Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0108/20.6BEMDL
Data do Acordão:05/03/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
COBRANÇA
PORTAGEM
APENSAÇÃO
Sumário:Os procedimentos de contraordenação tributária instaurados por infrações ao disposto no artigo 5.º da Lei n.º 25/2006 de 30 de junho, conducentes ao preenchimento do mesmo tipo de ilícito várias vezes e que não devam constituir uma única contraordenação para os efeitos do n.º 4 do seu artigo 7.º, na redação introduzida pelo artigo 7.º da Lei n.º 51/2015, de 8 de junho, não têm que ser reunidos, por essa razão, num único processo nem a falta da sua apensação integra, nesse caso, uma nulidade processual que conduza à declaração e nulidade ou anulação da decisão a final proferida.
Nº Convencional:JSTA000P30927
Nº do Documento:SA2202305030108/20
Data de Entrada:10/24/2022
Recorrente:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:MINISTÉRIO PÚBLICO E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A REPRESENTAÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, não se conformando com a douta sentença desse Tribunal que anulou a decisão de aplicação de coima proferida pelo Serviço de Finanças de Vila Pouca de Aguiar no processo de contraordenação n.º ...53, em que era arguida A..., LDA., com o número de identificação fiscal ... e com sede – indicada nesse processo – no ..., Edifício ..., ..., ... ..., coima essa no valor de € 3.642,20, dela interpôs o presente recurso jurisdicional.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões: «(…)

1. Por via da sentença sob recurso, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela determinou a anulação da decisão de aplicação de coima;

2. Na situação vertente estamos perante a ocorrência de infrações previstas e punidas nos termos da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho com as alterações introduzidas pela Lei n.º 51/2015, de 8 de junho;

3. As contraordenações praticadas no âmbito do sistema de cobrança eletrónica ou do sistema de cobrança manual de portagens, previstas nos artigos 5.º e 6.º da Lei n.º 25/2006, 30 de junho são objeto de um regime especial de infração continuada, expressamente definido pelo legislador, que impõe a unificação de eventuais infrações numa só, desde que se verifiquem as condições que elegeu para a sua aplicação, a saber, que sejam praticadas pelo mesmo agente, no mesmo dia, através da utilização do mesmo veículo e que ocorram na mesma infraestrutura rodoviária.

4. Aos processos de contraordenação em causa foi aplicado o regime jurídico previsto na Lei n.º 51/2015, de 8 de junho;

5. Como decorre dos elementos junto aos autos, foi fixada uma coima única por cada conjunto de infrações que respeitem à passagem por portagem, pelo mesmo agente, no mesmo dia, através da utilização do mesmo veículo e que ocorram na mesma infraestrutura rodoviária;

6. No caso em análise, estando em causa contraordenações por omissão de pagamento de taxas de portagem, não há lugar à aplicação do instituto jurídico da infração continuada, uma vez que existe um regime legal específico de unificação das infrações.

7. Mais, a falta de aplicação do regime do concurso, previsto no artigo 25.º do RGIT, não constitui um requisito legal da decisão, suscetível de configurar uma nulidade conducente à anulação da decisão, pois sempre seria uma mera nulidade dependente de arguição dos interessados, na fase administrativa, conforme estabelece o artigo 120.º do Código de Processo Penal – aplicável por força do preceituado na alínea b) do artigo 3.º do RGIT e do n.º 1 do artigo 41.º do RGCO.

8. É competência exclusiva da autoridade administrativa, a apreciação e decisão pela existência ou não do concurso de infrações e subsequente aplicação do artigo 25.º do RGIT, na fase administrativa, pressupondo, a montante, a verificação do elemento de conexão entre os processos nos termos do artigo 36.º do RGCO, o que consubstancia um ato exclusivamente administrativo, face ao disposto no artigo 33.º do RGCO, aplicável ex vi artigo 3.º, alínea b) do RGIT.

