Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0922/11
Data do Acordão:05/29/2014
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:SÃO PEDRO
Descritores:HOSPITAL PÚBLICO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
CULPA IN VIGILANDO
DEVER DE VIGILÂNCIA
ILICITUDE
DOENTE INTERNADO
SUICÍDIO
Sumário:Não é ilícita a conduta do Hospital réu, permitindo que um doente do foro psiquiátrico, ali internado, deambulasse livremente no seu perímetro circundante e que veio a suicidar-se, se não ocorreram factos que tornassem previsível tal conduta.
Nº Convencional:JSTA00068751
Nº do Documento:SA1201405290922
Data de Entrada:10/17/2011
Recorrente:A.....
Recorrido 1:HOSPITAL M......
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF COIMBRA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Área Temática 2:DIR PROC CIV.
Legislação Nacional:CPC96 ART668 N1 C ART712 N1.
CCIV66 ART486 ART487 N1 N2.
L 36/98 DE 1998/07/24 ART5.
DL 48051 DE 1967/11/21 ART4.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0966/08 DE 2009/01/29.; AC STA PROC0921/06 DE 2006/06/12.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal Administrativo
1. Relatório

A……. inconformada com a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que julgou improcedente a acção ordinária de responsabilidade civil extracontratual, por si intentada contra o HOSPITAL M……., em que pedia a condenação do ora Réu no pagamento de uma indemnização "no montante global de 100.403,00 Euros", recorre para este STA.

Termina as suas alegações concluindo:

A 1) A Sentença recorrida errou no julgamento da matéria de facto e incorreu em violação das normas legais estatuídas nos arts. 511.º, n.º 1, 659.º, n.ºs 2 e 3 e 514º do Código de Processo Civil ao não seleccionar para a matéria de facto e não julgar provados os seguintes factos:

a) Em 23/11/2007, um paciente do hospital internado no Hospital M…… para desintoxicação de estupefacientes furtou uma viatura do próprio Hospital e evadiu-se do mesmo, tendo posteriormente embatido, ao volante desta viatura, noutros veículos sitos noutra zona da cidade de …… - cfr. fls. 501 dos autos;

b) Em 25 de Fevereiro de 2008, um paciente de 66 anos, internado no Hospital M……. há 15 dias, fugira, sendo o seu paradeiro, em 28 do mesmo mês, desconhecido - cfr. autos a fls. 502; Em 6 de Março de 2008 este paciente internado, vestido com o pijama do Hospital, ainda se encontrava desaparecido - cfr. fls. 403; No dia 9 de Março de 2008 é encontrado o sobredito paciente ... morto e ... nas imediações deste Hospital - cfr. fls. 504;

c) Em Junho de 2008, um paciente internado no Hospital M…….. natural de Maiorca foi encontrado próximo do local onde foi encontrado o corpo do paciente a que se aludiu em c) - cfr. fls. 505;

d) Em 18 de Julho de 2008, um paciente compulsivamente internado no Hospital M……. por ter matado o filho, fugiu do mesmo, encontrando-se evadido há cerca de um mês - cfr. autos a fls. 506; Este paciente foi encontrado a deambular pela cidade;

e) Em 31 de Julho de 2008, um paciente de 40 anos internado no Hospital M……, evadido há um mês, foi encontrado já cadáver nas margens do rio Mondego - cfr. fls. 505;

f) Em 11 de Outubro de 2008, o doente mental internado no Hospital e em fuga aludido em d) feriu militar da GNR e suicidou-se;

g) Em 30 de Outubro de 2008, um homem evadido do M……. foi atropelado por um veículo (para o qual se havia lançado segundo populares) ;

h) Em 16 de Março de 2010, um paciente do hospital de 50 anos fugiu e morreu, tendo o corpo sido retirado do rio de Ceira pelos Bombeiros Sapadores de Coimbra (cfr. autos a fls. 835);

i) Nesse mesmo dia desapareceu do Hospital um jovem de 18 anos, natural de Penela (cfr. autos a fls. 835) - de acordo com esta notícia, "está é já a terceira fuga de um paciente do M…….. em menos de duas semanas".

j) Em inícios deste mês de Março de 2010 um outro paciente do Hospital M…….. furtara um veículo de um dos funcionários, tendo-se evadido cfr. fls. 837.

A2) Na verdade, tais factos são efectivamente importantes e relevantes para se aferir do funcionamento e organização do Hospital de acordo com padrões médios expectáveis de um serviço público, na medida em que a sua repetição indicia claramente as condições de existência e funcionamento do hospital em causa, no que toca ao cumprimento do dever de custódia e no que toca ao dever de vigilância sobre indivíduos com ideações auto ou hetero-agressivas, e como tal deviam ter sido considerados e seleccionados, nos termos dos arts. 511º, n.º 1 e 659º, n.ºs 2 e 3 do CPC.

A3) Aliás, tendo adquirido foros de notoriedade e publicidade na comunicação social, inclusivamente em notícias de jornais e reportagem televisiva, trata-se de factos públicos e notórios, que, como tal, nem careceriam de alegação ou prova, nos termos do disposto no art. 514º do Código de Processo Civil.

A4) Mas a sua prova resulta ainda ex abundante dos referidos documentos juntos aos autos a fls. 501 a 837 e do referido CD constante dos autos, sendo assim que deviam ter sido considerados como provados e assentes como deve agora decidir-se em remédio dos apontados vícios da sentença recorrida, através da alteração da matéria de facto pelo aditamento dos supra referidos factos, ao abrigo e nos termos do disposto no art. 712º, n.ºs 1, a) e b) e 2 do Código de Processo Civil.

B1) Também o facto 1) da Base Instrutória, e a resposta restritiva que o mesmo obteve e que ficou a constar como facto provado 9) na Sentença, foi incorrectamente julgado:

B2) Factualidade esta importante e relevante para o que se discute, designadamente: a) a circunstância de um desacerto no diagnóstico implicar que as medidas de combate à doença e aos riscos de auto e hetero lesões possam não ser as mais adequadas, como se veio, aliás, a verificar, porque o B…… logrou afastar-se do perímetro hospitalar e do pavilhão e suicidar-se; b) a necessidade de vigilância acrescida a que o B…….. deveria ter estado sujeito, de acordo com os padrões mínimos ou médios de organização e funcionamento da instituição hospitalar especializada Ré, o que não sucedeu. Ora,

B3) O relatório da perícia, os esclarecimentos prestados em audiência pelo Sr. perito, gravados na cassete 1, Lado B, 2200 rotações a Cassete 2, Lado A, 925 rotações e ainda o depoimento da testemunha Dr. C……, prestado em audiência e gravado na cassete 1, Lado A, voltas 0004 a Cassete 2, lado A, voltas 1438, que o Meritíssimo Tribunal a quo desconsiderou por completo, impunham uma resposta ao facto 1) da Base Instrutória, facto 9 dos factos provados da sentença, no sentido de «O filho da A. sofria de perturbações de Psicose Esquizofrénica, doença afectiva, síndrome depressiva Depressão Major. Alcoolismo Crónico e perturbação bordeline da personalidade que lhe provocavam comportamentos depressivos com uma forte tendência previsível para o suicídio que aliás tentou por diversas vezes». Por conseguinte,

B4) Assim deve agora decidir-se em alteração da matéria de facto - art. 712.º, n.ºs 1, a) e b) e 2 do CPC - e remédio da Sentença recorrida, que decidindo como decidiu, também aqui incorreu em erro de julgamento da matéria de facto.

