Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0997/10
Data do Acordão:03/02/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANTÓNIO CALHAU
Descritores:IRC
REGIME SIMPLIFICADO DE TRIBUTAÇÃO
SOCIEDADE
Sumário:I - Não se demonstrando nos autos a obtenção de rendimentos pelo sujeito passivo, não há lugar à determinação do lucro tributável por aplicação do n.º 4 do artigo 53.º do Código do IRC (regime simplificado), pois que não se verifica o pressuposto do imposto (artigo 1.º do Código do IRC), inexistindo facto tributário.
II - Mas mesmo que o sujeito passivo tivesse obtido rendimentos, o que não é o caso nos autos, o valor mínimo constante do n.º 4 do artigo 53.º do Código do IRC (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 159/09, de 13 de Julho), sempre deverá ser entendido como mera presunção ilidível, por força do disposto no artigo 73.º da Lei Geral Tributária.
III - A regra estabelecida no artigo 73.º da Lei Geral Tributária vale não apenas as normas de incidência tributária em sentido próprio, mas também em relação a outras normas que estabelecem ficções que influenciam a determinação da matéria colectável (quer directamente, através de valores ficcionados para a matéria colectável, quer indirectamente, ao fixarem ficcionadamente os valores dos rendimentos relevantes para a sua determinação), pois que o advérbio «sempre» aí utilizado inculca a ideia de tratar-se de um princípio basilar da globalidade do ordenamento jurídico tributário, corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, assente no princípio da capacidade contributiva.
Nº Convencional:JSTA000P12673
Nº do Documento:SA2201103020997
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – A Representante da Fazenda Pública, não se conformando com a decisão do Mmo. Juiz do TAF de Coimbra que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…, com sede em Penacova, e, em consequência, anulou a liquidação de IRC, referente ao ano de 2003, e respectivos juros compensatórios e moratórios, dela vem interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
1- A sentença recorrida, apoiada no douto Ac. STA n.º 0533/09, declarou ilegal a liquidação de IRC relativa ao exercício de 2003, efectuada com base no regime simplificado previsto no art.º 53.º do CIRC, na medida em que o sujeito passivo esteve inactivo e não obteve rendimento sujeito a imposto;
2- De facto, atendendo ao “elemento sistemático” de interpretação, impõe-se o reconhecimento de que o artigo 53.º se insere no respectivo Código no capítulo relativo à determinação da matéria tributável, após as normas de incidência e de isenção;
3- O regime simplificado do art.º 53.º CIRC insere-se na secção relativa à determinação do lucro tributável por métodos indirectos, como forma alternativa à tributação do rendimento real efectivo a que o n.º 2 do artigo 104.º CRP dá preferência;
4- Todavia, tal preferência constitucional não tem valor absoluto e admite alternativas a definir pelo legislador ordinário, sobretudo se essas vias se fundamentarem como formas de luta contra a evasão e fraude fiscais ou outros fortes motivos juridicamente justificáveis (e justificados);
5- Ora, o sentido de tais alternativas só pode alcançar-se integralmente, em regra, tendo em conta o contexto histórico e jurídico em que as normas foram produzidas e a finalidade pretendida pelo legislador;
6- Ou seja, na decisão recorrida deu-se especial atenção ao elemento sistemático de interpretação em prejuízo, desproporcionado, do elemento histórico e teleológico relativo ao “regime simplificado”, criado pela Lei n.º 30-G/2000 para vigorar nos anos seguintes;
7- Além disso, muito respeitosamente, parece que não se atendeu correctamente ao elemento literal da norma em causa;
8- Neste aspecto não deve entender-se que a expressão do n.º 1 (que abrange neste regime, verificados outros requisitos, os “sujeitos passivos que exerçam, a título principal, uma actividade” sujeita a imposto e não isenta) não se aplica às sociedades inactivas (porque não “exercem”), mas que tal norma apenas pretende delimitar os potenciais sujeitos passivos deste regime de outros que dele devem ficar excluídos por não terem como objecto normal qualquer actividade “empresarial” tributada pelo “lucro”;