9. Sem prescindir, na eventualidade do douto tribunal ad quem vir a entender no mesmo sentido da sentença aqui recorrida – conclusão com a qual divergimos e que aqui se coloca por mera hipótese de raciocínio – sempre o douto tribunal a quo deveria, ao abrigo do princípio do aproveitamento dos atos processuais, ter ordenado a baixa dos autos à AT para eventual sanação das irregularidades surpreendidas no ato sancionatório e ulterior renovação do mesmo;

10. No sentido vindo de expor, violou a sentença recorrida as disposições conjugadas do artigo 25.º do RGIT e do artigo 7.º da Lei 25/2006, de 30 de junho3;

11. Nestes termos, e nos demais de direito que serão por Vossas Excelências doutamente supridos, deverá ao presente recurso ser concedido integral provimento, revogada a sentença recorrida e, em substituição, julgado totalmente improcedente o presente recurso de contraordenação, assim se fazendo a já acostumada Justiça.».

Oficiosamente, a secretaria deu cumprimento ao disposto no artigo 411.º n.º 6, do Código de Processo penal (aplicável a coberto do artigo 74.º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações).

O Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, apresentou a sua resposta e concluiu do seguinte modo: «(…)

1.º A douta sentença fundamentou, e diga-se muito bem, a razão pela qual entendeu ser de remeter o processo ao Serviço de Finanças com vista a aferir da existência de cúmulo jurídico ou de infração continuada.

2.º No caso em apreço estão em causa decisões de aplicação de coimas por não pagamento ou pagamento viciado de taxas de portagem em infra-estruturas rodoviárias, p.p. pela Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho.

3.º Sucede que esta lei foi objeto de alteração pela Lei n.º 50/2015, de 8 de Junho que, além do mais, aprovou um regime excepcional de regularização de dívidas resultantes do não pagamento de taxas de portagem e coimas associadas, por utilização de infra-estrutura rodoviária.

4.º Esta Lei repercute-se necessária e inelutavelmente na decisão de aplicação de coima questionada nos autos pelo haverá que oficiosamente ordenar a baixa dos autos à autoridade administrativa para que esta reveja ou renove tal decisão em conformidade com o disposto na Lei n.º 50/2015, de 8 de Junho.

5.º Da mera leitura da douta fundamentação de direito da decisão sub judice, resulta ter a mesma fundada e claramente explicitado a invocada nulidade insuprível, prevista no citado artº. 63º, do RGIT, - al. d), do respetivo nº. 1 -, por não conter/em as decisão/ões administrativas em referência (do processo principal e dos apensos) todos os requisitos legais, especificamente, por das mesmas, apesar de estarem em concurso, não constarem os procedimentos e operações descritos, relativos à realização do cúmulo material, bem como a aferir a existência de eventual contraordenação continuada ou do concurso de contraordenações, aplicando subsequentemente e em conformidade, ou uma única coima ou tantas quantas as contraordenações em concurso, a final materialmente cumuladas numa coima única.

6.º A realização do cúmulo material e a prévia apensação dos processos, mercê do concurso de contraordenações em causa, nos termos explanados na douta decisão em recurso e a necessária consequente indicação, na decisão de aplicação de coima, então da coima única, além do mais, da norma do artº. 25º do RGIT e dos elementos determinantes da conexão/apensação e consequente fixação da coima (única), cabem nas alíneas b) e c) do no. 1 do artº. 79º do RGIT cujos requisitos, face ao exposto e ao contrário do pugnado pela Recorrente não foram integralmente respeitados nas decisões de aplicação de coimas presentes nestes autos.

7.º A sentença recorrida não violou, por conseguinte, qualquer preceito legal e constitucional, antes tendo feito uma correta aplicação do direito aos factos, revelando-se estes corretamente apreendidos, valorados e juridicamente enquadrados, donde resulta que o recurso não merece provimento e, consequentemente, deve aquela sentença ser integralmente mantida.».

Também a Arguida, apresentou a sua resposta, tendo formulado, por seu turno, as seguintes conclusões: «(…)

A. As presentes alegações de recurso não são de colher, pois a AT falha em demonstrar que a douta Sentença está inquinada por erro de julgamento em matéria de direito.

