Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0314/23.1BEFUN
Data do Acordão:04/10/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:RECLAMAÇÃO JUDICIAL
CITAÇÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
Sumário:I - Inexistindo qualquer decisão do órgão da execução fiscal quanto aos termos em que deve ser efectuada a citação, eventuais irregularidades deste acto não podem ser assacadas a uma putativa decisão, que não pode ser erigida em objecto de reclamação judicial deduzida ao abrigo do disposto nos artigos 276.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).
II - Eventuais invalidades do acto de citação não podem ser invocadas como fundamento autónomo da reclamação judicial prevista nos artigos 276.º e seguintes do CPPT, antes devendo ser suscitadas junto do órgão da execução fiscal, com reclamação judicial de eventual decisão desfavorável.
Nº Convencional:JSTA000P32086
Nº do Documento:SA2202404100314/23
Recorrente:A... UNIPESSOAL, LDA
Recorrido 1:AT-RAM
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1. “A... Unipessoal Lda.”, inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal - que julgou improcedente a Reclamação por si deduzida, ao abrigo do artigo 276.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), no processo de Execução Fiscal em que lhe está a ser exigido coercivamente o pagamento da quantia de € 338 566,65, emergente da liquidação adicional relativa a IRC do exercício de 2014, no âmbito do processo de recuperação dos auxílios de Estado concedidos a empresas da Zona Franca da Madeira - interpôs recurso para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. A motivação do recurso oportunamente apresentada mostra-se encerrada com as conclusões que infra se transcrevem:

«A. O presente recurso tem por objeto a Sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que decidiu pela improcedência da reclamação judicial deduzida pela ora Recorrente, nos termos e para os efeitos do artigo 276.º e seguintes do CPPT, da decisão do órgão de execução fiscal, de não aplicação in totum das regras de natureza processual tributária aplicáveis no âmbito do processo de execução fiscal, em razão da natureza da dívida em causa no processo de execução fiscal n.º ...82, para cobrança coerciva de IRC, do período de tributação de 2014, no montante de no montante de € 337.372,27, acrescido de custas processuais e encargos no montante de € 1.194,38, totalizando a quantia de € 338.566,65, no âmbito do processo de recuperação dos auxílios de Estado concedidos a empresas da Zona Franca da Madeira

B. e deve ter subida imediata nos próprios autos para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, por respeitar exclusivamente a matéria de direito (artigos 280.º, n.º 1 e 286.º, n.º 1 do CPPT) e com efeito suspensivo (artigos 278.º, n.º 3 e 6 e 286.º, n.º 2 do CPPT).

C. A Sentença recorrida padece de erro de julgamento quanto à identificação do objeto e das questões ou causas de pedir;

D. De facto, entendeu a Sentença recorrida que o objeto da reclamação judicial deduzida pela Recorrente é o teor do ato de citação para o processo de execução fiscal acima identificado, e os respetivos vícios que lhe são imputáveis.

E. Em função de tal perceção (errónea) do objeto da reclamação concluiu pela improcedência da presente reclamação (ainda que não com fundamento na procedência da exceção do erro na forma do processo).

F. Contudo, salvo o devido respeito, que é muito, o ato de citação (e a violação das respetivas formalidades legais) não é o objeto da reclamação judicial aqui em causa.

G. O objeto da reclamação judicial em causa é a decisão administrativa em matéria fiscal – de aplicação apenas parcial das regras de processo tributário a um procedimento de recuperação de auxílios, em razão da alegada natureza da dívida exequenda – decisão que se encontra exteriorizada na citação para o referido processo de execução fiscal

H. Com efeito, do conteúdo da citação é possível inferir que o órgão de execução fiscal tomou a decisão deliberada de aplicar o processo de execução fiscal à recuperação de auxílios de Estado (de resto, sem habilitação legal) de modo fragmentado, desaplicando, em concreto, as regras que preveem a possibilidade de pagamento da dívida em prestações e suspensão do processo mediante a constituição de garantia idónea ou a sua dispensa –, alegando, sem concretizar, a natureza e as características da dívida.

I. A indicação de que a supressão de determinadas garantias decorre “da natureza e características da dívida” corresponde a uma fundamentação manifestamente insuficiente de um ato administrativo, como é defendido pelo Exmo. Representante do Ministério Público.