9- Além disso, o artigo 53.º, num dado contexto de busca de simplificação e de combate à evasão fiscal, visou conferir aos interessados, mediante opção, a possibilidade de tributação sem ter em consideração uma base tributável real, isto é, abriu a possibilidade de tributar certas pequenas empresas – com o acordo destas – com base em coeficientes de tributação independentes do verdadeiro rendimento ser positivo, nulo ou mesmo negativo;
10- Neste regime está implícito que em certas situações o SP poderia ser beneficiado (para além da vantagem resultante da simplificação) por ser objecto de uma colecta final inferior àquela que resultaria da tributação segundo o regime geral mas, noutros casos, poderia acontecer o contrário e a tributação final resultante do regime simplificado gerar colecta em situações em que realmente houve “lucro” nulo ou em que este foi negativo;
11- Ou seja, faz parte da natureza do regime simplificado que este visa tributar o “rendimento normal”, muitas vezes divergente do rendimento efectivo, fixando-se o imposto de modo forfetário;
12- Este modelo não é inconstitucional, porque é admitido pelo n.º 2 do artigo 104.º CRP e porque depende de opção voluntária do interessado;
13- Em suma, a inserção sistemática do artigo 53.º do CIRC nada diz àcerca da incidência (ou ausência dela) em sede de IRC, apenas define o regime simplificado como um dos métodos indirectos de determinação do imposto, segundo critérios forfetários, independentemente da efectiva existência de rendimento positivo, nulo ou negativo;
14- Pelo que, nestes casos, o “facto tributário” não consiste na existência de rendimento positivo mas na verificação cumulativa dos pressupostos de inclusão no regime simplificado previstos no artigo 53.º do CIRC;
15- Essa essência do regime simplificado parece justificar a sua aplicabilidade a todos os sujeitos passivos que nele se enquadrem, mesmo que não obtenham rendimento (ou obtenham rendimento nulo) por se encontrarem circunstancial ou definitivamente inactivos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Exmo. Magistrado do MP junto deste Tribunal, tendo vista, não emitiu parecer.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Mostram-se provados os seguintes factos:
1. A impugnante A..., começou a exercer em 29 de Março de 1995 e até final de 1997 a sua actividade de agente de comércio por grosso, sem predominância – CAE 51190 –, sujeita ao regime geral de tributação, com opção por contabilidade organizada.
2. Na sequência de alterações legislativas sobre Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, introduzidas em 1 de Janeiro de 2000 pela Lei 30-G/2000, de 29 de Dezembro, na ausência de uma declaração sua, no sentido de continuar enquadrada no regime geral de apuramento do lucro tributável, foi a impugnante enquadrada pela Administração Tributária, em 2001, para efeitos de tributação em sede daquele imposto, no respectivo regime simplificado de tributação.
3. Mediante requerimento da impugnante de 25 de Fevereiro de 2003, por despacho de 21 de Julho de 2003 foi-lhe negado o enquadramento naquele regime geral, por não haver optado, nos prazos na lei previstos, por ele.
4. Das declarações da impugnante, para efeitos de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, desde 1998, inclusive, não consta qualquer actividade, tendo sido aceites pela Administração Tributária.
5. Depois de tanto haverem deliberado, por escritura pública de 31 de Março de 2003 os sócios da impugnante procederam à sua dissolução, não havendo bens a partir nem créditos ou dívidas da impugnante, nessa data tendo igualmente apresentado declaração de cessação para efeitos de Imposto sobre o Valor Acrescentado.
6. Em 9 de Setembro de 2004, e com prazo de pagamento findando em 5 de Janeiro de 2005, procedeu a Administração Tributária à elaboração de uma liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, respeitante ao ano de 2003, com o n.º [2004] 2310150279, assente em matéria colectável de € 6.250,05, de que resultou uma dívida de imposto de € 1.400,74, aí se incluindo já juros compensatórios no montante de € 46,98 e juros de mora no valor de € 103,75, a qual notificou à impugnante.
