtos alimentares seguramente contaminados; mas não comporta o risco de perder bens cuja contaminação não seja certa ou, pelo menos, muito provável. Sabemos que a autora foi administrativamente compelida a destruir produtos que a matéria de facto não caracteriza como viciados ou contaminados. Portanto, essa destruição excedeu manifestamente os riscos próprios da actividade da autora, provocando-lhe prejuízos que devem ser qualificados como «anormais».
Improcedem, assim, as conclusões 10.ª a 14.ª e 17.ª da minuta de recurso do MºPº.
Na sua conclusão 18.ª, o mesmo recorrente diz que a «crise dos nitrofuranos» teve por origem uma conduta culposa de terceiros; de modo que a conjunção dessa culpa com a falta de culpa do Estado deveria «precludir» quaisquer deveres indemnizatórios a cargo do réu.
Trata-se, porém, de uma tese sem cabimento. O Estado responde por actos lícitos, isto é, independentemente de ilicitude e de culpa; e a eventual culpa de um ignoto terceiro não é para aqui chamada. O que se deve a algo óbvio: a acção culposa desse terceiro não é a conduta por que o Estado responde nestes autos – ainda que se admita que o acto culposo desse terceiro e o acto lícito do Estado se articulam numa relação de antecedente a consequente.
Aliás, e em geral, a culpa de um terceiro na eclosão de acontecimentos lesivos não tem outro efeito senão o de o fazer responder pelos danos, solidariamente com o lesante directo e também culposo (art. 497º do Código Civil). Mas, «in casu», a conduta lesiva consistiu numa ordem legítima de destruição de produtos; essa ordem emanou do Estado; e, precisamente por isso, é o Estado quem responde pelos prejuízos advindos do seu comportamento lícito – ainda que, na origem dessa ordem, esteja uma situação de crise sanitária causada por outrem.
Improcede, assim, a conclusão 18.ª.
Nas conclusões 19.ª a 24.ª, o MºPº afirma três essenciais coisas: que a autora não tem direito a uma indemnização, mas a uma mera «compensação justa»; que esta deve ser fixada nos termos do art. 494º do Código Civil; e que o juízo equitativo a proferir ao abrigo desta norma deve considerar «o baixo valor de mercado dos bens à data da sua destruição», assim «como o risco inerente à actividade» da autora.
Porém, o próprio art. 9º, n.º 1, do DL n.º 48.051 dizia que a responsabilidade aí prevista criava uma obrigação de indemnizar – e não outra coisa qualquer. Aliás, e etimologicamente, indemnizar significa suprimir um «damnum»; e a acção dos autos serve, indiscutivelmente, uma finalidade desse género.
Por outro lado, o art. 494º do Código Civil não é aplicável à responsabilidade pública por actos lícitos, não só porque está sistematicamente inserido numa subsecção restrita à «responsabilidade por factos ilícitos», mas também porque o seu primeiro pressuposto de aplicação é a circunstância da «responsabilidade se fundar na mera culpa» (neste sentido, cfr., v.g., o acórdão do STJ e a anotação favorável constantes da RLJ, 109º, págs. 111 e ss.).
E, arredando-se da resolução do caso aquele art. 494º, claudica de imediato a ideia de que o «quantum» indemnizatório deveria ser calculado equitativamente («vide» o art. 4º do Código Civil); bem como a estranha tese de que o cômputo dos danos haveria de efectuar-se à margem do que, a propósito, consta da factualidade provada.
Donde se segue a improcedência das seis conclusões que estiveram sob análise.
As dez primeiras conclusões da alegação do MºPº limitam-se a historiar a problemática dos autos e a defender a admissão da revista – pelo que são irrelevantes para o desfecho dela. A última conclusão do MºPº – a 24.ª – sintetiza os vícios «de jure» descritos nas conclusões imediatamente anteriores e «supra» denegadas – pelo que o destino desta derradeira conclusão é a mesma improcedência.
Assente que é de negar, «in toto», a revista do Estado, debrucemo-nos agora sobre a deduzida pela autora – que apenas respeita à determinação do início da contagem dos juros de mora.
A 1.ª instância reconheceu à autora o direito a juros de mora relativos à indemnização que fixou, sem todavia esclarecer a data donde eles se contariam. O TCA determinou que essa data correspondesse ao trânsito em julgado da pronúncia condenatória. E a autora sustenta que os juros devem contar-se desde a citação do réu, «ex vi» do art. 805º, n.º 3, do Código Civil, aplicável por interpretação extensiva.
A referida norma começa por dizer que «in illiquidis non fit mora» («salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor»); mas, logo a seguir, faz reportar a data da constituição da «mora debitoris», pelo menos, ao momento da citação nos casos «de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco».
O acórdão recorrido deslocou o início da mora para o trânsito da decisão em virtude do preceito não mencionar a responsabilidade por acto lícito. Mas o facto do art. 805º, n.º 3, não aludir a este tipo de responsabilidade é explicável pela residual e assistemática aparição dela no Código Civil. O que verdadeiramente importa é ver se a «ratio» do regime instituído pela norma para os casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco é transponível para as situações de responsabilidade por actos lícitos.
E essa transposição é imperiosa, pois todos esses tipos de responsabilidade, enquanto prossecutores do mesmo, que é a reparação de um qualquer dano apurado, hão-de fazê-lo de igual modo; ou seja, através de um modo que, por sua vez, considere o incremento trazido ao dano pelo atraso em repará-lo.
Tudo indica, portanto, que o legislador, ao abster-se de referir no art. 805º, n.º 2, do Código Civil a responsabilidade por actos lícitos, «minus dixit quam voluit». E isso legitima e impõe que tal norma seja extensivamente interpretada por forma a abranger ainda esse tipo de responsabilidade – como este Supremo, aliás, já decidiu («vide» os acórdãos de 15/1/2013 e de 18/6/2015 proferidos, respectivamente, nos procs. ns.º 610/12 e 1314/13).
Procedem, assim, as conclusões que a autora enunciou na sua minuta a propósito deste assunto, impondo-se a concessão da revista e revogação do aresto, na parte correspondente.
Nas duas últimas conclusões da revista, a autora pede que se rectifique o «quantum» indemnizatório, já que o TCA condenou o réu no valor inicialmente pedido (€ 1.111.679,98) que, todavia, fora rectificado para € 1.201.074,18 no despacho que decidiu a reclamação da autora sobre a base instrutória – cujo quesito 14º passou a incluir esse último valor.
O «lapsus calami» do acórdão recorrido é evidente, pois a condenação final (ínsita na pág. 38 do aresto) está em desarmonia com o que nele conclusivamente se escrevera na pág. 36: «reputa-se adequado a fixação do montante indemnizatório de € 1.201.074,18» («sic»).
E, por se tratar de um erro claro e ostensivo, enquadrável no art. 249º do Código Civil, podemos e devemos corrigi-lo agora.
Já o mesmo não sucede com dois outros equívocos em que o aresto incorreu ao fixar a indemnização. Iludido com a circunstância de o fulcral quesito 14.º ter recebido a resposta de «provado», embora com um «esclarecimento», o TCA não reparou que, relativamente a dois dos elementos do quesito, a resposta era verdadeiramente restritiva – donde logo se seguiria a impossibilidade de computar a indemnização naqueles € 1.201.074,18.
Assim, o acórdão recorrido considerou um montante indemnizatório «ultra probatum». Mas este erro já não é de cálculo ou de escrita, advindo antes de uma deficiente captação da matéria de facto. E o STA só poderia corrigi-lo «hic et nunc» se o MºPº tivesse solicitado isso no seu recurso – o que ele, todavia, não fez.
Portanto, a única rectificação a realizar é a mencionada «supra», satisfazendo-se esse pedido da autora.