J. Não está, assim, em causa a sindicância do ato de citação enquanto ato eminentemente informativo, mas antes do ato administrativo prévio que determinou a elaboração dos atos de citação nos termos em que o foram.

K. No caso concreto, os vícios formais da citação mais não são do que a decorrência da execução da decisão administrativa que lhes serve de base: a não concessão de possibilidade de suspensão da execução não decorre de um lapso ou incorreção da citação, que, pela sua incompletude ponha em causa o direito à informação do contribuinte sobre os seus direitos e garantias processuais, mas sim o resultado da convicção da AT de que as regras do processo tributário são aplicáveis à recuperação do auxílio mas apenas na medida em que, na sua interpretação, não ponham em causa o principio da efetividade da decisão de recuperação do auxilio, revelando assim todo um esforço hermenêutico que necessita ser escrutinado.

L. Ao contrário do que entende o Tribunal a quo, no requerimento de arguição de nulidades da citação apenas podem ser invocados os vícios formais da citação, decorrentes da falta dos requisitos prescritos pela lei, mas não o mérito das decisões administrativas que lhe subjazem, sendo essa a razão que conduziu a Recorrente a apresentar a reclamação judicial em apreço.

M. No presente caso, dúvidas não subsistem que não está apenas em causa a violação das formalidades da citação, mas antes a execução de uma decisão da AT tomada em função da natureza e características da dívida, decisão essa que não pode deixar de ser escrutinada pelo Tribunal.

N. Na verdade, ou a AT considera que está a executar um imposto e tem de o fazer nos termos das normas de processo tributário aplicáveis in totum,

O. ou entende que a dívida em execução não tem a natureza de imposto e aplica as regras que se mostrem apropriadas a esse efeito e que legitimam a sua atuação, identificando-as para que o contribuinte possa exercer, de forma efetiva, os seus direitos.

P. O que a AT não pode fazer é aplicar parcialmente um regime processual, que foi concebido como um conjunto coerente de direitos e deveres, com base em critérios que não se conhecem e sem indicação de qualquer base legal.

Q. Deste modo, a Recorrente não pode concordar com tal decisão administrativa, pois – tal como mais bem explicitado na reclamação judicial deduzida –, a mesma padece de (i) vício de falta de fundamentação, não sendo inteligível qual a motivação e base legal para considerar derrogadas as disposições legais constantes dos artigos 163.º, 169.º, 189.º, 190.º, 196.º, 200.º do CPPT e artigo 52.º da LGT, e, ainda, de (ii) ilegalidade por violação de lei, em concreto, dos mencionados artigos.

R. Ora, esta decisão de desaplicação de parte da legislação processual tributária não se confunde com a citação, sendo antes a citação, nos termos em que foi efetuada, o mero ato informativo que atesta a existência de uma decisão administrativa previamente tomada e não notificada ou fundamentada.

S. Assim sendo, estamos perante uma decisão da AT, proferida no âmbito de um processo de execução fiscal, que é contestável por meio da reclamação judicial prevista no artigo 276.º e seguintes do CPPT.

T. Nos termos do artigo 276.º do CPPT, as decisões proferidas pelo órgão de execução fiscal que, no processo, afetem os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro, são suscetíveis de reclamação para o Tribunal Tributário de primeira instância.

U. No presente caso, sendo o ato sob reclamação a decisão de aplicação das regras de processo tributário à recuperação de auxílios de Estado com recusa do direito a realizar pagamento em prestações da alegada dívida e, bem assim, de apresentar garantia idónea para suspensão do processo, dúvidas não subsistem de que a decisão em causa afeta legítimos direitos e interesses da Recorrente, circunstância que lhe confere legitimidade processual para reclamar da mesma.

V. No caso sub judice, o entendimento do Tribunal a quo de que as questões invocadas pela Recorrente na reclamação judicial aqui em causa não são questões próprias desse meio processual mas sim de um requerimento de arguição de nulidade e que só depois de ser proferida decisão quanto a este requerimento pode ser apresentada reclamação judicial, viola não só o disposto no artigo 276.º do CPPT, como o princípio da economia e da celeridade processual, decorrente do artigo 130.º do CPC e, como também o princípio da tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 268.º, n.º 4 da CRP.