B. O único erro que ora nos ocupa é o presente recurso da AT, porquanto o mesmo resulta de uma leitura descuidada e apressada da Sentença e de um entendimento erróneo do regime aplicável.

C. Contrariamente ao que sustenta a AT, a Sentença recorrida não viola o disposto nos artigos 25.º do RGIT e 7.º da Lei n.º 25/2006.

D. Da douta Sentença recorrida resulta apenas que, tendo a ora Recorrida preenchido mais do que uma vez o mesmo ilícito, e tendo em conta o regime do artigo 7.º da Lei n.º 25/2006, a AT estava obrigada a organizar um único processo (ou ter procedido à apensação dos processos) e proferido apenas uma decisão de aplicação de coima (única) ‒ e não o tendo feito, a AT onerou a ora Recorrida de forma desproporcional, que se viu obrigada a apresentar dezenas de ações judiciais, com todos os custos e encargos que tal implica.

E. Em momento algum a Sentença recorrida refere que os presentes autos não se subsumem ao regime da Lei n.º 25/2006. Antes pelo contrário, o Tribunal a quo faz explicitamente referência ao regime da Lei n.º 25/2006, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 51/2015, e fundamenta o seu entendimento de que a AT deveria ter organizado, também nesta situação, um único processo, precisamente com base em tal regime.

F. A unificação de infrações prevista no artigo 7.º da Lei n.º 51/2015 não exime a AT da obrigação de organizar um único processo, porquanto, nos termos da referida norma, a unificação legal apenas respeita a infrações que sejam praticadas pelo mesmo agente, no mesmo dia, através da utilização do mesmo veículo e que ocorram na mesma infraestrutura rodoviária, sendo que no caso dos presentes autos, está-se perante infrações cometidas vários dias.

G. Sendo que, e conforme resulta dos factos provados, o recurso apresentado pela então recorrente, ora Recorrida, integra-se num lote de dezenas de contraordenações, todas recebidas na mesma semana e por factos idênticos.

H. Pelo que a AT tinha a obrigação de organizar um único processo (ou proceder à apensação dos processos), apreciando a conduta do arguido/ora Recorrida de modo integrado, proferindo apenas uma decisão de aplicação de coima (única), pois só dessa forma poderia a AT ter uma visão de conjunto que a permitiria “aferir se está na presença de uma infracção de carácter continuado, verificando, desde logo, se existiu uma determinação psicológica semelhante no cometimento de cada uma das infracções e se existiu um mesmo quadro externo que diminua consideravelmente a culpa do arguido/Recorrente.”

I. Por outro lado, nada resulta do artigo 7.º da Lei n.º 51/2015 que faça crer que, preenchendo o agente o mesmo ilícito mais do que uma vez, mas em dias diferentes, a AT deva unificar apenas infrações praticadas pelo agente por cada dia, como fez na situação sub judice.

J. Tal interpretação (cega e acrítica) não encontra suporte na lei ‒ e muito menos se coaduna com o espírito e unidade do sistema, que, neste âmbito, visa precisamente a análise de todas as infrações sob uma perspetiva de globalidade, permitindo, por um lado, apurar quais as circunstâncias concretas em que as infrações foram cometidas, para efeitos de uma determinação mais justa da coima a aplicar, e, por outro, não onerar em demasia o arguido, em respeito ao princípio da proporcionalidade, visto que tal pode implicar, na prática e em última análise, uma restrição do direito de acesso à justiça.

K. No que concerne ao segundo argumento da Recorrente, o mesmo mostra-se infundado, dado que em nenhum momento o Tribunal reclamou como sendo competência sua decidir da existência ou não de concurso de infrações, pois, conforme afirma, aos Tribunais “não cabe substituir-se à Administração nas decisões de aplicação coimas, antes escrutinar, se para tal solicitados, se tais decisões são conformes à Lei e ao Direito.”

