Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0154/19.2BCLSB
Data do Acordão:06/04/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
TRIBUNAL ARBITRAL
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
LIBERDADE DE IMPRENSA
Sumário:I – Preenche o tipo de infração disciplinar previsto e punido nos artigos 19.º e 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP) a publicação de um artigo, na imprensa privada de um clube de futebol, onde se afirma que os árbitros atuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso.
II – Aquelas normas não restringem desproporcionalmente a liberdade de expressão e de informação garantidas pelo artigo 37.º da CRP, que neste caso cedem para assegurar a salvaguarda de outros direitos e valores constitucionais, nomeadamente os direitos de personalidade inerentes à honra e à reputação dos árbitros (artigo 26º/1 da CRP), e a prevenção da violência no desporto (artigo 79.º/2 da CRP).
Nº Convencional:JSTA000P26032
Nº do Documento:SA1202006040154/19
Data de Entrada:05/04/2020
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:SPORT LISBOA E BENFICA - FUTEBOL, SAD.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: I. Relatório

1. FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL - identificada nos autos – recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), de 16 de janeiro de 2020, que confirmou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), de 4 de novembro de 2019, que suprimiu a pena de multa, no valor de 22.950,00 €, aplicada à SPORT LISBOA E BENFICA – FUTEBOL, SAD, ora recorrida, pelo Acórdão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), de 16 de abril de 2019.