Nestes termos, acordam:
a) Em negar a revista do MºPº;
b) Em conceder a revista da autora, revogando-se o acórdão recorrido na parte relativa ao início da contagem dos juros de mora e condenando-se o Estado a pagá-los à autora desde a citação;
c) Em confirmar o acórdão recorrido na parte em que condenou o Estado a pagar à autora uma indemnização, rectificando-se, todavia, o montante desse capital para a importância de € 1.201.074,18.
Sem custas.

Lisboa, 21 de Novembro de 2019. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator por vencimento) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (vencida nos termos da declaração de voto que se junta).


VOTO DE VENCIDO

Vencida, não acompanhando o entendimento que logrou obter vencimento relativamente à questão do cálculo do quantum indemnizatório.

As razões que nos fazem discordar do entendimento maioritário são aquelas que foram expostas no projecto de acórdão que elaborámos, projecto esse em que defendemos a limitação do montante indemnizatório a pagar pelo R. Estado no presente caso que envolve uma situação de responsabilidade pelo sacrifício. São elas, em síntese, as seguintes:

1. O objecto do recurso de revista apresentado pelo EP, tal como por ele delimitado, abrange três questões: i) a do nexo de causalidade; ii) a do carácter especial e anormal dos danos causados; iii) a da concreta fixação do quantum indemnizatório, sendo certo que o pedido indemnizatório apenas se reportava aos danos emergentes e não, também, a lucros cessantes.

2. Sustenta o recorrente EP que nestes casos de responsabilidade por acto lícito apenas há direito a uma justa compensação e não a uma indemnização, posição que tem tido algum respaldo na doutrina. Esta é, contudo, uma tese que não vai ao encontro do texto do artigo 9.°, n.° 1, do DL n.° 48051 (a que corresponde o actual artigo 16.° da Lei n.° 67/2007), que claramente fala em “indemnização”, não havendo motivo bastante para acreditar que o legislador não soube expressar bem a sua vontade.

3. Isto não significa, no entanto, e em nosso entender, que na situação descrita nos autos tenha muito sentido obrigar o Estado ao pagamento de um montante indemnizatório que cubra a integralidade dos danos sem qualquer possibilidade de limitação do mesmo.