L. Por outro lado, o Tribunal não anulou a decisão de aplicação de coima efetuada pela AT por falta de aplicação do regime do disposto no artigo 25.º do RGIT.

M. Mais bem, o Tribunal a quo anulou a decisão de aplicação de coima com fundamento em que a AT não organizou um único processo para todas as infrações cometidas pela ora Recorrida, com vista a apurar, sob uma visão global, as circunstâncias em que tais infrações foram cometidas, sendo que a eventual aplicação do regime do artigo 25.º do RGIT pressupõe que esse apuramento prévio tenha sido efetuado e é subsequente ao mesmo.

N. Quanto ao terceiro e último argumento, a baixa dos autos para sanação e renovação do ato sancionatório não se justifica no presente caso, pois a coima não pode ser aplicada à Recorrida, tendo em conta o regime de dispensa da coima.

O. Assim é porque a Lei n.º 7/2021, de 26 de fevereiro, que procede à última alteração do RGIT, prevê um regime da dispensa de coima que estatui que “Não pode ser aplicada coima quando o agente, nos cinco anos anteriores, não tenha sido condenado por decisão transitada em julgado, em processo de contraordenação ou de crime por infrações tributárias” (Cfr. alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do referido diploma), sendo que esta causa de dispensa de coima, quando verificada (o que é o caso), é de observação obrigatória por parte da administração fiscal, sob pena de violação do princípio da legalidade.

P. Tendo a Lei n.º 7/2021, de 26 de fevereiro introduzido um regime de dispensa da coima mais favorável, entende a Recorrida que deve o mesmo ser aplicado in casu, pois em matéria penal, como em matéria contraordenacional, vigora por imperativo constitucional e legal a regra da aplicação retroativa da lei mais favorável ‒ Cfr. artigos 29.º, n.º 4 da CRP, 2.º, n.º 4 do Código Penal e 3.º, n.º 2 do RGCO, aplicável “ex vi” artigo 3.º, alínea b) do RGIT.

Q. Assim, considera a ora Recorrida ‒ salvo melhor entendimento ‒ que ainda que por mera hipótese académica se admitisse que os presentes autos devessem ser objeto de baixa à autoridade administrativa competente para a eventual sanação e renovação do ato sancionatório, certo é que não poderia haver lugar a renovação do ato sancionatório, porquanto a Recorrida não foi, nos cinco anos anteriores, condenada por decisão transitada em julgado, em processo de contraordenação ou de crime por infrações tributárias, ergo não pode ser aplicada a coima à Recorrida, em conformidade com o regime legal atualmente em vigor.

R. Pelo que a baixa dos autos não teria a virtualidade de concretizar a pretensão da AT (logo, inútil), pois esta está obrigada, pelo princípio da legalidade, a aplicar o instituto da dispensa da coima, não podendo haver lugar a sanação e renovação do ato sancionatório em causa.

S. Por todas estas razões, é por demais manifesto que bem decidiu o Tribunal a quo ao julgar procedente o recurso judicial da decisão de aplicação da coima apresentado pela então recorrente, ora Recorrida, devendo tal decisão vertida na douta Sentença ser confirmada, não devendo proceder o presente Recurso, com todas as legais consequências.

T. Assim, e face a todo o exposto, considera a Recorrida ter demonstrado cabalmente que lhe assiste plena razão, sendo, pois, ilegal a manutenção da decisão de aplicação da coima, tal como foi decidido pela douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, devendo esta e as conclusões nela contidas ser mantidas na íntegra.».

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.

Tendo em conta que já tinha sido cumprido o artigo 411.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, foi no mesmo despacho ordenada a subida dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo.

Após recebimento, os autos foram com vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido de que se deve dar provimento ao recurso, revogar o despacho recorrido e determinar a baixa dos autos à primeira instância para nova decisão.

Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir.