W. Em face de tudo quanto se vem expondo, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a procedência da reclamação.

X. A dispensa do pagamento remanescente deve igualmente ser aplicada à fase de recurso, por se encontrarem verificados os pressupostos previstos no artigo 6.º, n.º 7, do RCP.

1.3. Não houve contra-alegações:

1.4. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo emitiu parecer tendo concluído nos seguintes termos:

“Face ao exposto, o Ministério Público vem arguir a questão prévia da preterição do pressuposto processual objetivo do presente recurso, a “decisão administrativa em matéria fiscal implícita da Exma. Sr.ª Diretora de Finanças do Funchal”, determinando a impossibilidade de conhecimento do respetivo objeto, que é causa de rejeição do mesmo (arts. 652.º, n.º 1, al. b), e 655.º, n.º 1, do CPC, ex vi do art. 2.º, al. e), do CPPT), sendo que a simplicidade da tramitação do presente recurso justificará a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça (art. 6.º, n.º 7, do RCP).”.

1.5. Notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre a questão suscitada pelo Ministério Público, as partes nada disseram.

1.6. Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, submetem-se agora os autos à Conferência para julgamento.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1. Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, são as conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações que determinam o âmbito de intervenção do tribunal de recurso [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte das decisões de mérito proferidas quanto a questões por si suscitadas (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC), desta forma impedindo que voltem a ser reapreciadas por este Tribunal de recurso. Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida pelos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. Tendo presente tudo quanto deixámos exposto, particularmente o teor das conclusões do recurso e o parecer emitido pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, são, no essencial, duas as questões a decidir. A primeira, saber se o recurso jurisdicional que nos vem dirigido deve ser rejeitado por, não possuindo objecto, se mostrar impossível a sua apreciação de mérito. A segunda questão, sendo àquela primeira dada resposta negativa, reconduz-se a aferir se a sentença recorrida deve ser revogada por ter errado de direito no que concerne à identificação que o Meritíssimo Juiz a quo fez quer do objecto do processo quer das causas de pedir invocadas.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

Em 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1. Pelo Serviço de Finanças do Funchal - 1 foi instaurado contra A... UNIPESSOAL, LDA., o processo de execução fiscal n.º ...82, por dívida de IRC do exercício de 2014 – recuperação de auxílios, no valor global de € 338 566,65 (cfr. processo de Execução Fiscal em suporte virtual).

2. Aquele Serviço de Finanças enviou então a citação do processo de execução fiscal à aqui Reclamante (cfr. processo de Execução Fiscal em suporte virtual e documento n.º 1 junto à petição inicial).

3. Recebida a citação pela aqui Reclamante, veio a mesma apresentar a presente reclamação, formulando como pedido o de anulação do ato reclamado, e como causas de pedir que a citação é ilegal por impossibilidade de a Reclamante beneficiar da possibilidade de suspender a dívida em cobrança coerciva através da prestação de garantia idónea, da concessão da dispensa da sua prestação ou da possibilidade de realizar o pagamento em prestações da dívida, padecendo ainda de falta de fundamentação (cfr. teor da petição inicial da Reclamação e processo de Execução Fiscal em suporte virtual).

4. A aqui Reclamante apresentou também um requerimento de arguição de nulidade da citação, requerimento que ainda não se mostra decidido pelo Órgão de Execução Fiscal [cfr. teor da petição inicial da Reclamação e ofício enviado pelo Serviço de Finanças com a referência Ofício (...18) Ofício (...42) de 21/11/2023 16:24:52].

