Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0227/16
Data do Acordão:03/08/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:BENEFÍCIOS FISCAIS
ENCARGOS FINANCEIROS
Sumário:O ponto 7. da Circular n.º 7/2004, de 30.03, da DSIRC, estabelece um método indirecto, presuntivo, de afectação de encargos financeiros em desrespeito dos artigos 87º a 90º da LGT sendo, por isso, ilegal.
Nº Convencional:JSTA00070050
Nº do Documento:SA2201703080227
Data de Entrada:02/25/2016
Recorrente:A...........,SGPS,SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO
Área Temática 1:PROVIDO
Legislação Nacional:DIR FISC - IRC
Jurisprudência Nacional:CONST05 ART103 N1 ART104 N2 ART112 N5.; LGT98 ART68-A ART74 N3 ART81 N1 ART85 ART87 - ART90 ART100.; CPPTRIB99 ART55. ; EBFISC01 ART31 N2 ART32.; L 30-G/00 DE 2000/12/29.; L 109-B/01 DE 2001/12/27; L 32-B/02 DE 2002/12/30.; CIRCULAR 7/04 DE 2004/03/30.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A……………….., SGPS, SA., inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (TAF do Porto) datada de 8 de Outubro de 2015, que julgou improcedente a impugnação por si deduzida contra o acto do Senhor Subdirector-geral da Direcção de Serviços dos Impostos sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas, que indeferiu o recurso hierárquico da sua autoliquidação de IRC, do exercício de 2008 no que concerne aos encargos financeiros no valor de € 1.086.404,27.

Alegou, tendo concluído como se segue:
A — A situação em recurso é o enquadramento legal do método de cálculo para apuramento dos encargos financeiros, preconizado pela Circular n° 7/2004.
B — O artigo 32° do EBF não determina como se calcula o valor dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais.
C — A Administração Tributária e a Douta Sentença de que ora recorre, consideram que a Circular n° 7/2004 é aplicável ao cálculo do apuramento o valor dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais.
D — A Circular 7/2004 ao estipular um método para quantificação dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais é ilegal e inconstitucional do ponto de vista formal, porque viola o princípio da legalidade e da reserva de lei da Assembleia da República.
E — A aplicação do novo regime legal aos encargos financeiros suportados posteriormente, mas contratados anteriormente a 1 de Janeiro de 2003, é ilegal por aplicação retroactiva.
F — Enferma, assim, a Douta Sentença recorrida de:
a) Errado enquadramento legal e temporal da aplicação do método de apuramento do valor dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais;
b) Consequentemente, errada aplicação da Circular 7/2004;
c) E por inerência, ilegal a sua aplicação à situação aqui recorrida.
Com o douto suprimento de Vªs Exªs deve o presente Recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser a Douta Sentença, de que ora recorre, revogada pelos motivos acima melhor expostos.

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público, notificado, pronunciou-se pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
a) Em 30/05/2009 a impugnante apresentou via internet a Declaração Modelo 22 de IRC, relativa ao exercício de 2008, tendo autoliquidado no quadro 07, campo 225 “Mais-valias fiscais — regime transitório (art. 7°, n° 7, alínea b) da Lei n° 30- G/2000, de 29 de Dezembro, e art. 32°; n° 8 da Lei n° 109-B/2001 de 27 de Dezembro)” o montante de € 1.087.032,27.
b) Em 30/05/2011, apresentou reclamação graciosa daquela autoliquidação onde solicitou a anulação da autoliquidação efectuada e pediu indemnização sobre o valor de imposto impugnado.
c) Depois de cumprida a audiência prévia, a reclamação veio a ser totalmente indeferida por despacho de 18/11/2011.
d) Por não se conformar com o indeferimento da reclamação graciosa, a impugnante deduziu recurso hierárquico.
e) Sobre aquele recurso foi elaborada a informação nº 2285/2012, de 2012/11/27, que consta de fls. 50/56 do PA, e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
f) Sobre esta informação recaiu o despacho com o seguinte teor: “indeferido nos termos propostos”, datado de 04/02/2013, proferido pelo Substituto Legal do Director-Geral, …………, Subdirector-geral.
g) O despacho de indeferimento do recurso hierárquico foi notificado à impugnante através do ofício n° 200251, de 2013/02/15.
h) A impugnante intentou impugnação judicial em 20/05/2013.
Nada mais se deu como provado.