C1) Em erro de julgamento da matéria de facto e violação das normas legais dos arts. 511.º, n.º 1 e 659º, n.ºs 2 e 3, do CPC, incorreu igualmente a sentença recorrida ao:

a) não julgar provado, como devia, que «Nunca nem após a entrada do B……. no Hospital de M……. em 26/04/2000, lhe foi prescrita ou adoptada pelos Serviços do R. qualquer medida especial de vigilância»;

b) julgar como provado o facto 30 da sentença (no que vai além de "O B……. permaneceu durante todo o dia 26.04.2000 internado no R. ");

C2) O que releva para a culpa do hospital por omissão de acto que seria, em prudência e normalidade, devido, num doente com um patologia, definida ou mesmo indefinida, mas indiscutivelmente muito grave - recorde-se que o médico psiquiátrica C…….. disse a este respeito, quando confrontado com o facto de nada ter sido feito na sequência deste episódio, o seguinte: "como há pouco tive oportunidade de responder, eu diria exactamente isso, se hoje estivéssemos a discutir relativamente à questão do desfecho que teve, e que o Hospital neste regresso ao internamento tivesse actuado dessa forma, eu diria que o hospital actuou mal e actuou contra as medidas daquilo que o caso justificava" - cassete 1, Lado A, de 0004 a Cassete 2, lado A, de 1438 rotações; recordando-se ainda e ademais que, como é do domínio científico e até corrente, o álcool aumenta e agrava o risco de suicídio (cfr. parecer científico junto como doc. n.º 1 às alegações de primeira instância; cfr. esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito em Tribunal, secundado que foi pelas declarações prestadas pela testemunha Dr. D……..). Ora,

C3) A consideração daquele primeiro facto como provado e daquele último como não provado decorre:

- do depoimento do médico D………, prestado em audiência e gravado na cassete 2, lado A, voltas 1439, a Lado B, voltas 2323;

- do depoimento da médica E…….. prestado em audiência e gravado na cassete 2, Lado B, voltas 2323 a voltas 0027;

- do depoimento do Enfermeiro F…….. e da Enfermeira G……. prestados em audiência e gravados, respectivamente, em cassete 4, lado A, voltas 1696, a cassete 5, lado A, voltas 0618, e cassete 1, lado A, voltas 0005, a Lado B, voltas 1595;

- do depoimento do Enfermeiro F……., que depôs nada saber a este respeito - depoimento prestado em audiência e gravado na cassete 4, lado A, voltas 1696, a cassete 5, lado A, voltas 018;

- do documento - único que se reporta a este dia - constante de fls. 27 do processo clínico, onde apenas se refere ao turno das 8 às 16h, inexistindo qualquer registo das 16h às 8 da manhã do dia seguinte, tudo apontando claramente para que o B…….. não estivesse medicado nem tivesse sido acompanhado pelos técnicos de saúde;

- do facto de o documento relativo à medicação ter sido impugnado pelo A., uma vez que o mesmo não espelha a realidade: na verdade, se bem se atentar no mesmo, verificar-se-á que o dia 25 se encontra assinado, quando é certo e sabido que o B…….. nem sequer estava no Hospital, mas sim em casa de sua Mãe autorizado pela médica (este foi o dia em que o B……. teve o que se qualificou como episódio de irresponsabilidade);

- do facto de o B……. ter alegadamente tomado as refeições e ter nesse dia recebido a visita (visita entre aspas, pois a irmã apareceu, de acordo com o regulamento guia do utente do R., fora do horário das visitas) da sua irmã (que declarou achá-lo triste, olhar vazio, perdido e calado, cfr, cassete 3, lado B de 1174 rotações a cassete 4, lado A de 0900 rotações) não significa nada e assim que ele tivesse apresentado rápidas melhoras: não só se está perante uma mera conclusão retirada pelo R, desprovida de qualquer facto que a corporize e muito menos de qualquer prova, como o problema do B……. não era físico, mas sim psicológico - aliás, o que se sabe a este respeito é que o B…….conservava o seu apetite (cfr. a título meramente exemplificativo, doc, constante de fls. 28), sendo que, de resto, lido o doc, de fls, 27, o que se verifica é que o B……. "permaneceu, durante o turno, no leito, levantando-se só para fazer as refeições". Assim,

C4. Aquele facto devia ter sido seleccionado para a matéria de facto da sentença, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts, 511º, n.º 1 e 659º, n.ºs 2 e 3 do CPC, e dado como provado e aquele último dado como não provado, por força e como impõem os referidos meios de prova, que é o que deve decidir-se em remédio da sentença recorrida e em obediência ao disposto nos arts. 511º, n.º 1, 659º, n.ºs 2 e 3 e 712,º, n.ºs 1, a) e b) e 2, do CPC, alterando-se a matéria de facto da sentença recorrida, aditando-se-lhe o facto «Nunca nem após a entrada do B……. no Hospital de M…… em 26/04/2000, lhe foi prescrita ou adoptada pelos Serviços do R. qualquer medida especial de vigilância» e suprimindo-se o facto 30 (no que vai além de "O B…….. permaneceu durante todo o dia 26.04.2000 internado no R") dos factos provados na Sentença.

D1) Em erro de julgamento da matéria de facto incorreu ainda o Meritíssimo Tribunal a quo ao julgar provados os factos 25 e 26 da Base Instrutória, correspondentes aos factos 26 e 27 da Sentença, pois, contrariamente ao decidido, não foi feita prova bastante ou sequer prova alguma de que o R. Hospital dispusesse de um procedimento de controlo de presença de doentes e, bem assim, de um procedimento de emergência no caso de ausência de doentes. Na verdade,

D2) Assim resulta - decorrendo aliás o contrário de tais factos - dos seguintes meios de prova:

- do depoimento da Enf.ª G…….., que disse que verifica se os pacientes "estão presentes", porque, apesar de não os contar, os conhece a todos porque os cumprimentava

- depoimento prestado em audiência e gravado, respectivamente, em cassete 1, lado A, voltas 0005 a Lado B, voltas 1595;

- do depoimento do Enf.º F……., que deu conta de um procedimento de consistente em esperar que toda a gente estivesse sentada para contar os doentes, pois cada um tinha o seu sítio próprio de sentar, que eles próprios escolhiam, consoante gostassem mais da companhia, sabendo-se logo quem faltava naquele momento", mas quando instado, não soube responder se o B….. tinha amigos entre os doentes, alguém do pavilhão por quem ele demonstrasse alguma preferência em especial; qual era o seu lugar preferido (que diz que o B…….. tinha) para se sentar às refeições, ou se falava com os companheiros da sua mesa ou que tipo de actividades gostava o B……… de fazer. A razão pela qual este método infalível que lhe permitia ver instantaneamente que não faltava ninguém reside no facto de contar os doentes (que são mais ou menos 28) religiosamente e todos os dias depoimento prestado em audiência e gravado em cassete 4, lado A, voltas 1696 a cassete 5, lado A, voltas 0618;

- não sendo ainda e ademais a hora da medicação outro mecanismo de controle - que nas palavras da médica E…….. é o principal -, porque há doentes que não tomam os medicamentos à hora das refeições. Aliás, o B……., como atesta o depoimento de G…….. e o documento de fls. 428 dos autos, não só não tomava medicação à hora das refeições (facto que o enfermeiro F……., como afirma, desconhece), como, pelo menos nesse dia, das 16h às 24h, não tinha que tomar medicação ...