Nas suas alegações formulou, com relevo para a decisão de mérito, as seguintes conclusões:
« (…)
10. O bem jurídico a proteger no âmbito disciplinar é distinto daquele que se visa proteger no âmbito penal, ainda que existam normas punitivas semelhantes, por vezes coincidentes, que possam induzir o aplicador em erro. Deste modo, a análise subjacente num e noutro caso tem, também, de ser muito distinto.
11. A afirmação de que a responsabilidade disciplinar é independente e autónoma da responsabilidade penal está, desde logo, presente na Lei e nos Regulamentos Federativos.
12. Assim, quando analisado o artigo 112.º do RD da LPFP é possível vislumbrar, em abstrato, indícios do ilícito penal correspondente à injúria ou difamação.
13. Por outro lado, não se pode olvidar que a Recorrida tem deveres concretos que tem de respeitar e que resultam de normas que não pode ignorar.
14. A Recorrida tem, nomeadamente, o dever de “manter uma conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva” (artigo 19.º, n.º 1, do RDLPFP19); e de “manter comportamento de urbanidade e correção entre si, bem como para com os representantes da Liga Portugal e da FPF, os árbitros e árbitros assistentes.” (artigo 51.º, n.º 1 do Regulamento de Competições da LPFP).
15. Naturalmente que as sociedades desportivas, clubes e agentes desportivos não estão impedidos de exprimir publica e abertamente o que pensam e sentem. Contudo, os mesmos estão adstritos a deveres de respeito e correção que os próprios aceitaram determinar e acatar mediante aprovação do RD e RC da LPFP.
16. Quando uma entidade, qualquer que seja, aceita aderir a determinada associação ou grupo organizado, aceita também as suas regras, deontológicas, disciplinares, sancionatórias, etc..
17. Com efeito, para que a Recorrida, ou qualquer outra sociedade desportiva, seja condenada pela prática do ilícito disciplinar previsto no artigo 112.º é essencial indagar se as declarações respetivas violam, pelo menos, um dos bens jurídicos visados pela norma disciplinar: a honra e bom nome dos visados ou a verdade e a integridade da competição, particularmente evidenciados pela imparcialidade e isenção dos desempenhos dos elementos das equipas de arbitragem.
18. Ao contrário daquilo que entende o TCA, não estamos, obviamente, perante a prática de um ilícito disciplinar que pretende, exclusivamente, proteger a honra e o bom nome dos árbitros visados, nem muito menos perante uma questão que deva ser analisada da perspetiva do direito penal.
19. Em suma, o Acórdão recorrido erra ao analisar a questão sub judice sob a perspetiva do direito penal e não da perspetiva do direito disciplinar, pelo que se impõe que este Supremo Tribunal proceda a uma correta aplicação do direito ao caso.
20. Ademais, a questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto este tipo de casos são cada vez mais frequentes, o que é facto público e notório.
21. O TCA entendeu, no seu aresto, que o conteúdo das publicações em causa não tem qualquer relevância disciplinar pois não configura uma lesão da honra e reputação dos órgãos ou equipas de arbitragem, mas sempre tendo por referência às normas penais que sancionam condutas típicas dos crimes de injúria ou difamação.
22. E é aí que reside o grande equívoco dos Exmos. Senhores Desembargadores. Com efeito, a questão deve ser colocada, como acima se referiu, no âmbito da apreciação no campo disciplinar e não no campo do direito penal, autónomo e distinto deste.
23. Conforme já deixámos bem patente na parte inicial deste recurso, o valor protegido pelo ilícito disciplinar em causa, à semelhança do que é previsto nos artigos. 180.º e 181.º, do Código Penal, é o direito “ao bom nome e reputação”, cuja tutela é assegurada, desde logo, pelo artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, mas que visa em primeira linha, e ao mesmo tempo, a proteção das competições desportivas, da ética e do fair play.
24. A nível disciplinar, como é o caso, os valores protegidos com esta norma (112.º do RD da LPFP), são, em primeira linha, os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade e, de forma mediata, o direito ao bom nome e reputação dos visados, mas sempre na perspetiva da defesa da competição desportiva em que se inserem.
25. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva.
26. A Recorrida sabia ser o conteúdo dos textos publicados adequado a prejudicar a honra e reputação devida aos demais agentes desportivos, na medida em que tais declarações indiciam uma atuação do árbitro a que não presidiram critérios de isenção, objetividade e imparcialidade, antes colocando assim e intencionalmente em causa o seu bom nome e reputação.
27. É que dizer, na newsletter oficial da Sociedade Desportiva, …….., com o título “Por uma Liga com verdade desportiva”, por exemplo, que “desta vez existe um clube que tem beneficiado sistematicamente de erros a seu favor” ou “Ao nível do VAR, assistiram-se inclusive às mais incríveis decisões, onde mesmo com a ajuda de diversos ângulos e imagens, houve quem não visse o que toda a gente viu. Esperamos que, na segunda volta, esta dualidade de critérios e proteção absurda a um clube termine para que todos estejam em igualdade de circunstâncias e assim, com verdade desportiva, possam lutar pelos seus objetivos” está longe de ter uma base factual, sendo, pelo contrário, a imputação de um juízo pejorativo não só ao desempenho da equipa de arbitragem mas às suas próprias características, colocando deste modo em causa a própria integridade da competição.
28. Para além de imputar a tal equipa de arbitragem a prática de atos ilegais, encerram em si um juízo de valor sobre os próprios árbitros que, face às exigências e visibilidade das funções que estes desempenham no jogo, colocam em causa a sua honra, pelo menos, aos olhos da comunidade desportiva.
29. Assim, não podemos deixar de considerar que se é legítimo o direito de crítica da Recorrida à atuação dos árbitros, já a imputação desonrosa não o é, e aquelas publicações usaram esse tipo de imputação sem que se revele a respetiva necessidade e proporcionalidade para o fim visado.
30. Não se nega que expressões como a usada pela Recorrida são corriqueiramente usadas no meio desporto em geral e do futebol em particular.
31. Porém, já não se pode concordar que por serem corriqueiramente usadas não são suscetíveis de afetar a honra e dignidade de quem quer que seja ou de afetar negativamente a competição, ademais quando nos referimos a uma suspeita de falta de isenção por parte de agentes de arbitragem, uma vez que tais afirmações têm intrinsecamente a acusação ou pelo menos a insinuação de que eventuais erros dos árbitros são intencionais. Deste modo, vão muito para além da crítica ao desempenho profissional do agente.
32. O futebol não está numa redoma de vidro, dentro da qual tudo pode ser dito sem que haja qualquer consequência disciplinar, ao abrigo do famigerado direito à liberdade de expressão, muito menos se pode admitir que o facto de tal linguarejo ser comum torne impunes quem o utilize e que retire relevância disciplinar a tal conduta.
33. Ao decidir da forma que fez, o Tribunal a quo violou o artigo 112.º do Regulamento Disciplinar da LPFP, pelo que deve ser a revista admitida e o Acórdão recorrido revogado, tendo em vista uma melhor aplicação do direito.»