7. Em 2 de Fevereiro de 2005 apresentou a impugnante a petição inicial da presente impugnação.
III – Vem o presente recurso interposto de sentença do Mmo. Juiz do TAF de Coimbra que julgou procedente impugnação judicial deduzida contra liquidação de IRC, efectuada com base no regime simplificado previsto no artigo 53.º do CIRC, com o fundamento de que no período a que se reporta tal tributo a sociedade impugnante, aqui recorrida, esteve inactiva e não obteve rendimento sujeito a imposto.
A convicção do tribunal recorrido seguiu, no essencial, a jurisprudência constante do acórdão deste STA de 4/11/2009, proferido no recurso n.º 553/09, relativamente a um caso idêntico julgado em 1.ª instância no mesmo TAF de Coimbra.
Com efeito, acentua-se no aresto em questão que «A norma cuja interpretação é questionada nos presentes autos – o artigo 53.º n.º 4 do Código do IRC (na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 159/09, de 13 de Julho) – vem sistematicamente incluída na Secção V (Determinação do lucro tributável por métodos indirectos), do Capítulo III (Determinação da matéria colectável) do Código do IRC, respeitante à “quantificação” da obrigação tributária, logicamente subsequente ao Capítulo respeitante à incidência (capítulo I) e ao respeitante às isenções (capítulo II).
A inserção sistemática da norma em causa no capítulo III do CIRC, o respeitante à determinação da matéria colectável, constitui um importante subsídio interpretativo para determinar o alcance da norma questionada. É que desta inserção sistemática resulta que a norma em causa não deve ser interpretada como procedendo a uma extensão da incidência objectiva do imposto, pois que se trata de norma inserida no procedimento de quantificação do imposto a pagar, procedimento este que pressupõe a prévia verificação dos pressupostos (objectivos e subjectivos) do tributo em causa, concretizados nas regras de incidência objectiva e subjectiva que se contêm no Capítulo I do Código.
Ora, dispõe o artigo 1.º do Código do IRC, sob a epígrafe pressuposto do imposto, que tem aqui o sentido de facto constitutivo da respectiva relação jurídica de IRC (cfr. SOARES MARTÍNEZ, Direito Fiscal, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, p. 187), que:
«O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) incide sobre os rendimentos obtidos, mesmo que provenientes de actos ilícitos, no período de tributação, pelos respectivos sujeitos passivos, nos termos deste Código» (sublinhados nossos).
Segue-se a norma relativa à incidência subjectiva (artigo 2.º, Sujeitos passivos), entre os quais se contam as sociedades comerciais com sede ou direcção efectiva em território português (artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do CIRC), cuja base do imposto, de acordo com o artigo 3.º do CIRC, é constituído pelo respectivo lucro, quando exerçam a título principal uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola (cfr. o artigo 3.º, n.º 1, alínea a) do CIRC).
Parece certo, em face das normas de incidência subjectiva do IRC, que a inactividade da empresa não obsta a que esta possa ser sujeito passivo de imposto, pois que mantém a sua existência jurídica não obstante o não exercício do objecto social (embora a personalidade jurídica não seja, sequer, pressuposto da sua potencial sujeição – cfr. a alínea b) do n.º 1, do artigo 2.º do CIRC) e pode ter obtido outros rendimentos tributáveis. Sucede, contudo, que tal só sucederá verificado que seja o pressuposto do imposto, ou seja, que tenha obtido rendimentos, mesmo que provenientes de actos ilícitos (artigo 1.º do CIRC), pois que não basta que possa ser sujeito passivo, necessário é também que se verifique o facto constitutivo da relação jurídica de IRC.