***

2. DO JULGAMENTO DE FACTO

Na decisão recorrida foram apurados os seguintes factos:
«(…)

1. Em 8/11/2019 a AT, no proc. ...53, aplicou à Arguida uma coima de 3.565,70€ e custas de 76,50€, e que se relaciona com “Taxa de Portagem” que, subentende-se, não teria sido paga, relativamente a factos que ocorreram de 4/12/2018 a 24/12/2018, referentes aos veículos nela identificados – Cfr. Doc 1 da PI, que aqui se dá por integralmente reproduzido;

2. Em 6/3/2018 a “Via Verde” efectuou acordos com a Recorrente que consistia no pagamento em 12 prestações mensais e sucessivas de taxas de portagens, onde se inclui a que nos autos se discute – Cfr. conclusão 10 da PI; fls. 143 a 146 dos autos;

3. As cartas dirigidas pela concessionária à arguida em 2019, para pagamento das taxas de portagem, nas quais se inclui as dos presentes autos, em consequência do não pagamento integral das prestações acordadas, foram remetidas para a seguinte morada: Rua ..., ..., ... ... – cfr. fls. 162 e 163;

4. Aquela morada (Rua ..., ..., ... ...) foi identificada pela Conservatória do Registo Automóvel como sendo a do titular do documento de identificação dos respectivos veículos – Cfr. fls. 139 a 142;

5. A Arguida tem sede no ..., Ed. ..., ..., Freguesia ..., ... ... – cfr. 91, 92, 122 e 118;

6. O presente recurso integra-se num lote de dezenas de contra-ordenações, todas recebidas na mesma semana e por factos idênticos, a cada qual correspondendo uma coima aplicada e respectivas custas – doc 3 da PI;

7. Até ao dia 12/2/2020 a Arguida procedeu ao pagamento da taxa de portagem e respectivas custas em causa– Fls. 141 a 146».


***

3. O DIREITO

A questão fundamental a decidir é a de saber se o tribunal de primeira instância incorreu em erro de julgamento ao anular a decisão de aplicação de coima por não ter sido precedida da apensação de outros processos de contraordenação, referidos no ponto 6 dos factos provados.

Esta questão pode ser analisada em dois planos: no de saber se os processos deveriam ter sido apensados e no de saber se a anulação da decisão é a consequência da falta de apensação.

Tem precedência lógica o primeiro, porque só faz sentido indagar das consequências da falta de apensação depois de se concluir que os processos deveriam ter sido apensados.

Analisemos, então o problema de saber quando é que os processos de contraordenação tributária devem ser apensados.

Nem o Regime Geral das Infrações Tributárias (“RGIT”) nem o Regime Geral das Contraordenações (“RGCO”) contêm uma disposição que preveja os casos de apensação de processos de contraordenação e o respetivo regime, pelo que haverá que recorrer à legislação subsidiária que, no caso, é o Código de Processo Penal (“CPP”) – artigo 41.º do RGCO.

De acordo com o artigo 29.º do CPP, deve proceder-se à apensação de processos quando se reconheça que entre eles existe uma conexão nos termos da lei processual (conexão processual).

Isto sucede porque – como decorre do seu enquadramento sistemático – o instituto de apensação serve fundamentalmente, e no plano processual, para resolver problemas de competência por conexão.

Mas se analisarmos genericamente as situações previstas nas diversas alíneas do n.º 1 do seu artigo 24.º, verificamos que o legislador relevou como elementos de conexão processual certos indicadores de conexão material entre as infrações imputadas nesses processos.

Isto sucede porque, no plano substantivo, o instituto da apensação também serve para prevenir a necessidade de resolução, a final, de problemas relacionados com o concurso de infrações.

Haverá conexão processual, em primeiro lugar, quando uma pluralidade de infrações for imputada ao mesmo agente através da mesma ação ou omissão e existirem outros elementos que sugerem um nexo de relação entre as infrações, como o facto de terem sido praticadas na mesa ocasião (conexão temporal) ou no mesmo lugar (conexão espacial) ou umas serem causa ou efeito das outras (conexão causal) ou ainda umas sejam destinadas a continuar ou ocultar as outras (conexão de fins). Fala-se, a este propósito, em conexão subjetiva, porque o fator preponderante da conexão é o sujeito processual.