2. A Recorrida contra-alegou, concluindo, no que ao mérito da causa diz respeito, que:
« (…)
3. A Recorrida agiu ao abrigo e dentro das margens do exercício da liberdade de expressão.
4. A Recorrente confunde conceitos jurídicos com vista a legitimar um interesse superior que lhe permita punir a seu bel prazer
5. A conduta punitiva da Recorrente corresponde a uma verdadeira censura do pensamento.
6. Foi a imprensa quem primeiro chamou à colação os factos em causa nos Autos, sendo legítimo à Recorrida que sobre eles tenha uma opinião e, bem assim, que a exprima.
7. A Recorrente pretende criar um estado de polícia, em que controla tudo e todos e apenas se admitem opiniões concordantes, nomeadamente, sobre as suas próprias condutas.
8. Os Árbitros e a própria Recorrente não são imunes ao erro (e a Decisão proferida pelo Conselho de Disciplina é exemplo bastante disso), sendo legítimo aos agentes desportivos opinar sobre esses erros, criticando-os e evidenciando-os para que não se repitam.
9. A Recorrente não deu cumprimento aos ónus que impendem sobre o Recorrente que impugne a matéria de facto, designadamente, a indicar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”
10. Não assiste qualquer razão ao Recurso interposto pela Recorrente.»

3. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 2 de Abril de 2020, por um lado, porque a decisão recorrida se afasta de outra proferida por esta mesma Secção no âmbito do Processo n.º 66/18.7BCLSB e, por outro, porque «(...) a questão colocada no recurso é relevante; pois importa saber até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas disciplinares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim induzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve».

4. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, pois em sua opinião, e em síntese, «mesmo num ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva e bem assim do combate a manifestações de violência associada ao desporto, não pode comprimir-se o direito à liberdade de expressão de tal forma que o mesmo se anule ou não possa ser exercido.»

5. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos do n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro, e do n.º 2 do artigo 36.º do CPTA.

II. Matéria de facto

O TAD deu como provados os seguintes factos:
«A. No dia 14 de janeiro de 2019. foi publicado um texto no jornal eletrónico "……" (Edição n.º ….). com o seguinte teor:
"Por uma Liga com verdade desportiva O balanço da primeira volta da Liga 2018/19 fica marcado por um conjunto de erros de arbitragem de uma dimensão que há muitos anos não se via.
Muitos deles inexplicáveis e incompreensíveis.
O que habitualmente se verifica é que, entre eventuais benefícios e perdas, acaba por haver um equilíbrio no final das contas, entre equipas que lutam pelos mesmos objetivos.
Na atual temporada isso não acontece.
Pelo contrário: desta vez existe um clube que tem beneficiado sistematicamente de erros a seu favor.
Situação reconhecida pela esmagadora maioria dos analistas e que coloca em causa a verdade desportiva desta competição.
Outra evidência é que, no confronto direto entre os principais candidatos ao título, não se tem afirmado a superioridade de quem surge destacado na liderança.
Bem pelo contrário.
Trata-se, pois, de uma liderança muito alicerçada em erros sucessivos em momentos decisivos de jogos, a que não será alheio todo o clima de pressão, ameaças e coação dirigidos a diferentes agentes desportivos.
Neste quadro, mais se torna urgente que, de forma transparente, se faça um balanço e se tornem públicos os 9 erros que recentemente foram assumidos.
Ao nível do VAR, assistiram-se inclusive às mais incríveis decisões, onde mesmo com a ajuda de diversos ângulos e imagens, houve quem não visse o que toda a gente viu.
Esperamos que, na segunda volta, esta dualidade de critérios e proteção absurda a um clube termine para que todos estejam em igualdade de circunstâncias e assim, com verdade desportiva, possam lutar pelos seus objetivos.
O Sport Lisboa e Benfica também assume os seus erros quando eles existem.
E não nos custa reconhecer o mérito dos adversários.
Demonstrámos isso mesmo já esta época, nos jogos que não conseguimos vencer.
PS:
O Benfica voltou a vencer a Taça da Liga de Futsal, derrotando o Sp. Braga, na final, por 3-0.
A equipa de ……… repete o título conquistado na época passada e confirma assim o excelente momento que atravessa e que atinge expressão máxima nas 16 vitórias conseguidas em 16 jornadas da Liga …..".
B. O jornal eletrónico "……" é uma publicação (uma "Newsletter") disponibilizada gratuitamente através do site oficial da Demandante / SLB e visa, essencialmente, informar os seus adeptos.
C. O texto intitulado "Por uma Liga com verdade desportiva" foi publicado nesse jornal eletrónico após diversas notícias e comentários desportivos que aludiam a possíveis erros de arbitragem e denunciavam casos concretos de intimidação sobre agentes desportivos, em particular árbitros.»