- no que toca ao alegado "procedimento de emergência" o que se provou foi que quando se detecta a ausência de um doente um enfermeiro procura pelo paradeiro do mesmo nalguns sítios do Hospital, e, gorada a mesma, se informa tal ausência ao enfermeiro coordenador; coisa que, como é bom de ver, não pode ser qualificada como um procedimento de emergência, visto que este tem que ser uma sucessão concatenada de actos e actuações eficientes e diligentes aptas a fazerem retornar os pacientes ao Hospital sem que comprometam valores próprios ou de terceiros; de nada adiantando o R. dizer, o que se refere em jeito de antecipação, que tem um protocolo ou normas de actuação para situações de fuga (que de acordo com a médica H…….. até estariam afixadas no quadro existente no pavilhão 8, quando da inspecção judicial nada disso resulta), uma vez que as mesmas pura e simplesmente se desconhecem e todas e cada uma das testemunhas foi incapaz de descrever esse protocolo ou esse conjunto de normas;

- nem os funcionários do hospital sabem em que consiste o que o R. alega ser um "procedimento de emergência" - o enf. F……., por exemplo, assevera não saber nem ser da sua competência o que faz o enf. Coordenador em casos de desaparecimento de doentes, sendo que a si apenas lhe compete "dar uma volta" e comunicar, frustrada a finalidade da mesma, ao enf. Coordenador - depoimento prestado em audiência e gravado na cassete 4, lado A, voltas 1696 a cassete 5, lado A, voltas 0618;

- o R. não tem sequer atendimento de emergência - quando um doente tem uma crise, por exemplo, liga-se ao médico de serviço (que, de acordo com as declarações de E…….. e do Enf. coordenador I…… está, a partir das 17h, em regime de chamada em casa) que decidirá se o doente vai para o serviço de urgência de outro hospital (o CHC) ou não (e que, caso se desloque ao SC, o poderá fazer, sem trânsito, em 10 ou 15 minutos ... - como decorre do depoimento do Enf. coordenador I…….., corroboradas pela Enf. G……., prestado em audiência e gravado na cassete 2, lado B, voltas 2323 a cassete 3, lado A, voltas 0027; cfr. ainda (enfermeira), cassete 1, Lado A, voltas 0005 a lado B, voltas 1595. Assim,

D3) A falta de prova bastante e a prova do contrário constante dos referidos meios de prova impunham que os factos 25 e 26 da Base Instrutória correspondentes aos factos 26 e 27 da Sentença tivessem sido julgados não provados, como deve agora decidir-se (art. 712.º, n.ºs 1, a) e 2, do CPC) em remédio da Sentença através da alteração da matéria de facto da Sentença recorrida, dela se suprimindo esses mesmos factos.

E) Em resultado de busca que levamos a efeito não conseguimos detectar um só caso em que um Hospital Psiquiátrico Português tivesse sido jurisdicionalmente condenado em virtude de um paciente aí internado ter cometido suicídio fora das instalações hospitalares de que logrou ausentar-se, ao contrário do que, como pudemos elencar, com mais de uma dezena de exemplos comparados, sucede não só nos países do primeiro mundo, Estados Unidos, Alemanha e França, mas também, num País dito emergente, como é o Brasil, em que este tipo de condenações também são comuns e frequentes.

F) No caso do Hospital M…….. relatámos mais de uma dezena de situações gravíssimas de auto e hetero-agressões, sendo que, inclusivamente, quando decorria a audiência de discussão e julgamento, se suicidou, fora das instalações deste hospital e depois de saída não autorizada, outro paciente internado.

G) A sentença, levada pela argumentação do Hospital, veio, erroneamente, porque o A. nunca alegou isso, desfocar a discussão sobre a vigilância e custódia de internados com patologias suicidas em Hospitais Públicos Psiquiátricos, sustendo que, actualmente, esses Hospitais não devem ter fossos, que não é possível ter uma visão carcerária e novecentista do tratamento psiquiátrico, criticando ainda uma hipervigilância a que o A. também nunca se referiu.

H) O que não pode suceder, isso sim como se dirá já de seguida, é que qualquer pessoa, suicidas internados incluídos, possam sair e entrar livremente do perímetro hospitalar sem qualquer controlo, mormente por falta de liminar controlo, vedação do perímetro e contenção (física ou química suficiente) daqueles doentes nas construções em que são tratados.

I) Pois bem, em primeiro temos que a sentença, em evidente erro de julgamento, não «estabelece o padrão médio expectável», que, não obstante, diz no caso verificado, no que se refere às medidas de contenção desses doentes com ideações suicidárias do perímetro do hospital e nos locais onde são tratados, nada, mas nada mesmo se dizendo a este respeito de relevante, a não ser defender uma concepção curativa inter-relacional do doente com a comunidade que ninguém em abstracto nega e que depende, isso sim, em concreto, do diagnóstico (correcto, que nem sequer isso houve como se diz inclusivamente na sentença) que se faça dos doentes.

J) Pior do que isto, sucede que, situação dos muros e vedação, o perímetro do Hospital Psiquiátrico M……. e mesmo o acesso aos pavilhões onde os doentes são tratados é perfeitamente aberto - no que releva em relação a pessoas com historial suicida, ao contrário do que sucede com instituições idênticas existentes no país, essas sim que são o parâmetro mínimo ou médio, como se provou (e foi ignorado) fazendo-se alusão aos estabelecimentos congéneres Portugueses.

K) Ou seja, qualquer pessoa, como a Meritíssima Juiz pôde constatar, porque saiu do perímetro sem qualquer controlo, pode não só sair como entrar no perímetro, como poderia ter entrado mesmo nos pavilhões, onde estão os doentes, porque os serviços mantêm a porta que lhes dá acesso aberta - são crianças que vivem nas redondezas que aí jogam futebol, são pessoas má índole que deambulam livremente e que vendem o que não podem no perímetro hospitalar, são pacientes a sair quando muito bem ou mal entendem, para beber uma ou meia dúzia de cervejas nos inúmeros cafés que existem também nas redondezas, tratando-se pois de um recinto de livre acesso e saída - cfr. declarações prestadas por J……. e E…….., cassetes, respectivamente, 3, lado A de1696 a 2357 rotações e cassete 3, lado B de 1174 rotações a cassete 4, lado A de 0900 rotações.

L) A prova, feita assim à saciedade, de que a situação de facto relatada e vivida no Hospital M…….. é ilícita, ao contrário do que em erro de julgamento foi julgado, de acordo até com padrões mínimos de controlo e vigilância, é notória e sabida de todos nós, porque não há cidadão Português que, até num hospital geral, não tenha sido impedido de entrar nas instalações hospitalares ou de entrar em condições previamente definidas.

M) Nem se fale a este respeito na Portaria da entrada principal onde está um segurança, porque o que estamos a falar é da outra entrada ou saída, livre .. que dá ou é a continuação de rua do aglomerado vizinho, com cerca de 10 metros de largura, sendo o Hospital desprovido de quaisquer vedações ou muros - acesso este por onde todos os pacientes e terceiros entram e saem sem qualquer controlo, como sucedeu com a Juiz que pela mesma passou.