Há agora que apreciar o recurso que nos vem dirigido.

No essencial, a recorrente pede a este Supremo Tribunal que diga se o disposto no ponto 7. da Circular n.º 7/2004, de 30.03, da DSIRC -Método a utilizar para efeitos de afectação dos encargos financeiros às participações sociais

7. Quanto ao método a utilizar para efeitos de afectação dos encargos financeiros suportados à aquisição de participações sociais, dada a extrema dificuldade de utilização, nesta matéria, de um método de afectação directa ou específica e à possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria, deverá essa imputação ser efectuada com base numa fórmula que atenda ao seguinte: os passivos remunerados das SGPS e SCR deverão ser imputados, em primeiro lugar, aos empréstimos remunerados por estas concedidos às empresas participadas e aos outros investimentos geradores de juros, afectando-se o remanescente aos restantes activos, nomeadamente participações sociais, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição- se traduz ou não, num método não conforme à Lei, constitucional e ordinária, para efeitos de afectação dos encargos financeiros às participações sociais.

Tanto na sentença recorrida, como nas alegações da recorrente, não há divergência sobre a natureza das regras contidas em tal Circular, trata-se de instruções genéricas que não são mais do que meras orientações administrativas que apenas vinculam a Administração, cfr. artigo 55º do CPPT e 68º-A da LGT.

Ou seja, não têm uma dimensão erga omnes, tal como as leis editadas pelo Parlamento e pelo Governo e, consequentemente, não vinculam os contribuintes e, especialmente, os Tribunais, cfr. n.º 3 daquele artigo 55º, estando o seu campo de aplicação obrigatório confinado à actuação da administração tributária que procedeu à sua emissão.

As instruções constantes de tal Circular foram editadas porque, “1. Tendo-se levantado dúvidas sobre o regime fiscal aplicável às sociedades gestoras de participações sociais (SGPS) e às sociedades de capital de risco (SCR), previsto no art.º 31º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Lei do OE para 2003), sanciona-se o seguinte entendimento:

Regime previsto no nº 2 do art.º 31º do EBF

1. A Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro, veio alterar o regime fiscal aplicável às mais-valias e às menos-valias realizadas pelas SGPS e pelas SCR consagrado no art.º 31º do EBF, dispondo o n.º 2 deste preceito que "as mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS e pelas SCR mediante a transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição, não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades".

Regime previsto no nº 3 do art.º 31º do EBF

3. O n.º 3 do mesmo artigo, tendo a natureza de uma norma antiabuso, afasta a aplicação do regime previsto no n.º 2 relativamente "às mais-valias realizadas e aos encargos financeiros suportados quando as partes de capital tenham sido adquiridas a entidades com as quais existam relações especiais, nos termos do n.º 4 do art.º 58º do Código do IRC, ou entidades com domicílio, sede ou direcção efectiva em território sujeito a um regime fiscal mais favorável, constante de lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças, ou residentes em território português sujeitas a um regime especial de tributação e tenham sido detidas, pela alienante, por período inferior a três anos e, bem assim, quando a alienante tenha resultado de transformação de sociedade à qual não fosse aplicável o regime previsto naquele número relativamente às mais-valias das partes de capital objecto de transmissão, desde que, neste último caso, tenham decorrido menos de três anos entre a data da transformação e a data da transmissão."

Aplicação temporal do novo regime

4 .O n.º 5 do art.º 38.º da Lei n.º 32-B/2002, por sua vez, prescreve que "a alteração introduzida no art.º 31.º do EBF aplica-se às mais-valias e às menos-valias realizadas nos períodos de tributação que se iniciem após 1 de Janeiro de 2003, sem prejuízo de se continuar a aplicar, relativamente à diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias realizadas antes de 1 de Janeiro de 2001, o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 7 do artigo 7º da Lei nº 30-G/2000, de 29 de Dezembro, ou, em alternativa, no n.º 8 do artigo 32.º da Lei nº 109-B/2001, de 27 de Dezembro."