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. Como ficou exarado no ponto 1 deste acórdão, o presente recurso jurisdicional vem dirigido contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal que, após julgar improcedente a excepção de erro na forma de processo suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira na sua contestação, concluiu pela improcedência da pretensão de anulação formulada pela ora Recorrente com dois fundamentos. Por um lado, porque a ilegalidade assacada à citação devia ter sido invocada, previamente, junto do Órgão de Execução Fiscal e só da decisão que por este viesse (ou venha) a ser proferida, sendo desfavorável à Recorrente, deve ser interposta Reclamação Judicial. Por outro lado, porque «não obstante a Reclamante defender que o objecto da presente acção não é a citação por si recebida, na verdade, os vícios por si assacados, reconduzem-se todos eles ao teor da citação» e que a alegação aduzida pela Executada, da «existência de um pretenso acto administrativo prévio à citação (ou como apontou a Reclamante na sua p.i., uma “decisão administrativa prévia, depois corporizada na citação”)», mais não é do que «uma ficção que, diga-se, não encontra o menor respaldo no processo de execução fiscal», motivo por que o que a Reclamante «sindica é o teor da citação, designadamente por a mesma não conter alguns elementos, relativos à suspensão do processo de execução fiscal e pagamento em prestações, e por não explicitar devidamente, no entender da Reclamante, o porquê da ausência desses elementos».

3.2.2. Vejamos, pois, como decidir, sendo que, como deixámos identificado na delimitação do objecto do recurso, a questão suscitada pelo Excelentíssimo Procurador - Geral Adjunto se assume como prévia, quer porque se prende com a própria admissibilidade do recurso quer porque, a ser julgado que merece resposta afirmativa, determinará que o mérito do recurso (alegadamente inexistente) não será apreciado.

3.2.3. Da rejeição do recurso jurisdicional por carência de objecto

Se bem interpretamos o parecer emitido pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, este recurso não tem objecto e, consequentemente, é impossível apreciar o seu mérito.

Para assim concluir, o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto, após seleccionar um conjunto de conclusões do recurso jurisdicional, que transcreveu, aduziu o seguinte raciocínio:

«(Impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso)

a) Objeto do recurso

3. Nos termos da lei, cabe ao autor, e ao recorrente, nos termos do princípio dispositivo, delimitar o objeto da ação e do recurso, subjetiva e objetivamente (arts. 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, 635.º, 639.º e 640.º, CPC).

4. No caso vertente o objeto (imediato) da reclamação judicial e (mediato) do presente recurso, tal como fixado pela ora Rcte. nas conclusões da douta alegação, em síntese, está assim formulado:

«G. O objeto da reclamação judicial em causa é a decisão administrativa em matéria fiscal – de aplicação apenas parcial das regras de processo tributário a um procedimento de recuperação de auxílios, em razão da alegada natureza da dívida exequenda – decisão que se encontra exteriorizada na citação para o referido processo de execução fiscal.

H. Com efeito, do conteúdo da citação é possível inferir que o órgão de execução fiscal tomou a decisão deliberada de aplicar o processo de execução fiscal à recuperação de auxílios de Estado (de resto, sem habilitação legal) de modo fragmentado, desaplicando, em concreto, as regras que preveem a possibilidade de pagamento da dívida em prestações e suspensão do processo mediante a constituição de garantia idónea ou a sua dispensa, alegando, sem concretizar, a natureza e as características da dívida.». (itálicos nossos).

Porém, uma vez que esta identificação da aludida decisão administrativa em matéria fiscal (ato administrativo em matéria tributária) não é precisa, há ainda que apelar à motivação da douta alegação para cabalmente a individualizar.

Assim, da aludida motivação do recurso, ficamos a saber que «o objeto da reclamação judicial em causa é a decisão administrativa em matéria fiscal implícita da Exma. Sr.ª Diretora de Finanças do Funchal, de não aplicação in totum das regras de natureza processual tributária aplicáveis no âmbito do processo de execução fiscal, em razão da natureza da dívida em causa no processo de execução fiscal acima identificado», decisão essas «que se encontra exteriorizada na citação para o referido processo de execução fiscal, mas que com ela não se confunde» (arts. 18.º e 19.º; cfr. ainda o requerimento de interposição de recurso, e arts. 25.º, 26.º, 41.º a 45.º).

5. No fim de contas, e em suma, a ora Rcte. fixa como objeto da sua pretensão impugnatória (seja na ação, diretamente, seja no recurso, indiretamente), uma putativa “decisão administrativa em matéria fiscal implícita da Exma. Sr.ª Diretora de Finanças do Funchal, de não aplicação in totum das regras de natureza processual tributária aplicáveis no âmbito do processo de execução fiscal, em razão da natureza da dívida em causa no processo de execução fiscal acima identificado”.