N) Em terceiro lugar, no que toca ao controlo efectivo da presença destes doentes mentais feito quanto se dão os tabuleiros com as refeições, coisa profundamente amadora, feito assim de um buraco de onde se servem as refeições por funcionários inqualificados e de onde nem sequer se vê bem a sala, como a juiz pôde em observação no local constatar, o mesmo também não atinge, em abstracto, como em erro de julgamento foi decidido, os parâmetros médios exigíveis, como também não atinge esse desiderato a possibilidade indirecta de verificar a presença dos doentes pela toma dos medicamentos.

M) Em quarto lugar

a) verificou-se que o B…….. deambulou livremente fora do pavilhão e no perímetro do hospital no dia em que se suicidou,

b) verificou-se que, 40 horas antes do falecimento, nenhuma medida de especial ou particular de contenção ou vigilância lhe foi imposta após aquilo que foi qualificado como uma irresponsabilidade (não conseguimos provar que foi uma nova tentativa de suicídio),

c) verificou-se que os serviços (médicos e enfermeiros) não sabiam deste alegado episódio de irresponsabilidade,

d) e, verificou-se que, ainda e finalmente, apesar de todos os anos que o B……. esteve internado no Hospital M…….., só foi possível fazer-se um diagnóstico minimamente preciso numa ... audiência de julgamento e ... com o paciente já falecido (ponderação constante da sentença).

N) Foi toda esta factologia que nos fez concluir que se verifica faute du service - em palavras de hoje uma culpa no plano do funcionamento ou da organização hospitalar ou uma culpa anónima, que permitiu que o B……… se visse abandonando à sua capacidade diminuída e à sua demência que o conduziu ao suicídio, sendo assim que se verificam preenchidos os pressupostos, ao contrário do que em erro de julgamento foi julgado, de que depende a responsabilização civil extracontratual da administração.

O) Sublinhe-se para terminar que uma coisa é um tratamento mental em regime fechado, outra em regime aberto e outra ainda, também distinta, é o tratamento ambulatório, este onde mais se fazem sentir as necessidades curativas decorrente de uma interacção com o mundo, sendo evidente que, quando os doentes com história suicida estão internados e sobretudo quando têm um historial de risco ou suicidário muito recente, mesmo quando estejam em regime aberto, existe sempre, manifestamente, o dever de custódia e de vigilância hospitalar que é facticamente impossível de exercer se qualquer pessoa pode entrar e sair pavilhões e do perímetro do hospital quando quiser e se não existe, nestes casos, uma vigilância minimamente particular a esse doente.

P) Recuperando as decisões jurisdicionais comparadas a que fizemos alusão, temos que nos países do primeiro mundo - e, até, no Brasil, onde as infra-estruturas psiquiátricas não são de forma alguma um modelo, como é do conhecimento público - nunca, mesmo em regime aberto, o dever de custódia ou o dever de vigilância de doentes com ideações suicidas foi descartado, quer em instituições psiquiátricas, quer em hospitais gerais, entendendo-se, sistematicamente, que o tolerado afastamento das instalações desses pacientes gera responsabilidade civil do Hospital ou do nosocómio.

Q) A sentença, colocando a questão no domínio da responsabilidade civil em termos, digamos assim, clássicos, abrindo novas fronteiras no julgamento destas questões em termos de direito comprado, diz que, apesar de tudo quanto se alegou, nada existia proximamente que indiciasse o suicídio e, por isso, não vislumbra facto ilícito nem viu também culpa ou qualquer omissão de conduta devida.

R) Em primeiro concluiremos, como o disse um dos Supremos Tribunais Brasileiros, que, com pessoas deste jaez, pessoas com historial suicida (ademais e no nosso caso próximo no tempo) e doença mental gravíssima, há que contar com o imprevisível.

S) Depois se um indivíduo, com largo historial suicida com patologia delicadíssima, mas inequivocamente gravíssima, faz uma tentativa de suicídio 20 dias antes e tem um alegado episódio de irresponsabilidade que o fez entrar noutro hospital em urgência, 40 horas antes do suicídio, tal faz, inequivocamente, concluir que o hospital tinha de estar, ao contrário do que sucedeu, quiçá durante um tempo razoável, em estado de alerta especial com este indivíduo, só lhe devendo dar alta ou possibilitar-lhe uma total liberdade de interacção com mundo, quando entendesse que o deveria fazer em observação cuidada do mesmo.

T) É tudo isto que um cidadão normal, minimamente instruído, esperaria do Hospital Psiquiátrico e, assim, como tal não sucedeu ou foi provado que tenha sucedido (um estado de alerta especial acompanhado de medidas físicas ou farmacológicas de contenção eficazes), tal é o suficiente para (vendo o ilícito e por vezes misturada com este a culpa) condenar o Hospital, ao contrário do que em erro de julgamento sucedeu - omissão de conduta devida.

U) Com efeito, especificamente quanto à previsibilidade, sucedeu nos 4 ou 5 meses anteriores ao suicídio em 27/4/2000, o seguinte,

a) O B…….. esteve internado um mês no Hospital Psiquiátrico M………;

b) depois, terá tido alta ou possibilidade de fazer a sua vida com maior liberdade e, passados cerca de 3 meses, fez nova tentativa de suicídio em 1/4/2000;

c) tendo estado internado mais 24 dias,

c) Depois ainda, no dia 25/4/2000, quando também ainda estava internado e depois de ter saído do hospital sem controlo ou autorização,

f) encharcou-se em álcool e deu entrada nas urgências dos HU..., qualificando-se esta ocorrência, não como uma nova tentativa de suicídio, mas como um acto de irresponsabilidade

V) Ora, este alegado episódio de irresponsabilidade (sabemos todos que esta qualificação nada vale do ponto de vista médico, sobretudo em pessoa de capacidade diminuída pela doença mental que 20 dias antes a tinha feito tentar o suicídio), evidencia claramente uma conduta de risco compaginável - em juízo de prognose, que qualquer pessoa instruída faria, quanto mais um psiquiatra - com uma instabilidade ou doença mental próxima de terminar em suicídio.

W) ou seja, mesmo que seguíssemos o raciocínio da sentença, que se abstrai de quase tudo, sempre se teria de condenar o Hospital, porquanto, proximamente, 40 horas antes do suicídio e não contando com a tentativa de suicídio ocorrida cerca de 20 dias antes, ocorreu efectivamente um comportamento de risco que faria com que cuidados especiais devessem ter sido adoptados - e já vimos ... enfim.. que aquela informação relativa ao episódio de irresponsabilidade nem sequer foi transmitida aos médicos e aos enfermeiros ...

X) Aliás, o perito do tribunal, cujo depoimento foi desconsiderado na sentença, disse expressamente que o suicídio era previsível, provável ou até muito provável.

Y) Temos pois e assim em conclusão que a sentença comete erro de julgamento ao julgar que o suicídio constituiu um facto" (...) absolutamente inesperado e imprevisível (...)", palavras que entendemos serem até chocantes face até à factual idade provada.

Z) A circunstância de o B……. ter deambulado pretensamente calmo no perímetro no dia do suicídio (coisa dita por pessoal não médico) e de, alegadamente, ter tomado as refeições, não infirma o que se vem de concluir, como até tivemos ocasião de dizer em Tribunal lendo um depoimento de um homem (citado num encontro mundial de psiquiatria) que só depois compreendeu que a acalmia súbita da mulher provinha da decisão que esta tinha já firmemente tomado de por termo à sua vida - os seus conflitos interiores enfim tinham terminado ...