5.Assim, no que concerne ao âmbito de aplicação temporal do novo regime e no que respeita, concretamente, aos encargos financeiros, o mesmo é aplicável aos encargos financeiros suportados nos períodos de tributação iniciados após 1 de Janeiro de 2003, ainda que sejam relativos a financiamentos contraídos antes daquela data.”.

Depreende-se, assim, que a razão de ser de tais “normas administrativas” encontra a sua justificação nas dúvidas e incertezas que a AT sentiu na aplicação das regras constantes do referido artigo 32º do EBF, no que às sociedades SGPS diz respeito, como a recorrente, criando um regime uniforme para obter, no seu entendimento, uma aplicação consentânea com a vontade legislador ao editar tal inciso legal.

Resulta dos autos, e é aceite pacificamente pelas partes, que a recorrente procedeu à autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2008 e, no que respeitou aos encargos financeiros, seguiu as orientações específicas da dita Circular, tendo, de seguida, apresentado reclamação graciosa da sua autoliquidação.

Tal reclamação graciosa foi indeferida, o que motivou a apresentação do competente recurso hierárquico que também veio a ser indeferido.

Se a reclamação graciosa foi indeferida por intempestividade e por terem sido seguidas as orientações resultantes da dita Circular, que se impõem à AT, já no recurso hierárquico concluiu-se pela impossibilidade de “revisão” da autoliquidação por terem sido seguidas as mesmas orientações genéricas de carácter obrigatório para a AT, estando por isso impossibilitada de fazer de modo diferente, bem como pelo facto de a recorrente não ter feito prova dos direitos que pretende ver reconhecidos.

Já na sentença recorrida, e no segmento fundamentador que se refere à legalidade da referida Circular, concluiu-se que o método resultante da mesma, para efeitos de afectação dos encargos financeiros, não era obrigatório para a recorrente e portanto a mesma não se encontra eivada de qualquer ilegalidade.

Da leitura atenta que se faz daquele ponto 7, cuja legalidade vem questionada nos presentes autos, pode-se surpreender com facilidade que o método escolhido pela AT se assume como um método indirecto de afectação dos encargos, em contraposição a um método directo, motivado pela dificuldade de utilização de um método de afectação directa ou específica e pela possibilidade de manipulação que o mesmo permitiria.

Ou seja, a AT, face às dificuldades sentidas de integração do disposto naquele artigo 32º do EBF, desinteressou-se pela obtenção da verdade dos factos, pilar da tributação sobre o rendimento real, cfr. artigo 104º, n,º 2 da CRP, e assumiu como único método aceitável o que parte de uma presunção de que os passivos remunerados das SGPS e SCR devem ser afectos liminarmente e de forma prioritária a empréstimos remunerados a participadas e outros investimentos geradores de juros e, no remanescente, aos demais activos, proporcionalmente ao respectivo custo de aquisição.

Portanto, a recorrente ao seguir as orientações genéricas da AT, a que não estava obrigada, lançou mão de um método indirecto, presuntivo, de afectação de encargos financeiros, mas como bem refere a própria AT na decisão do recurso hierárquico, de nada lhe valeria (à recorrente) fazer de modo diferente porque, caso o fizesse, seria sempre corrigida a sua liquidação nos precisos termos daquelas orientações genéricas existentes, cfr. pág. 39 dos autos, parágrafo 2º.

Aliás, seguindo os contribuintes as orientações da AT, desde que conformes à lei, nas suas autoliquidações, evitam posteriormente dissabores e incómodos no tocante à regularização da sua situação tributária.

Na situação dos autos não vem concretamente explicada a razão pela qual (não) se poderia efectuar a afectação dos encargos financeiros por outro modo (directo), diferente daquele que foi efectivamente utilizado (indirecto), não o explica a recorrente, nem o explica a AT, ambas se limitam a referir que o método utilizado é o determinado pela Circular em questão. E a sentença bastou-se com o facto de a recorrente na autoliquidação ter seguido o método que para si não era obrigatório.

Tratando-se a avaliação indirecta de uma operação sem correspondência com a verdade dos factos, precisamente porque estes não são possíveis de determinar com segurança e certeza, ou porque há indícios muito fortes (a quase certeza) de que os factos evidenciados pelo contribuinte, e que devem servir de fundamento à determinação da matéria tributável, não são verdadeiros, previu o legislador, de forma taxativa, as concretas situações em que é possível o recurso a tais métodos indirectos nos artigos 87º a 90º da LGT.