III. Matéria de Direito

5. A questão que se discute neste recurso é a de saber o texto publicado pela Recorrida no seu jornal eletrónico “…….” preenche o tipo de infração disciplinar previsto e punido no n.º 1 do artigo 112.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).
Tem, por isso, razão a Recorrente quando afirma que, independentemente da relevância penal que a conduta da Recorrida possa ter, que é autónoma, e que não cabe neste âmbito apreciar, a sua responsabilidade disciplinar não depende do preenchimento dos tipos legais de crime de difamação ou de injúria, mas apenas da violação dos deveres gerais ou especiais a que a mesma está adstrita no âmbito dos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável à realização das competições desportivas em que participa – v. artigo 17.º/2 do RDLPFP.
E esses deveres resultam, exclusivamente, da conjugação dos artigos 19.º e 112.º do citado RDLPFP, não sendo necessário o recurso ao Código Penal para preencher o respetivo tipo disciplinar.
No n.º 1 do artigo 19.º do regulamento disciplinar em questão, se estabelece que todos os clubes e agentes desportivos que, a qualquer título ou por qualquer motivo, exerçam funções ou desempenhem a sua atividade no âmbito das competições organizadas pela Liga Portugal, «devem manter conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva, económica ou social». E, de forma muito expressiva, no n.º 2 da mesma disposição regulamentar se inibe aqueles mesmos sujeitos de «exprimir publicamente juízos ou afirmações lesivos da reputação de pessoas singulares ou coletivas ou dos órgãos intervenientes nas competições organizadas pela Liga».
É no quadro desses deveres gerais de lealdade, probidade, verdade e retidão, e da proibição expressa de publicitação de juízos ou afirmações lesivos da reputação de todos aqueles que intervenham nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, que o n.º 1 do artigo 112.º do RDLPFP comina com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC, o uso «de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos».
A questão em discussão nos autos resume-se, pois, em determinar se os factos dados como provados pelas instâncias se subsumem às citadas previsões normativas do RDLPFP.

6.. Este Tribunal não tem dúvidas de que o texto publicado na edição n.º ….. do jornal eletrónico "……" é lesivo da reputação dos árbitros que arbitraram as partidas da primeira volta da Liga Portugal que nele são objeto de análise, nomeadamente quando nele se lança a suspeição de que os apontados erros de arbitragem prejudiciais à Recorrida foram cometidos com a intenção de beneficiar o seu clube rival.
Ao insinuar que esses erros ocorreram sempre «em momentos decisivos de jogos», ou que «houve quem não visse o que toda a gente viu», mas sobretudo, ao afirmar que os erros apontados não foram alheios ao «clima de pressão, ameaças e coação dirigidos a diferentes agentes desportivos», e que os mesmos consubstanciaram uma «dualidade de critérios e proteção absurda a um clube», o texto publicado naquela newsletter não se limitou a enunciar factos objetivos, ou a exprimir opiniões acerca da sua qualificação à luz das regras do jogo, atentando diretamente contra o bom nome e reputação dos árbitros envolvidos.
O texto não se limitou, pois, a apontar «erros de apreciação» aos árbitros, na medida em que afirma que os mesmos atuaram com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. Na verdade, ao afirmar que os árbitros não arbitraram aquelas partidas de acordo com os critérios de isenção, objetividade e imparcialidade a que estão adstritos, o texto insinua que os mesmos foram corrompidos pelo clube rival, colocando assim deliberadamente em causa o seu bom nome e reputação.
Este Tribunal já se pronunciou no mesmo sentido que aqui é defendido, no seu Acórdão de 26 de fevereiro de 2019, proferido no Processo n.º 066/18.7BCLSB, onde, numa situação análoga à dos autos, se afirmou, além do mais, que tais imputações «atingem não só os árbitros envolvidos, como assumem potencialidade para gerar um crescente desrespeito pela arbitragem e, em geral, pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem e disciplinam o futebol em Portugal, sendo o sancionamento dos comportamentos injuriosos, difamatórios ou grosseiros necessário para a prevenção da violência no desporto, já que tais imputações potenciam comportamentos violentos, pondo em causa a ética desportiva que é o bem jurídico protegido pelas normas em causa».
Andou, por isso, mal o tribunal a quo ao considerar que os factos provados «inviabilizam completamente qualquer hipótese de subsunção normativa na previsão do ilícito disciplinar de difamação nos termos do artigo 112.º 1 RGLFP».