AA) A Sentença recorrida incorreu em violação das normas legais dos arts. 2.º, n.º 1, e 6º do Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, as quais impõem, in casu, a responsabilidade indemnização do R. e assim a sua condenação.

O Recorrido - HOSPITAL M……. - contra-alegou pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta, neste Supremo Tribunal, emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso, devendo revogar-se a sentença sub judice "por violação do disposto nos artºs 2º, nº 1 e 6º , do Dec-Lei nº 48051.". (...) " devendo a condenação incluir a compensação pelo dano morte" (...).

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Fundamentação

2.1 Matéria de Facto

A matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte:

1- O B…….., filho da A, nascido em 29/05/1964, faleceu em 27/04/2000, vitima de atropelamento por uma automotora que circulava entre Lousã e Coimbra;

2- O B…….. sofria de várias perturbações mentais provocadas pela dependência patológica de bebidas alcoólicas e medicamentos;

3- Em virtude do descrito no ponto anterior, o B…….. foi várias vezes internado no Hospital M…….., em …….., sendo que o primeiro internamento completo remonta a 10/01/1993;

4- O Hospital M…….., bem como a médica que seguia o filho da A., tinham perfeito conhecimento do estado clínico daquele, tendo escrito no último registo de observação Historial de debilidade mental e episódios depressivos e tentativas de suicídio";

5- O filho da A. foi internado no Hospital M…….. no dia 01/04/2000, cerca de 15 dias antes da Páscoa, tendo no entanto ido passar essa festa com a sua mãe, apesar da relutância da médica que o acompanhava;

6- Do registo de observação clínica (urgência de 26/04/2000) pode ler-se doente internado no M......, onde é seguido pela Dra. H…….., foi de fim-de-semana e ter-se-á comportado irresponsavelmente pois embriagou-se. Historial de debilidade mental e episódios depressivos e tentativas de suicídio recorrentes, estas não se verificaram contudo no fim-de-semana. Orientado para o H. S. C. onde aliás está internado";

7- A A. teve despesas com o funeral do B……… no valor de 703,80 Euros;

8- A A. aufere de uma reforma no montante de 193,94 Euros;

9- O filho da A., o B…….., sofria de patologia do foro psiquiátrico, registando, por vezes, comportamentos deprimidos, que o levaram a tentar o suicídio em 01/04/2000;

10- O B………, durante o internamento relativo ao período de 12/12/1999 a 14/01/2000, foi autorizado a passar 3 fins-de-semana em sua casa com a família e, durante o internamento de 02/04/2000 a 27/04/2000, foi autorizado a passar 2 fins-de-semana em sua casa com a família;

11- O B……., durante os internamentos de 12/12/1999 a 14/01/2000 e de 02/04/2000 a 27/04/2000, ausentou-se do serviço por diversas vezes, sem autorização, e, pelo menos nalgumas vezes, dirigiu-se a casa da sua mãe;

12- Em algumas dessas ocasiões, o B……. regressou acompanhado de um familiar;

13- O internamento do filho da A, o B…….., no dia 01/04/2000 sucedeu devido a uma tentativa anterior de suicídio falhada;

14- O B…….., acompanhado pela sua mãe (a agora A), deu entrada no Serviço de Urgência dos H.U....... em 25/04/2000, cerca das 22:33 horas, por ingestão de grande quantidade de álcool (cerveja) a partir da hora do almoço;

15- No dia 27/04/2000, cerca das 16:10 horas, a A telefonou para o serviço do R onde o B……. estava internado, tendo-lhe sido dito pela auxiliar K…….. para telefonar à hora do lanche, pois que aquele, apesar de não se encontrar no pavilhão, ainda há pouco se encontrava à porta do mesmo e que estava bem;

16- Cerca das 20:00 horas do dia 27/04/2000, a A falou, pelo telefone, com o Enfermeiro Coordenador I…….., que lhe disse que o B…….. não compareceu no serviço em que estava internado à hora do jantar;

17- No dia 27/04/2000, o B…….. passou o turno do dia, entre as 08:00 e as 16:00 horas, calmo e deambulou pela área circundante ao pavilhão;

18- O B……. compareceu ao almoço e ao lanche no dia 27/04/2000, tendo-se alimentado;

19- Nesse dia 27/04/2000, pelas 19:00 horas, o B………. não compareceu ao jantar, tendo sido, então, comunicada a ausência ao Enfermeiro Coordenador, Enf.º I……..;

20- Essa comunicação foi efectuada pelo Enf.º F……..;

21- E depois de terem sido efectuadas buscas nas instalações do edifício do hospital, por onde os doentes circulam livremente, tais como o bar e o parque do hospital;

22- Imediatamente após o Enfermeiro F……. ter comunicado a ausência do B…….. ao Enfermeiro Coordenador I…….., este participou tal facto ao médico de serviço, contactou a Guarda Nacional Republicana, e telefonou para casa do familiar mais próximo, ou seja, da A;

23- As comunicações descritas nos pontos 20 e 22 foram efectuadas entre as 19:00 e as 20:00 horas;

24- O B……… deixou o perímetro do R. a pé, seguindo por um atalho para casa da mãe, como já havia feito por diversas vezes;

25- O B……… atirou-se para a linha do comboio e foi colhido pela automotora que circulava entre a Lousã e ………, a poucos metros do Hospital M……. , no dia 27/04/2000;

26- O Hospital de M…….. dispõe de um procedimento de controlo da presença dos doentes;

27- E dispõe de um procedimento de emergência a accionar quando se constata a ausência de um doente;

28- A morte do filho, o B………, causou à A um choque emocional enorme;

29- E fez com que a A entrasse em depressão a que ainda anda a ser tratada;

30- O B……… permaneceu durante todo o dia 26/04/2000 internado no R., em observação médica, sendo medicado e acompanhado pelos técnicos de saúde, tendo o seu estado de saúde revelado melhoras, levantando-se para tomar as refeições e receber a visita de familiares;

31- As instalações do R. compõem-se de ….. pavilhões e estão integradas na ……… que tem a área de 17 ha;

32- As instalações do R. encontram-se afastadas de grandes aglomerados urbanos e fabris;

33- As instalações do R. são destituídas de vedação de arame ou muro, sem muralhas, valas ou fossos, e os pavilhões encontram-se separados por avenidas de sebes e flores;

34- Durante o internamento, o doente é acompanhado por uma equipa terapêutica constituída por:

- médico - presta todas as informações sobre a doença e atende a família;

- enfermeiro - presta os cuidados de enfermagem durante 24 horas, sendo um deles o Enfermeiro Responsável;

- assistente social - a quem o utente pode solicitar apoio para os problemas de ordem social e familiar;

- auxiliar de acção médica - auxilia na higiene pessoal, deslocação e alimentação dos doentes, sob a orientação da equipa de enfermagem;

35- Os horários respeitados no R. são:

- Levantar: das 07:00 às 08:00 horas;
- Deitar: flexível, devendo o doente permanecer em silêncio e com as luzes apagadas a partir das 22:00 horas;
- Refeições:
- Pequeno-almoço: das 08:35 às 09:30 horas;
- Almoço: das 12:00 às 13:00 horas;
- Lanche: às 16:45 horas;
- Jantar: das 19:00 às 20:00 horas;
- Ceia: às 22:00 horas.

2.2. Matéria de Direito

A autora insurge-se contra a sentença recorrida impugnado quer a decisão sobre a matéria de facto, quer a decisão sobre a subsunção dos factos no direito aplicável.