Portanto, a “norma” emitida pela AT não pode ser considerada de per si, de forma isolada, sem qualquer relação com uma concreta situação de determinado contribuinte, como se tratando de método de afectação ilegal e proibido; se houver razões que justifiquem a sua aplicação, pode tratar-se de método idóneo a efectuar a respectiva afectação, mas se não se verificarem tais razões, trata-se de método inadequado de proceder a essa mesma afectação.

Já vimos que no caso dos autos nada se diz a esse respeito, isto é, nada se diz da possibilidade ou impossibilidade de aplicação de um método de afectação directo, tem-se por bom o método de afectação indirecto, de forma acrítica e sem conexão intima com a situação concreta da contribuinte.

Contudo, não vindo expressamente invocado pela AT que no caso concreto da recorrente se imponha o recurso a um método de avaliação indirecto, o que lhe competia nos termos do disposto no artigo 74º, n.º 3 da LGT -em caso de determinação da matéria tributável por métodos indirectos, compete à administração tributária o ónus da prova da verificação dos pressupostos da sua aplicação, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova do excesso na respectiva quantificação-, não se pode valer da dita “norma administrativa” da Circular em análise para manter a autoliquidação efectuada de acordo com a mesma.

É certo que as “normas administrativas” constantes da circular que se analisa foram emitidas, precisamente, face às dificuldades e dúvidas quanto à possibilidade de utilização de um método de afectação directa e à possibilidade de haver manipulação desse mesmo método por parte dos contribuintes, no entanto a aplicação de métodos indirectos, quaisquer que eles sejam, de forma generalizada e sem ser tida em conta a situação individual concreta de que cada contribuinte está proibida por lei, resultando essa proibição do disposto nos artigos 104º, n.º 2 da CRP, 81º, n.º 1 e 85º da LGT, e, como também já vimos, as ditas “normas administrativas” não prevalecem sobre qualquer um daqueles preceitos legais, cfr. artigo 112º, n.º 5 da CRP.

Temos, assim, que concluir pela razão da recorrente no que toca a pretender que não se aplique à sua situação concreta o disposto naquele n.º 7 da dita Circular 7/2004, mostrando-se afectada por vício de violação de lei a autoliquidação efectuada.

De resto, o facto de a própria recorrente ter procedido à autoliquidação do imposto, segundo as regras estabelecidas pela AT, não implica que tal seja admissível ou lhe seja oponível, desde logo porque aos contribuintes não assiste o direito de apresentar as suas declarações de rendimentos lançando mão de métodos indirectos que não tenham uma correspondência directa e imediata com a sua realidade contabilística, o que se impõe por força dos princípios da tributação das empresas pelo rendimento real e da igualdade, segundo os quais, todos, e cada um, contribuirão coactivamente para a receita do Estado segundo as suas possibilidades e na medida do esforço que lhes possa ser exigido, cfr. artigo 103º, n.º 1 da CRP.

E já vimos que, o uso de tais métodos indirectos, apenas é consentido à AT nas situações enumeradas na lei e segundo os parâmetros legalmente estabelecidos, neste caso, para salvaguarda da receita do Estado, assim se conseguindo a distribuição do sacrifício, na medida do possível, por todos os contribuintes.

Tanto basta para determinar a procedência deste recurso e da impugnação, pelo que, no mais, o recurso perde a sua utilidade.

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência:

- conceder provimento ao recurso e, nessa medida, revogar a sentença recorrida no segmento afectado pelo recurso;

-julgar procedente a impugnação judicial deduzida;

-anular a decisão do recurso hierárquico, bem como a autoliquidação impugnada;

-condenar a AT, nos termos do artigo 100º da LGT, a restituir à recorrente o imposto ilegalmente pago, bem como os respectivos juros indemnizatórios.

Sem custas neste Supremo Tribunal e na instância em exclusivo pela AT.

D.n.

Lisboa, 8 de Março de 2017.- Aragão Seia (relator) – Casimiro Gonçalves – Francisco Rothes.