7. O acórdão recorrido, na linha do que decidiu o Tribunal Arbitral do Desporto, assentou a sua conclusão na liberdade de expressão e de informação garantida pelo artigo 37.º da Constituição, afirmando que «considerar juridicamente difamatório o comportamento de alguém que imputa a outrem o cometimento de erros de apreciação, seja em que domínio for, no caso dos autos, erros de arbitragem, equivale a proibir as pessoas de falar, constranger as pessoas no sentido de se guardarem de expressar o seu pensamento e se autocensurarem».
O texto publicado no jornal eletrónico da Recorrida, como vimos, não se limitou a apontar erros de apreciação, ou de arbitragem, na medida em que acusou os árbitros de terem atuado com a intenção deliberada de errar e de favorecer a equipa adversária, imputando-lhes um comportamento ilícito e, por isso mesmo, desonroso. E como se afirmou a propósito do abuso de liberdade de imprensa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de dezembro de 2002, proferido na Revista n.º 3553/02, da 7.ª Secção, «o simples facto de se atribuir a alguém uma conduta contrária e oposta àquela que o sentimento da generalidade das pessoas exige do homem medianamente leal e honrado, é atentar contra o seu bom nome, reputação e integridade moral».
Naturalmente, a liberdade de expressão e de informação não protege tais imputações, quando as mesmas não consubstanciem factos provados em juízo, ou objetivamente verificáveis, pois aquelas liberdades não são absolutas e tem de sofrer as restrições necessárias à salvaguarda de outros direitos fundamentais, como são os direitos de personalidade inerentes à honra e reputação das pessoas, garantidos pelo n.º 1 do artigo 26º da Constituição.
O disposto nos artigos 19.º e 112.º do RDLPFP não é, por isso inconstitucional, nem os mesmos podem ser interpretados no sentido de que a liberdade de expressão e de informação se sobrepõe à honra e à reputação de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, nomeadamente a dos respetivos árbitros, tanto mais que não está em causa a liberdade de expressão e de informação de órgãos de comunicação social independentes, mas da imprensa privada do próprio clube – cfr. artigo 112.º/4 do RDLPFP.
Acresce ainda, na linha do que se decidiu no Acórdão desta Secção, de 26 de fevereiro de 2019, atrás citado, que o respeito estrito pelos deveres de lealdade, probidade, verdade e retidão inerentes ao regime disciplinar estabelecido pelas normas em apreciação é indispensável à prevenção da violência no desporto, que é também um valor constitucional legitimador da compressão da liberdade de expressão e de informação dos clubes desportivos, nos termos do n.º 2 do artigo 79.º da CRP. O que nos permite responder afirmativamente à questão colocada no Acórdão Preliminar proferido neste autos, sobre «(...) até que ponto se pode disciplinarmente reagir – com base em normas disciplinares, aliás similares às do estrangeiro – contra declarações dos clubes que, para além de excitarem anormalmente os ânimos dos seus adeptos e assim induzirem comportamentos rudes, contribuam para o descrédito das competições desportivas e do negócio que as envolve». Não só se pode, como se deve reagir sempre que os clubes extravasem o âmbito estrito da mera informação ou opinião, e ofendam a honra e a reputação dos árbitros e de todos aqueles que intervém nas competições desportivas organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, conclui-se que a sanção disciplinar foi bem aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF, devendo por isso a mesma manter-se, contra o que foi decidido pelas instâncias.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em conceder provimento ao recurso e, em consequência, em revogar a decisão recorrida e o Acórdão do TAD por ela mantido, confirmando-se assim o Acórdão da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, de 16 de abril de 2019, que aplicou à Sport Lisboa e Benfica - Futebol, SAD a pena disciplinar de multa, no valor de 22.950,00 €.


Custas pela recorrida. Notifique-se


Lisboa, 4 de junho de 2020. – Cláudio Ramos Monteiro (relator) – Carlos Carvalho – Maria Benedita Urbano.