É a esta luz que se há-de interpretar o n.º 4 do artigo 53.º do CIRC, que dispõe, sob a epígrafe regime simplificado de determinação do lucro tributável:
«Na ausência de indicadores de base técnico-científica ou até que estes sejam aprovados, o lucro tributável, sem prejuízo do disposto no n.º 11, é o resultante da aplicação do coeficiente de 0,20 ao valor das vendas de mercadorias e de produtos e do coeficiente de 0,45 ao valor dos restantes proveitos, com exclusão da variação de produção e dos trabalhos para a própria empresa, com o montante mínimo igual ao valor anual do salário mínimo nacional mais elevado».
No caso dos autos, perante a declaração de rendimentos nulos, deve o IRC ser liquidado assumindo-se como lucro tributável o valor correspondente ao valor anual do salário mínimo nacional mais elevado?
Entender que sim, como faz a sentença recorrida, significaria assumir que, no âmbito do regime simplificado, o pressuposto do imposto pode ser ficcionado, pois que não há quaisquer indícios de terem sido obtidos rendimentos pelo sujeito passivo em causa, sendo, aliás, todos os indícios em sentido inverso.
Não nos parece, contudo, ser esse o sentido da norma.
A norma em causa, respeitante à determinação do lucro tributável, só se aplica havendo rendimentos, pois que só havendo rendimentos, ou seja, só verificado que seja o pressuposto do imposto, nasce a respectiva relação jurídica.
Mesmo nesse caso, ou seja havendo rendimentos, o valor mínimo constante da referida norma legal terá de ser entendido como mera presunção de rendimento, e como tal ilidível, ex vi do 73.º da Lei Geral Tributária, cuja regra não parece aplicável apenas as normas de incidência tributária em sentido próprio, mas também a todas as normas que estabelecem ficções que influenciam a determinação da matéria colectável (quer directamente, através de valores ficcionados para a matéria colectável, quer indirectamente, ao fixarem ficcionadamente os valores dos rendimentos relevantes para a sua determinação).
É este, parece, o alcance do advérbio «sempre» utilizado no artigo 73.º da Lei Geral Tributária, que arvora esta regra em princípio basilar da globalidade do ordenamento jurídico tributário, corolário do princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, assente no princípio da capacidade contributiva, como ensina CASALTA NABAIS (O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, Almedina, 1998, pp. 443 e ss.).
Assim, o contrário do que afirma o tribunal “a quo”, a existência de rendimentos tributáveis não é apenas um pressuposto do regime simplificado de tributação, mas da constituição de qualquer relação jurídica de IRC, que se assume, precisamente, como um imposto sobre rendimentos, fundamentalmente reais, e não como um imposto de “porta aberta”.».
Aderindo à fundamentação deste acórdão, aqui se reafirma que não é apenas o elemento sistemático de interpretação que leva a apoiarmos tal orientação nem tão pouco nele se refere que o regime simplificado é inconstitucional.
Só que, contrariamente ao alegado pela recorrente, o facto tributário não consiste na verificação dos pressupostos de inclusão no regime simplificado (o qual mais não é do que um modo específico de determinação da matéria colectável) mas sim na existência de rendimentos tributáveis, pressuposto da constituição de qualquer relação jurídica de IRC, o qual é precisamente um imposto sobre rendimentos.
E se é certo que, como se diz na decisão recorrida, que a inactividade da empresa não afasta a incidência, pois que tal não colide nem com a sua subsistência jurídica, nem com a percepção de outros rendimentos, certo é também que a sujeição a IRC nunca prescinde do pressuposto de rendimentos, que concretizam a possibilidade de sujeição àquele tributo em factos constitutivos da específica relação jurídica tributária.
Daí que a decisão recorrida nenhum reparo nos mereça.
IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em negar provimento ao recurso, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a procuradoria em 1/8.
Lisboa, 2 de Março de 2011. - António Calhau (relator) - Miranda de Pacheco - Valente Torrão.