Haverá conexão processual, em segundo lugar, quando uma mesma infração ou várias infrações forem imputadas a uma pluralidade de agentes e existirem outros elementos que sugerem um nexo de relação entre as infrações, como a comparticipação (conexão de fins) a reciprocidade (conexão causal) ou o facto de terem sido praticadas na mesa ocasião (conexão temporal) ou no mesmo lugar (conexão espacial). Fala-se, a este propósito, em conexão objetiva, porque o fator determinante da conexão é o objeto do processo.

No caso dos autos, foi entendido que os processos deveriam ser apensados porque a mesma arguida, «com a sua conduta, teria preenchido o mesmo ilícito mais do que uma vez» [pág. 10 da decisão recorrida].

É notório que, ao referir-se à «conduta» da arguida o Mm.º Juiz a quo tinha em vista a atividade delitual globalmente considerada, isto é, o conjunto de atos que lhe são imputados nos diversos procedimentos contraordenacionais.

É também manifesto que, ao referir-se ao «preenchimento do mesmo ilícito mais do que uma vez», o Mm.º Juiz a quo pretendeu dizer que os atos imputados à arguida configuram o preenchimento do mesmo tipo de ilícito várias vezes.

Assim, o Mm.º Juiz a quo considerou que o Serviço de Finanças deveria ter organizado um só processo (ou, pelo menos, procedido à apensação de processos) porque o mesmo agente incorreu em vários ilícitos contraordenacionais que são enquadráveis no mesmo tipo de ilícito (identidade típica).

Ora, a identidade de tipos legais de ilícitos não integra os elementos de conexão relevados pelo legislador para efeitos processuais e para efeitos de apensação de processos em particular.

E, mesmo que assim não fosse entendido, a conexão processual pressupõe a conjunção e outros elementos que sugerem um nexo de relação entre as infrações (acima referidos) e que no caso, não foram sequer invocados.

Assim sendo, não havia fundamento para imputar à administração a violação da lei processual que determina a apensação de processos, ao menos por aqui.

Acrescenta, no entanto, o Mm.º Juiz a quo que a imputação ao Serviço de Finanças do dever de proceder à apensação de processos nestas circunstâncias está de acordo com a jurisprudência firmada em dois acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo que cita e transcreve parcialmente (acórdãos proferidos em 2015 e tirados nos processos n.ºs 0766/15 e 01042/15).

Há que contrapor desde já que esses dois acórdãos trataram de uma situação específica e que não tem paralelo com o caso dos autos. E que, de qualquer modo, está a montante da questão da apensação.

Com efeito, esses acórdãos apreciaram oficiosamente a questão (prévia) de saber quais as consequências da entrada em vigor da Lei n.º 50/2015, de 8 de junho, sobre decisões de aplicação de coimas por não pagamento de taxas de portagem, tiradas ao abrigo da lei anterior. Ou seja, esses acórdãos pronunciaram-se sobre o problema de saber se o novo regime legal era mais favorável e se, em consequência, deveria ser aplicado retroativamente.

Esse problema não se coloca no caso dos autos, porque todas as infrações em causa nos autos foram praticadas em plena vigência da lei nova. Não se colocando, por isso, nenhum problema de sucessão de leis no tempo, da determinação da lei mais favorável e das suas consequências no plano processual e da apensação em particular.

Por outro lado, esses acórdãos consideraram, além do mais, o facto de a lei nova ter procedido à unificação legal das infrações previstas naquela lei praticadas pelo mesmo agente, no mesmo dia, através da utilização do mesmo veículo e que ocorram na mesma infraestrutura rodoviária.

Ora, esse problema está a montante da questão da apensação porque não conduz a situações em que deve haver conjunção de processos decorrentes da conexão de delitos, mas a situações em que se constata que há um único delito e que, por isso, só deve existir um processo.