Em conformidade, no presente recurso jurisdicional, o que a ora Rcte. pretende é que, por força da revogação da douta sentença a quo, o tribunal julgue a impugnação dirigida contra tal putativa “decisão administrativa em matéria fiscal implícita da Exma. Sr.ª Diretora de Finanças do Funchal”.

Ou seja, com esta singular ideação, da pretensa “decisão implícita”, não pretende a Rcte. «(…) a sindicância do ato de citação enquanto ato eminentemente informativa», mas, antes, «do ato administrativo prévio que determinou a elaboração dos atos de citação nos termos em que o foram» (art. 29.º).

Mas especificamente, afirma que «Posto isto, resulta evidente que a Recorrente não pretende discutir, mediante a presente reclamação judicial, a violação das formalidades do ato de citação ou o seu teor enquanto ato comunicativo» mas antes a (i)legalidade da decisão do órgão de execução fiscal, de que a Recorrida 14 tomou conhecimento através da citação, traduzida na opção de desaplicação de determinadas garantias processuais previstas no processo de execução fiscal, em razão, segundo o alegado, da natureza da dívida, sem qualquer justificação legal para o efeito. 55.º O que ficou claramente por analisar e decidir, uma vez que o Tribunal a quo entendeu que as questões invocadas pela Recorrente não se enquadram no pedido próprio do meio processual elegido pela Recorrente» (arts. 53.º a 55.º).

6. Como sequitur, lógica e prática, daquelas premissas postas pela ora Rcte., e antes recenseadas, resulta que deverá estar provado nos autos esse putativo “ato administrativo prévio que determinou a elaboração dos atos de citação nos termos em que o foram”, justamente como condição sine qua non para a eventual procedência do recurso.

7. Porém, na decisão de facto da douta sentença recorrida, não consta a existência e, mais ainda, o preciso conteúdo de tal putativo facto jurídico, nos termos aduzidos pela ora Rcte. (a dita “decisão administrativa implícita”, que aliás, sintomaticamente, dá como prévia e não como contextual à execução fiscal) — nem como provado, nem como não provado (SITAF, pp. 127 e 128, n.º IV-A).

Mas adiante, todavia, já no discurso da motivação de Direito, consta «(…) não obstante a Reclamante alegar a existência de um pretenso ato administrativo prévio à citação (ou como apontou a Reclamante na sua p.i., uma “decisão administrativa prévia, depois corporizada na citação”), uma ficção que, diga-se, não encontra o menor respaldo no processo de execução fiscal (…)», dictum que interpretamos como uma decisão de facto não provado, embora extramuros (SITAF, p. 131).

c) Idem: impossibilidade de conhecimento

8. Ora, como vimos, o presente recurso vem interposto da douta sentença do TAF do Funchal, de 11 de novembro de 2023, para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, por virtude de “respeitar exclusivamente a matéria de direito”

Ou seja, por outras palavras, a Rcte. não impugna a decisão de facto da douta sentença a quo, especificamente quanto ao juízo de não provado que a pretensa “decisão administrativa implícita”, que é impreterível objeto da pretensão impugnatória em causa, ali mereceu, nos termos antes referidos. Nem é observado, correspondentemente, o ónus processual, a cargo da recorrente, de impugnação especificada desse ponto de facto (art. 640.º, n.º 1, als. a) a c), CPC, ex vi art. 2.º, al. e), CPPT).

9. Por conseguinte, o presente meio processual, por definição, é objetivamente inidóneo para satisfazer a concreta pretensão impugnatória deduzida em juízo pela Rcte.: que por força da revogação da douta sentença a quo, o tribunal julgue a impugnação dirigida contra tal putativa “decisão administrativa em matéria fiscal implícita da Exma. Sr.ª Diretora de Finanças do Funchal”, justamente em virtude de a mesma não estar provada nos autos.

10. Assim, por insuprível carência do seu objeto necessário, i.e., a pretensa “decisão administrativa em matéria fiscal implícita da Exma. Sr.ª Diretora de Finanças do Funchal”, há impossibilidade de conhecer o objeto do presente recurso.

Por outras palavras, e em conclusão, no caso há preterição do pressuposto processual objetivo do presente recurso, a “decisão administrativa em matéria fiscal implícita da Exma. Sr.ª Diretora de Finanças do Funchal”, que é causa da respetiva rejeição».