Apreciaremos em primeiro lugar o recurso com vista à alteração da matéria de facto e, perante os factos definitivamente fixados apreciaremos a respectiva subsunção.

2.2.1. Recurso da matéria de facto

Na análise das questões colocadas seguiremos a ordem das conclusões.

(i) Nas conclusões A1 a A4, a autora entende que deveriam ser julgados como provados os factos que descreve nas alíneas a) a j) da referida conclusão – acima descritos e para onde se remete. Tais factos consistem em incidentes ocorridos no Hospital M……., relatando a evasão de doentes desse hospital.

Tais factos são irrelevantes para a decisão deste processo. A responsabilidade civil por factos ilícitos e culposos – como é o caso – só existe se o dano, cujo ressarcimento é pedido, emergir de um facto ilícito e culposo que seja causa adequada desse dano. A existência de casos parecidos não é determinante para aferir a realidade de cada um desses casos. O que importa é averiguar os factos alegados pela autora, que efectivamente ocorreram no presente caso – uma vez que a ilicitude e a culpa e o nexo de causalidade entre o facto e o dano são acontecimentos singulares.

Improcedem assim as conclusões A1 a A4.

(ii) Nas conclusões B1 a B4, alega a autora que o facto 1 da Base Instrutória, que consta do facto dado como provado no ponto 9) da sentença, teve uma resposta restritiva e nessa medida foi incorrectamente julgado.

Deu-se como provado, no ponto 9, o seguinte: “O filho da autora, o B…….., sofria de patologia do foro psiquiátrico, registando, por vezes, comportamentos deprimidos, que o levaram a tentar o suicido em 1-4-2000”.

Pretende a autora que se dê como provado o seguinte: “O filho da autora sofria de perturbações de Psicose Esquizofrénica, doença afectiva, síndrome depressiva Depressão Maior, Alcoolismo Crónico e perturbação borderline da personalidade que lhe provocavam comportamentos depressivos com uma forte tendência previsível para o suicídio que aliás tentou por diversas vezes”.

Justifica a sua pretensão no relatório da perícia, nos esclarecimentos prestados em audiência pelo Sr. Perito e depoimento da testemunha C……...

O quesito 1 da base instrutória tinha a seguinte redacção:

O filho da autora sofria de perturbações que lhe provocavam comportamentos depressivos com uma forte tendência para o suicido que, aliás, tentou por diversas vezes ?”

Na resposta dada a este quesito o Tribunal colectivo baseou-se no relatório pericial junto aos autos a folhas 303 a 313 e os esclarecimentos prestados em tribunal pelo perito. Tomou ainda em consideração o depoimento da testemunha H………., médica psiquiátrica a exercer funções no réu.

Com efeito – diz a decisão que respondeu aos quesitos da base instrutória – dimana dos elementos probatórios referenciados que o B……… sofria, inequivocamente, de doença psiquiátrica. Porém, em face das várias hipóteses de diagnóstico colocadas desde o primeiro internamento ocorrido em 5/8/1984 e, principalmente, em face das conclusões insertas no relatório pericial e dos esclarecimentos prestados pelo Perito durante o julgamento desta causa, o tribunal entende que não deve definir explicitamente a patologia sofrida pelo B…… .

Acrescente-se, também, que em face dos mesmos elementos probatórios, o Tribunal alcançou a convicção de que o B…….., em diversas ocasiões, esteve deprimido, triste e apático. No entanto, em face do tipo de patologia atribuída ao B………, assim como em face dos registos clínicos existentes no processo clínico em apenso, não se conclui que aquele vivenciasse de modo constante a depressão.

Finalmente, o Tribunal socorreu-se do depoimento das testemunhas H……. e D…….. – médicos psiquiatras a prestar serviço no R. que acompanharam o B…….., sendo que este último apenas em substituição durante as férias da Páscoa – bem como do historial clínico do B…….. que emerge do seu processo clínico, especialmente de fls. 27, 30, 33 e 34, para concluir pela existência de uma tentativa de suicídio em 1/4/2000.

No que concerne ao episódio sucedido em 25-4-2000, o Tribunal entendeu valorizá-lo apenas coo abuso de álcool tendo em atenção o historial de alcoolismo crónico subjacente e o facto da ingestão de bebidas decorrido durante a tarde e maioritariamente num café, em consonância com o depoimento prestado pela autora.

Não se encontram registadas outras ocorrências susceptíveis de convencer o Tribunal de que teria havido outra ou outras tentativas de suicídio por banda do B……... Concretamente, o Tribunal entendeu não valorizar a referência efectuada pela autora e pela irmã, L………, a uma outra eventual tentativa de suicídio visto que, para além da inexistência de qualquer registo ou depoimento médico capaz de suportar tal, as declarações das depoentes citadas assentam, elas próprias, em relatos de terceiros” – fls. 651 e 652 dos autos.

A diferença entre o quesito e a resposta radica, essencialmente, no seguinte: não se deu como provada a forte tendência para o suicídio, nem que o tentou por diversas vezes. A resposta é mais precisa pois deu como provada uma tentativa de suicido, em 1-4-2000.

A nosso ver os meios de prova indicados pela autora não impõem decisão diversa.

No Relatório Pericial a resposta dada pelo Perito ao Quesito 1º foi a seguinte: “Sim, o filho da autora sofria de perturbações que lhe provocavam comportamentos depressivos com uma forte tendência para o suicídio. Considerando a documentação clínica da autora, o quadro clínico poderia ter conduzido a mais uma tentativa de suicídio que, em concreto, terá sido fatal.”Referiu ainda (fls- 308) que “Um quadro psicopatológico como o que o doente apresentava tem mau prognóstico e o suicídio efectivo é frequentemente precedido de tentativa(s) de suicídio.

Como se vê do relatório pericial referido não resulta que o Tribunal tivesse formado uma convicção errada.

Na verdade, o Tribunal justificou nesse relatório o comportamento depressivo (tal como foi alegado) a que ligou a única tentativa de suicídio que se mostra documentada, ocorrida em 1-4-2000.

Os meios de prova indicados pela autora não impõem decisão diversa, pois como o Tribunal justificou não há registos clínicos de outras tentativas de suicídio.

Daí que se justificasse também uma resposta restritiva relativamente à “forte” tendência para o suicídio. O Tribunal recortou os factos concretos (uma tentativa de suicídio) e fez bem, pois a forte tendência que estava alegada havia de resultar da avaliação ou qualificação dos casos concretamente apontados.

Assim, relativamente ao quesito primeiro e à resposta restritiva que mereceu do Colectivo, a autora não tem razão pois os meios de prova invocados e de que se serviu o Tribunal não impunham decisão diversa.

(iii) Na conclusão C1 imputa à sentença o erro de julgamento por a) não julgar provado que “a) Nunca nem após a entrada do B……. no Hospital M…….em 26-4-2000, lhe foi prescrita ou adoptada pelos Serviços do réu qualquer medida especial de vigilância.

b) julgar como provado o facto 30 da sentença, no que vali além de “o B……. Permaneceu durante todo o dia 26-4-2000 internado no réu…”.

Quanto ao facto da al. a), não alega a autora qual o quesito que pretende ver modificado. Na petição inicial esse facto não foi alegado e não consta de qualquer quesito. Não há assim razão para aditar o facto à matéria dada como provada.