O instituto da apensação serviu ali, não como mecanismo de associação de processos, mas como mecanismo de resolução de uma situação – em si mesma anómala – em que o mesmo delito gerou mais do que um processo.

Ou seja: o instituto da apensação foi ali convocado para resolver um problema que não constitui a finalidade normal da apensação, mas que se justifica nessas situações por maioria de razão, tendo em conta as finalidades com que foi instituído.

Do exposto deriva que os referidos arestos, por terem tratado de uma situação que não tem nenhum paralelo com a situação dos autos, também não são adequados para fundamentar a decisão recorrida.

O mesmo se diga dos acórdãos aditados pela Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, na sua resposta (acórdãos de 21 de outubro de 2015 e de 10 de outubro de 2018, tirados nos processos 0983/15 e 0356/15, respetivamente).

Quanto aos restantes acórdãos também referidos pela primeira instância (acórdãos de 30 de março de 2011, processo n.º 0757/10 e de 21 de janeiro de 2009, processo n.º 0928/08), também não têm relação com o caso dos autos.

Para além de não estarem ali em causa coimas aplicadas por não pagamento de taxas de portagem, esses acórdãos analisaram as implicações da alteração do artigo 25.º do Regime Geral das Infrações Tributárias pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, que fez suceder à anterior regra do cúmulo material das coimas aplicáveis a regra do cúmulo jurídico. Regra que nas decisões ali recorridas foi considerada mais favorável ao arguido.

Também ali, por isso, o instituto da apensação foi utilizado como meio para assegurar ao arguido um tratamento mais favorável. Problema que também não se coloca no caso, já que todas as infrações foram praticadas já depois de ter sido, novamente, alterada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de dezembro, repondo o regime do cúmulo material.

Sendo que, como já foi entretanto decidido, a lei não impõe a apensação de processos de contraordenação para assegurar o cúmulo material de sanções nos termos do artigo 25.º do RGIT (redação atual) nem, por conseguinte, a falta de apensação integra uma nulidade processual que conduza à declaração e nulidade ou anulação da decisão a final proferida – cfr., por todos, o acórdão deste Supremo Tribunal de 17 de junho de 2015, processo n.º 0369/15.

Na parte final da douta sentença, o Mm.º Juiz a quo adiciona um último argumento em favor da apensação, discorrendo que só assim é que a entidade competente está em condições de aferir se esta em presença de uma infração de caráter continuado.

No entanto, e como também já foi decidido por este Supremo Tribunal, face ao aditamento ao artigo 7.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de Junho os seus (novos) números 4 e 5, pela Lei n.º 51/2015, de 8 de Junho, não existe fundamento legal para que seja aplicado às infrações tributárias previstas na mesma Lei do regime legal da infração continuada previsto na lei geral (neste sentido, podem ver-se os recentes acórdãos de 12 de maio de 2021 e de 7 de dezembro de 2022, tirados nos processos 0356/19.1BEMDL e 0201/18.5BEVIS, e restante jurisprudência ali citada).

De todos os exposto deriva que a decisão recorrida não pode manter-se e deve ser revogada.


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4. CONCLUSÃO

Os procedimentos de contraordenação tributária instaurados por infrações ao disposto no artigo 5.º da Lei n.º 25/2006 de 30 de junho, conducentes ao preenchimento do mesmo tipo de ilícito várias vezes e que não devam constituir uma única contraordenação para os efeitos do n.º 4 do seu artigo 7.º, na redação introduzida pelo artigo 7.º da Lei n.º 51/2015, de 8 de junho, não têm que ser reunidos, por essa razão, num único processo nem a falta da sua apensação integra, nesse caso, uma nulidade processual que conduza à declaração e nulidade ou anulação da decisão a final proferida.


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5. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e ordenar a devolução os autos à primeira instância para conhecimento da última questão suscitada no recurso da decisão administrativa de aplicação de coima e se nada mais a tal obstar.

Sem custas.

Lisboa, 3 de maio de 2023. - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Isabel Cristina Mota Marques da Silva.