Não conseguimos, salvo o devido respeito, acompanhar o raciocínio vertido no parecer que cuidamos de apreciar.

Na verdade, pese embora a necessária relação que tem que existir entre o objecto da Reclamação Judicial e objecto do Recurso Jurisdicional, essa relação, para efeitos de admissão do recurso jurisdicional (neste conspecto) esgota-se no exigível ataque aos fundamentos do julgado e, não, a uma pressuposta identificação entre aqueles dois objectos. Ou seja, o objecto do Recurso Jurisdicional é ditado pelo julgamento realizado sobre o objecto da Reclamação, pelo que, se em recurso se elege como seu fundamento ou objecto os alegados erros de julgamento da sentença que decidiu o objecto da Reclamação não há razões para se concluir que o Recurso Jurisdicional não tem objecto ou que é impossível apreciar o seu mérito.

No caso concreto, como flui de forma clara das conclusões formuladas, o objecto do recurso, tal como definido pela Recorrente no exercício do direito que lhe é reconhecido pelo artigo 635.º do CPC, é constituído pelos dois erros de direito imputados ao julgamento e que, como também já dissemos, se prendem com os alegados erros de identificação do objecto do processo e das causas de pedir invocadas na petição inicial (atente-se, particularmente na conclusão C. das alegações do recurso, posteriormente desenvolvida nas alíneas subsequentes), não havendo da parte do Recorrente qualquer pretensão de impugnação da factualidade apurada ou “ implicitamente” não apurada e, consequentemente, não há igualmente que considerar se essa “ implícita não impugnação” foi ou não eficaz.

Donde, tendo o recurso jurisdicional por objecto os dois referidos erros de julgamento imputados ao julgado e sendo a sua apreciação passível e devida, há que concluir, como fazemos, pela não verificação da questão prévia suscitada pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto.

3.2.4. Do erro de julgamento quanto ao objecto da Reclamação Judicial e quanto às causas de pedir

Segundo a Recorrente o acto cuja sindicância judicial pediu na presente Reclamação não é a citação, mas o «acto administrativo prévio que determinou a elaboração dos actos de citação nos termos em que o foram».

Por outro lado, «os vícios formais da citação mais não são do que a decorrência da execução da decisão administrativa que lhes serve de base: a não concessão de possibilidade de suspensão da execução não decorre de um lapso ou incorrecção da citação, que, pela sua incompletude ponha em causa o direito à informação do contribuinte sobre os seus direitos e garantias processuais, mas sim o resultado da convicção da AT de que as regras do processo tributário são aplicáveis à recuperação do auxílio mas apenas na medida em que, na sua interpretação, não ponham em causa o principio da efectividade da decisão de recuperação do auxilio, revelando assim todo um esforço hermenêutico que necessita ser escrutinado».

Cumpre, assim, apreciar em sede de recurso se a sentença recorrida fez correcto julgamento quando considerou que o acto reclamado não pode ser senão a citação – uma vez que este acto não foi antecedido por qualquer decisão administrativa susceptível de poder ser erigida em objecto da reclamação judicial – e que os vícios de que enferme este acto não podem ser invocados directamente perante o tribunal, antes devendo ser arguidos perante o órgão da execução fiscal e só na eventualidade de este indeferir a arguição do executado, poderá este então reclamar judicialmente dessa decisão.

Considerando que neste Supremo Tribunal Administrativo esta questão foi já objecto de julgamento em processos em que a temática, as partes, a factualidade apurada, o teor da sentença recorrida e as alegações de recurso jurisdicional são absolutamente idênticas (salvo no que respeita ao ano e valor do tributo cujo pagamento se discute), é por acolhimento do julgamento proferido no processo n.º 309/23.5BEFUN (integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt), primeiro que foi realizado, que proferiremos a nossa decisão. Quer por concordarmos com o que aí ficou decidido quer porque esse julgamento sempre se imporia, por força do preceituado no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil.

Passamos a citar:

«A Recorrente discorda do entendimento adoptado na sentença, de que não pode considerar-se que o acto reclamado seja outro que não a citação. Como deixámos dito, continua a sustentar que «[o] objecto da reclamação judicial em causa é a decisão administrativa em matéria fiscal – de aplicação apenas parcial das regras de processo tributário a um procedimento de recuperação de auxílios, em razão da alegada natureza da dívida exequenda – decisão que se encontra exteriorizada na citação para o referido processo de execução fiscal».