O facto da al. b), traduz-se na alegação de que se não provou que no dia 26-4-2000 o B……… esteve “em observação médica, sendo medicado e acompanhado pelos técnicos de saúde, tendo o seu estado de saúde revelado melhoras, levantando-se para tomar as refeições e receber a visita de familiares”.

A sentença deu este facto como provado, no ponto 30 e a autora pretende que a parte acima referida não deveria ter sido dada como assente.

A matéria provada resultou da resposta dada ao quesito 34º da base instrutória – artigo que foi introduzido na base instrutória, por despacho de 27-10-2008, constante de fls. 461 dos autos - foi justificada nos termos seguintes:

“(…)

A resposta ofertada ao artigo 34º encontra arrimo no teor do registado a fls. 27 do processo clínico

(…)” – fls. 657 dos autos.

A resposta dada ao quesito 34 mostra-se, portanto, justificada documentalmente, pois consta de fls. 27 do processo clínico, junto ao processo, um registo com o seguinte teor:

Permaneceu durante o turno no leito, levantando-se só para fazer as refeições. Recebeu alguns telefonemas e visitas de familiares com algum agrado.”

No mesmo boletim, no registo imediatamente anterior, mas reportado ao mesmo dia que foram administrados alguns medicamentos.

Resulta do exposto que a resposta ao quesito 34 se mostra devidamente justificada, sem que o alegado pela autora imponha resposta diversa. A autora não aceita o teor do documento de fls. 27 do processo instrutor por este se referir ao turno das 8-16 horas, para daí concluir que “… tudo aponta para que o B…….. não estivesse medicado nem tivesse sido acompanhado pelos técnicos de saúde”.

Mas não tem razão.

A fls. 27 consta ainda o registo do turno das 0-8 horas. E se é verdade que nada consta relativamente ao turno das 16-8 horas (dos dias 26 e 27 de Abril de 2000), também é verdade que no turno das 8-16 do dia 27/4/2000 consta o seguinte: “Passou o turno calmo e com comportamento adequado. Deambulou pela área circundante do pavilhão. Alimentou-se bem”. E, como já referimos, no registo do turno das 0-8 horas do dia 26-4-2000, estão identificados os medicamentos ministrados, a que se segue a o seguinte: “Dormiu por longos períodos durante o restante turno”.

Não se vê, portanto, qualquer razão válida para que o julgador não desse credibilidade aos registos, os quais se mostram devidamente rubricados.

Portanto, e em conclusão, também quanto a estes pontos o recurso deve ser julgado improcedente.

(iv) Na conclusão D1 a autora considera incorrectamente julgado os factos dados como provados sob os n.ºs 25 e 26 da base instrutória, correspondentes aos factos 26 e 27 da sentença.

Os factos dados como provados têm a seguinte redacção:

26. O Hospital de M…….. dispõe de um procedimento de controlo da presença dos doentes;

27. E dispõe de um procedimento de emergência a accionar quando se constata a ausência de um doente.

A autora não tem razão, como decorre da sua própria alegação. Invoca o depoimento do Enfermeiro F……. que “deu conta de um procedimento que consiste em esperar que toda a gente estivesse sentada para contar os doentes”. Aliás a prova de que este método era usado decorre de se ter notado que o B……. compareceu ao almoço e ao lanche (facto 18) e não compareceu ao jantar pelas 19,00 horas (facto 19), sendo comunicada a respectiva ausência.

Também está provado que entre as 19,00 horas e as 20,00 horas do dia 27/4/2000 foi comunicada a ausência do B……. ao médico de serviço, contactada a GNR e feito um telefonema para casa do familiar mais próximo (facto 22 e 23). Deste modo, está evidenciado qual o procedimento de emergência adoptado, resultando desse modo provada a sua existência – nos moldes dados como provados.

Assim, também quanto a estes factos, o alegado pela autora não impõe decisão diversa daquela que foi tomada pelo Tribunal.

Improcedem assim todas conclusões do recurso relativas ao julgamento da matéria de facto.

2.2.2. Recurso relativamente à subsunção dos factos dados como provados.

Vejamos, agora, o recurso da autora relativamente á subsunção dos factos provados no direito aplicável.

(i) A decisão recorrida e os seus fundamentos.

A sentença recorrida resumiu a causa de pedir nesta acção em termos claros quando disse:

“(…)

Em suma, a causa de pedir da actual pretensão indemnizatória assenta, essencialmente, na falta de condições de segurança e vigilância durante o internamento do filho da autora, nos serviços do réu, concretamente, no dia 27 de Abril de 2000, e que culminou com a morte daquele em consequência de suicídio cometido após evasão das instalações do réu.

(…)” – fls. 866.

A sentença recorrida começou por averiguar se a inexistência de vedação do perímetro, e bem assim o facto dos doentes deambularem – mais ou menos livremente – pelas suas instalações viola alguma regra legal, regulamentar ou de prudência. Conclui pela negativa.

Concluiu, de seguida, que nada havia a censurar no tocante ao procedimento que o réu adopta para verificação da presença dos doentes, sublinhando que o mesmo é genericamente permitido e adequado ao tratamento mental, de acordo com a ciência médica actual.

Analisou, depois, se a morte do B……., por suicídio, derivou da ausência de vigilância permanente. Respondeu negativamente a esta questão por ter concluído que “… nenhuma circunstância fazia prever o desfecho trágico que veio a suceder…”

Finalmente, salientou que “os serviços do réu, através dos sues funcionários, cumpriram os procedimentos instituídos para o controlo de presença e ausência dos doentes na situação do B……., tendo até uma das funcionárias do réu confirmado a presença do B…….., bem como o seu estado, fora do momento das refeições (facto 15).

Ou seja, a sentença recorrida afastou a responsabilidade civil extracontratual do réu por ter entendido que o mesmo, através dos seus funcionários, não cometeu qualquer facto ilícito e, com esse fundamento absolveu-o do pedido.

(ii) Análise dos fundamentos do recurso.

A autora nas conclusões E) a AA), insurge-se contra a subsunção dos factos dados como provado. Relativamente, às críticas dirigidas à decisão recorrida seguiremos a respectiva ordem.

(a) Nas conclusões E) a P) enumera várias críticas à sentença, relacionadas com a situação dos muros e vedação e perímetro do Hospital e mesmo o acesso aos pavilhões onde os doentes são tratados ser aberto.

Começa por qualificar como evidente erro de julgamento o facto da sentença não estabelecer o padrão médio expectável que, não obstante, diz no caso verificado, nada dizendo de relevante a “não ser defender uma concepção curativa inter-relacional do doente com a comunidade que ninguém em abstracto nega e que depende, isso sim, em concreto, do diagnóstico (correto, que nem sequer isso houve como se diz inclusivamente na sentença) que se faça dos doentes” (conclusão l).

Esta crítica padece do erro que imputa à sentença, na medida em que a autora também não diz qual o padrão médio expectável para, desse modo, poder avaliar o comportamento concreto do réu.

Mas nem sequer é exacto que a sentença não tenha efectuado uma análise cuidadosa da questão. Começou por destacar os factos provados (pontos 31, 32 e 33). Entendeu, depois que “as referidas características são consonantes com as modernas teorias da Psiquiatria, que propugnam que a terapêutica e tratamento administrados a doentes do foro psiquiátrico devem acontecer em ambiente de confiança e mobilidade, em condições físicas que propiciem a liberdade e autonomia de movimentos, favorecendo a interacção e convívio entre doentes e pessoal do serviço, por forma a incentivar a readaptação do doente, devendo a vigilância destes doentes decorrer de modo discreto” (fls. 873). Nesta passagem a sentença considera que a falta de grades, vedação ou muro, sem muralhas, valas ou fossos, e os pavilhões separados por avenidas de sebes e flores, corresponde ao padrão de vigilância discreto que, no entender da sentença, corresponde ao modo actual de agir psiquiátrico.