4. Com efeito, começa por recordar-se que os danos não foram causados por uma actividade perigosa desenvolvida pelo Estado, antes resultaram do exercício de uma função de controlo de actividades privadas — a conduta do Estado-Administração teve lugar na sequência de condutas de terceiros que não respeitaram as rigorosas regras sanitárias impostas pelo Estado-legislador às explorações avícolas. E, justamente, é importante que se diga, o Estado, através da sua actuação normativa e de fiscalização tudo faz e tudo fez para minorar os riscos relacionados com este sector de actividade (v. facto provado c) quanto à actividade de fiscalização).

5. Deve igualmente recordar-se o facto dado com provado na al. p) da matéria de facto: «Das cotações oficiais do mercado avícola, no período de 24 de Fevereiro a 13 de Abril 2003 resulta, designadamente “uma retracção acentuada do consumo”». E, bem assim, o facto dado com provado na al. q): «Em 27 de Outubro de 2003 a Direcção-geral de Veterinária através de relatório técnico refere, designadamente, que “em cerca de 3 meses foi possível restabelecer a confiança no consumo de aves”».

6. Assim sendo, se, de um lado, o Estado deve reparar os danos que resultaram de uma sua conduta lícita que provocou uma ruptura da igualdade perante os encargos públicos, do outro, obrigá-lo ao pagamento de montantes indemnizatórios correspondentes à totalidade dos danos redunda num sistema de socialização da responsabilidade estadual dificilmente comportável pelas finanças públicas, além de que sempre seria uma solução perigosa (pois pode ´incentivar´ o Estado a demitir-se desta sua importante função de fiscalização das explorações agro-alimentares em geral) e, mais do que isso, injusta (na medida em que o Estado desempenha um papel fundamental na prevenção de crises sanitárias, como a denominada “crise dos Nitrofuranos” que serve de pano de fundo ao caso dos autos).

7. Entendemos, nesta medida, que a situação subjacente ao caso dos autos é uma daquelas em que tem todo o sentido a convocação de juízos de equidade com vista a encontrar uma solução verdadeiramente justa. Consegue-se por esta via um ajustamento do montante indemnizatório, que será calculado com apelo a juízos de equidade, sem necessidade de entrar em querelas doutrinárias (indemnização ou justa compensação?) e, mais do que isso, sem necessidade de recorrer-se à culpa do lesado para proceder à limitação da indemnização a pagar pelo recorrente EP.

8. A isto – ou seja, à aplicação do artigo 494.° do CC – não obstaculiza a circunstância de o recorrente EP não ter feito prova de que houve terceiros lesantes, identificando-os. Isso seria importante para o EP se eximir da sua responsabilidade extracontratual mediante o afastamento do nexo de causalidade entre os danos invocados e a conduta das autoridades sanitárias estaduais (o que foi tentado pelo recorrente) ou para limitar a responsabilidade do EP mediante a invocação uma situação de concurso de causas. Mas, como se viu, o nexo de causalidade foi estabelecido, apenas se sustentando que a indemnização a pagar pelo EP deve ser reduzida, com base em juízos de equidade, porque não foi ele que deu origem à “crise dos Nitrofuranos” (e se não foi ele nem a A., ora recorrida, foi certamente, um terceiro ou terceiros, ainda que não identificado/s). Muito pelo contrário, o Estado leva a cabo uma actividade preventiva, quer no plano normativo, quer no plano administrativo com vista a reduzir riscos associados à indústria agro-alimentar.

9. Mais ainda, é difícil, porque ilógico, sustentar que sem a actuação do Estado a retoma da confiança da população nos produtos avícolas teria ocorrido, segundo se depreende do argumento da A., de forma mais célere. Como igualmente ilógico nos parece sustentar que a A. não teve qualquer benefício com a apreensão e destruição da carne de aves por aquele determinada. E nem se diga que a carne congelada tem um período de validade longo. Desde logo, porque não se sabe quanto tempo duraria a crise se não tivesse havido a intervenção do Estado. Mas, mais do que isso, os produtos congelados da A. anteriores a 14.03.03 – e, portanto, contemporâneos daqueles em que foram detectadas substâncias perigosas – não foram sujeitos a análise, pelo que sobre eles sempre recairia o receio de também poderem estar contaminados.

10. De idêntico modo, não impede a aplicação do artigo 494.° do CC a circunstância de aí se mencionar a “mera culpa” e, no caso dos autos, estarmos perante uma situação de responsabilidade por acto lícito. Efectivamente, se em situações de “mera culpa” o legislador permite a redução do montante da indemnização devida, por maioria de razão ela deve ser possível quando nem sequer houve uma actuação ilícita.

11. Cabe por último sublinhar, a este propósito, que, tratando-se de danos que não sejam considerados “especiais” e “anormais”, nem sequer há obrigação de indemnizar.

12. Em síntese, ainda que o recorrente EP não tenha defendido estarmos perante um caso de concurso de causas, o que apenas o tornaria, na medida em que o mesmo ficasse provado, co-responsável para efeitos de pagamento da indemnização, sempre seria possível reduzir o montante indemnizatório devido com recurso ao disposto no artigo 494.° do CC.


Maria Benedita Malaquias Pires Urbano