Na verdade, na petição inicial a Executada identificou o acto reclamado como «a decisão proferida pela Ex.ma Sr.ª Directora de Finanças do Funchal de não aplicação in totum das regras de natureza processual tributária aplicáveis no âmbito do processo de execução fiscal, em razão da natureza da dívida em causa no processo de execução»

Mas, como bem salientou o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, essa decisão administrativa não existe – ou, pelo menos, não há motivo para a autonomizar do acto de citação –, sendo que a alegação da ora Recorrente «não encontra o menor respaldo no processo de execução fiscal», na medida em que não foi proferida pelo órgão da execução fiscal decisão autónoma alguma, designadamente quanto à «aplicação apenas parcial das regras de processo tributário a um procedimento de recuperação de auxílios, em razão da alegada natureza da dívida exequenda». Poder-se-á, eventualmente, considerar que essa inexistência deveria ter sido registada na sentença em sede de julgamento da matéria de facto e não na fundamentação de direito; mas essa imprecisão técnica, a existir, não contende com o julgamento que foi efectivamente feito relativamente à existência dessa decisão: o Juiz considerou expressamente que a mesma não existe.

Tanto basta para que se considere que a sentença não enferma de erro de julgamento e que o recurso não pode proceder, uma vez que toda a sua motivação assenta no entendimento de que o acto reclamado é uma putativa decisão administrativa.

Mas a sentença não se ficou por considerar inexistente o acto reclamado tal como o configurou a Reclamante; considerou que esse acto não poderia ser senão a citação e, aferindo da possibilidade de as causas de pedir invocadas poderem conduzir à procedência do pedido de anulação da citação, concluiu pela negativa.

Também esse julgamento não nos merece censura.

Lidas as alegações constantes da petição inicial, concluímos, com a sentença, que o acto que a Executada considera enfermar de algumas ilegalidades – designadamente, as referências, insuficientemente fundamentadas, à impossibilidade de prestação de garantia em ordem à suspensão da execução fiscal por dedução de oposição à execução fiscal e à impossibilidade de pagamento em prestações – não pode ser senão o acto de citação.

Ora, como também bem referiu a sentença, com referência à jurisprudência pertinente ( ), «da arguição de invalidades, cabe em primeira linha decisão do próprio Órgão de Execução, mediante requerimento para o efeito do Executado (no caso de invalidades da citação, a apresentar no prazo de oposição – 30 dias –, nos termos do n.º 2 do art. 191.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi al. e) do art. 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário), e, não concordando com a decisão o seu destinatário, poderá então recorrer dessa decisão para o Juiz da execução, nos termos consignados nos arts. 276.º e ss. do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o que constituirá, como já se apontou, um processo judicial de matriz urgente, incidental da execução fiscal».

Aliás, é de realçar que a ora Recorrente apresentou junto do órgão da execução fiscal o pertinente requerimento de arguição das referidas invalidades da citação.».

Por tudo isto, o recurso não pode proceder, como, a final se decidirá.

3.3. Do pedido de dispensa do remanescente: uma vez que a tramitação processual dos autos nesta instância de recurso se revestiu de manifesta simplicidade (limitado à apresentação dos articulados regra, nesta se devendo incluir a pronúncia emitida na sequência da questão prévia suscitada pelo Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto e o julgamento foi parcialmente realizado por acolhimento de anterior acórdão quanto ao mérito da pretensão) e que não há registo nos autos de que possa extrair-se qualquer juízo de censura à conduta processual às partes, entende-se estarem verificados os pressupostos de dispensa de pagamento do remanescente de taxa de justiça, consagrados no artigo 6.º, n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais.

4. DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, negar provimento ao recurso jurisdicional.

Custas pela Recorrente, ficando ambas as partes dispensadas do pagamento do remanescente da taxa de justiça (na parte relativa ao valor superior a € 275.000,00).

Registe e notifique.

Lisboa, 10 de Abril de 2024. - Anabela Ferreira Alves e Russo (relatora) – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz – João Sérgio Feio Antunes Ribeiro.