O autor não nega a concepção actual do tratamento psiquiátrico em estabelecimentos sem muros, valas ou fossos, e, portanto, não põe em causa que essa concepção esteja adequada às leges artis.

Não pondo em causa esse entendimento não procede a crítica à sentença quando (de resto) reconhece que, no caso, o Hospital réu, afinal, tinha um regime de acordo aos actuais padrões de vigilância dos doentes mentais.

Portanto, em boa verdade, não tem razão de ser a crítica da autora relativamente à inferência que a sentença fez da situação física do Hospital, relativamente á ausência de vedação das suas instalações.

Também se insurge a autora contra a irrelevância que a sentença deu à falta de controlo efectivo da presença dos doentes, por se ter bastado com a contagem dos mesmos na hora das refeições (conclusão n). Em seu entender, o controlo efectivo dos doentes quando se dão os tabuleiros das refeições é coisa profundamente amadora, não atingindo os “parâmetros médios exigíveis”.

Também neste ponto a autora não tem razão. A contagem dos doentes na hora das refeições (cinco vezes – cfr. ponto 35 da matéria de facto) é suficiente para a finalidade a que se destina, permitindo – como permitiu – notar a presença do filho da autora no almoço e lanche do dia 27/4/2000 e a sua ausência nesse mesmo dia ao jantar (pelas 19.00 horas) – factos n.ºs 18 e 19 da matéria provada.

Não tem pois qualquer razão de ser a crítica feita à sentença por não ter entendido que o modo de contar os doentes estava aquém de um padrão médio exigível.

(b) Nas conclusões M e N a autora entende que o facto do seu filho ter deambulado livremente fora do pavilhão e n perímetro do hospital no dia em que se suicidou mostra que se “verifica faute de servisse – em palavras de hoje de uma culpa no funcionamento ou da organização hospitalar ou uma culpa anónima, que permitiu que o B……. se visse abandonado à sua capacidade diminuída e à sua demência que o conduziu ao suicídio”.

Também esta conclusão não pode aceitar-se.

Desde logo, porque não está demonstrada qual a parte do funcionamento do hospital que não funcionou bem. Não pode imputar-se a anomalia ao facto do Hospital não ter muros, vedações ou valas – como vimos; não pode imputar-se essa anomalia ao modo de contar os doentes, na hora das refeições – como também vimos. A tese da autora parte do resultado (suicídio) para daí inferir que, para que o mesmo acontecesse, algo falhou. Mas sem razão, pois para se poder imputar ao réu um comportamento ilícito é necessário saber qual foi em concreto o comportamento que violou regras legais, regulamentares ou de prudência.

(c) Nas conclusões Q e seguintes a autora insurge-se relativamente à parte da sentença sobre a previsibilidade do evento (suicido). Na conclusão W diz a autora:

“(…)

Ou seja, mesmo que seguíssemos o raciocínio da sentença, que se abstrai de quase tudo, sempre se teria de condenar o Hospital, porque, proximamente, 40 horas antes do suicídio e não contando com a tentativa de suicídio ocorrida cerca de 20 dias antes, ocorreu efectivamente um comportamento de risco que faria com que cuidados especiais devessem ter sido adoptados – e já vimos - … enfim … que aquela informação relativa ao episódio de irresponsabilidade nem sequer foi transmitida aos médicos e enfermeiros.

(…)”.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto, neste STA, no seu douto parecer também destaca este ponto quando sublinha que “o boletim clínico do B…… só por si continha referências a tentativas de suicídio, uma das quais com vinte e cinco dias de antecedência. O que permitiria conjecturar uma repetição das mesmas”.

Ou seja, e no essencial, importa averiguar se as medidas de vigilância tomadas pelo hospital, permitindo que o filho da autora deambulando pela área circundante do hospital, violaram o dever geral de prudência, face ao perigo de suicídio.

Provou-se, efectivamente, que “No dia 27/4/2000, o B…… passou o turno do dia, entre as 08:00 e as 16:00 horas, calmo e deambulou pela área circundante ao pavilhão”.

A sentença recorrida depois de enumerar os factos dados como provados que considerou relevantes – e sem omitir que o internamento de 1-4-2000 foi “motivado por uma tentativa de suicídio” concluiu:

“(…)

Com efeito, e não obstante o suicídio estar permanentemente no horizonte das enfermidades mentais como as que foram sucessivamente imputadas ao B…….., nos dias que antecederam o factídico não se registou qualquer atitude, comportamento ou ânimo por parte daquele que pudesse infundir a suspeita de que aquele dia viria a ser diferente de outros. Realmente, e como já se disse, o episódio de embriaguez ocorrido em 25-4-2000 configurou um mero comportamento irresponsável, de resto, habitual e conforma a dependência do álcool de que padecia o B……., e que portanto, só por si, não é apto a suportar a conclusão de que o suicídio estava, naquela altura, presente na mente do B……….

(…)” – fls. 880

Não está imputado ao Hospital réu a violação de qualquer regra legal ou regulamentar, portanto, a ilicitude a ocorrer emerge da violação de regras de prudência adequadas ao caso (art.6º do Dec. Lei 48.051).

E também não se mostra violada qualquer regra de prudência. Pelo contrário, a sentença decidiu bem, aliás na linha da jurisprudência deste STA (acórdãos de 25-11-98, proferido no recurso 038.737, 6-12-2006, proferido no recurso 0921/06 e 29-1-2009, proferido recurso 0966/08), afastando a ilicitude por não estar provado qualquer facto gerador da suspeita que o doente pudesse tentar o suicídio, designadamente, através da ausência do perímetro do Hospital. Tanto é assim, de resto, que durante os anteriores internamentos o filho da autora diversas vezes tinha saído do Hospital sem que se pudesse ligar a saída do Hospital a um especial perigo de suicídio – cfr. facto sob os números 11.

Do exposto resulta que também nesta parte o recurso deve ser julgado improcedente.

3.Decisão

Face ao exposto, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo acordam em negar provimento ao recurso.

Custas pela autora.

Lisboa, 29 de Maio de 2014. – António Bento São Pedro (relator) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Jorge Artur Madeira dos Santos (vencido, nos termos da declaração que junta)


VOTO DE VENCIDO

O réu Hospital tem a obrigação de guardar e de vigiar os doentes mentais que acolha, sobretudo aqueles que – como o filho da recorrente - estavam clinicamente assinalados como portadores de tendências suicídas.
A matéria de facto é eloquente no sentido de que o réu Hospital não vedou as suas instalações por forma a cumprir minimamente esses deveres de guarda e de vigilância. Não o fazendo, e possibilitando assim que os doentes facilmente se evadissem antes da alta, o réu Hospital violou regras elementares de cuidado e de prudência.
E a sua ofensa culposa desses deveres de vigilância e de guarda foi causa adequada da evasão e do suicídio do filho da autora.
Nesse sentido, «vide» o acórdão do STJ de 25/7/85, «in» BMJ, 349.º, 516.
Assim, daria provimento ao recurso - passando-se ao cálculo da indemnização devida à autora.
Jorge Artur Madeira dos Santos.