Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0654/20.1BEALM
Data do Acordão:06/23/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
IVA
Sumário:I - A referência a “imposto legalmente repercutido a terceiros”, constante do n.º 2 do art. 196.º do CPPT, para efeitos de pagamento em prestações previsto nessa norma, inclui o IVA (cfr. art. 37.º do respectivo Código), nos casos em que o imposto em dívida foi efectivamente repercutido a terceiros (e já não naqueles em que o imposto liquidado e não entregue não foi repercutido).
II - Não é de dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça se a Administração Tributária insiste em recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo para que sejam apreciadas questões sobre as quais já se debruçaram vários acórdãos deste mesmo Supremo Tribunal sempre no mesmo sentido.
Nº Convencional:JSTA00071183
Nº do Documento:SA2202106230654/20
Data de Entrada:05/19/2021
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:SENTENÇA DO TAF DE ALMADA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:IVA
Legislação Nacional:ARTIGO 197º, N.º 2 DO CPPT
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:


O representante da Fazenda Pública, tendo sido notificado, pelo ofício com a referência 005818982, de 12.02.2021, da sentença com data de 10.02.2021, proferida nos presentes autos vem, nos termos do disposto nos art.º 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), e no prazo concedido pelo art.º 283.º do mesmo diploma, na redação conferida pelo art.º 3.º da Lei n.º 118/2017, de 17.09, requerer a V.ª Ex.ª se digne admitir o presente RECURSO, para o Supremo Tribunal Administrativo.

Terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. Com todo o respeito devido, entende-se que a Douta Sentença fez errada aplicação do regime jurídico aos factos dados como provados, vindo assentar a sua decisão final num duplo argumento interpretativo: argumento literal e argumento teleológico, mas nenhum deles apto a concluir como concluiu;
II. Em interpretação do disposto no n.º 2 do art.º 196.º do CPPT, e quanto ao elemento literal, defende o Tribunal “a quo” que, «caso a intenção do legislador fosse a de referir-se ao imposto susceptível de repercussão legal, por certo teria optado uma expressão verbal que melhor traduzisse essa intenção [cfr. art. 9.º, n.º 3, do Código Civil (CC)]: v.g., «o imposto legalmente repercutível», «o imposto cuja repercussão esteja legalmente prevista» ou «outra de sentido equivalente.»;
III. Veja-se, porém, que o legislador começa por referir “imposto retido na fonte”, para de seguida utilizar a expressão “legalmente repercutido a terceiros”.
Assim, na mesma frase, utiliza o legislador duas diferentes expressões. Para a retenção na fonte “o imposto retido”. Para a repercussão do imposto, imposto “legalmente repercutido a terceiros”, e não o “imposto repercutido”. Pelo n.º 3 do art. 9.º do CC, ao qual a Sentença recorrida faz menção, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
IV. E não existem quaisquer dúvidas que o IVA é imposto legalmente repercutido, o que resulta logo do disposto no art.º 37.º do CIVA, sendo a repercussão intrínseca ao funcionamento do mesmo;
V. Ao procurar o aplicador da Lei unir onde o legislador intencionalmente distinguiu, está necessariamente a fazer incorreta aplicação da norma. Teria feito uma correta análise do elemento literal caso o que estivesse inscrito na letra da norma fosse: “o imposto retido na fonte ou repercutido a terceiros”.
Mas não é isso que lá está. Não remete, o legislador, para a efetiva repercussão (já o faz para a retenção), mas antes para o imposto em que existe repercussão legalmente fixada, pelo que, independentemente de ter existido no caso;
VI. No mesmo erro interpretativo caiu o Tribunal quanto ao elemento teleológico quando, partindo de uma análise que se mostrou não ter adesão na letra da Lei vai procurar reforçar a conclusão a que chegou: «o que se pretende impedir é que o devedor do imposto que já o recebeu de terceiro, seja porque o repercutiu seja porque o reteve, se aproprie do respectivo montante, não o entregando de uma só vez e integralmente nos cofres do Estado, conduta que tem associado um desvalor que a lei pune como crime ou contra-ordenação [cfr. arts. 105.º e 114.º (RGIT)];
VII. Com efeito, a Lei atribui tanto ou maior desvalor às situações em que existiu liquidação, dedução, repercussão, como nas situações em que nenhuma destas realidades se verificou. É assim porque também nos casos em que, não existindo liquidação, pelo que não há efetiva repercussão, estamos diante de uma ação tipificada quer criminal, quer contraordenacionalmente. Veja-se, por exemplo, o disposto no n.º 1 do art.º 103.º do RGIT, segundo o qual, “Constituem fraude fiscal, punível com prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária (…)”;
VIII. Também (e principalmente) a não repercussão do imposto acarreta distorções na mecânica do IVA e na concorrência entre as empresas. Para mais, a não liquidação e respetiva não repercussão do imposto concretiza-se, a maior das vezes, em atuação claramente demonstrativa de maior desvalor, concretizada muitas das vezes pelo recurso a meios ilícitos, pelo que seria sempre insólito terem estes casos tratamento favorecido em regime de pagamento prestacional na execução fiscal – situação que se verificaria também nas situações de repercussão ilegal, com indevido recebimento do imposto;
IX. O IVA é imposto legalmente repercutido a terceiros. Caso o legislador, no n.º 2 do art.º 196.º do CPPT pretendesse apenas abranger os casos de efetiva repercussão não teria que constar expressão distinta da expressão utilizada na mesma frase para as retenções na fonte. Como na situação da retenção na fonte não ficou a constar legalmente retido na fonte, também para as situações do IVA bastaria ter ficado a expressão “repercutido a terceiros” caso o entendimento adotado fosse aquele que o Tribunal lhe atribui;
X. Por outro lado, como ficou já decidido, entre outros, no Acórdão do STA, de 15.04.2015, proc.º 0331/15, não pode a Autoridade Tributária conceder moratórias de pagamento para além das legalmente permitidas – art.º 36.º da LGT e n.º 3 do art.º 85.º do CPPT, as quais são mesmo fundamento de responsabilidade tributária subsidiária. Também como concluiu já o mesmo STA, entre outros, em Douto aresto com data de 20.12.2011, emitido no proc.º 01074/11: “As dívidas resultantes da falta de entrega de imposto legalmente repercutido a terceiros, como é o caso do IVA, só excepcionalmente podem ser pagas em prestações, sendo, para isso, necessário que se demonstre dificuldade financeira excepcional do devedor e previsíveis consequências económicas gravosas. E esse pagamento só pode ser efectuado num máximo de 12 prestações mensais, não podendo o valor de qualquer delas ser inferior a uma unidade de conta no momento da autorização.” [atualmente 24 prestações];
XI. Estando em causa dívida de IVA, imposto legalmente repercutido a terceiros, está, no caso, legalmente impedido o seu pagamento prestacional em número superior a 24 prestações, não padecendo o Despacho reclamado de qualquer ilegalidade. Fez, o Tribunal recorrido, incorreta aplicação do direito, a qual teve por base uma errada interpretação quer do elemento literal – não distinguindo o que o legislador expressamente separou -, quer do elemento teológico – diferenciando desvalor de ação que o legislador não diferencia;
XII. Ao decidir, como decidiu, incorreu o Tribunal em erro de julgamento de Direito, e violou o disposto no art.ºs 85.º e 196.º do CPPT e art.º 36.º da LGT.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicável, requer-se a V.as Ex.as se dignem:
. julgar PROCEDENTE o presente recurso, por totalmente provado e em consequência ser a douta Sentença ora recorrida, declarada nula, ou revogada e substituída por douto Acórdão que julgue o pedido improcedente;
. decidir pela dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça a que houver lugar por aplicação da tabela I – B ao recurso, nos termos do disposto n.º 7 do art.º 6.º do RCP.

Contra-alegou a recorrida A…………, LDA, tendo apresentado as seguintes conclusões:
A. A Recorrida deduziu Reclamação Judicial relativamente à decisão da ATA de indeferimento do seu pedido de pagamento em 60 prestações da dívida de IVA e respetivos juros compensatórios.
B. O tribunal a quo proferiu sentença nos termos da qual considerou parcialmente procedente a pretensão da Recorrida, autorizando ao pagamento em 60 prestações da parte da dívida de IVA não repercutida em relação a terceiros (isto é, do IVA que não foi liquidado, no montante total de € 988.414,34), mantendo o decidido pela ATA relativamente à autorização de pagamento em 24 prestações da parte da dívida de IVA que foi repercutido em relação a terceiros e não entregue ao Estado (no montante total de € 1.963,41).
C. A ATA interpôs recurso desta decisão, nos termos da qual considerou que o tribunal a quo realizou uma incorreta análise dos elementos literal e teleológico e, neste sentido, uma errada interpretação do n.º 2 do artigo 196.º do CPPT.
D. Entende a Recorrida, tal como já exposto nos termos da Reclamação Judicial deduzida, que o entendimento sufragado pelo tribunal a quo se encontra correto, isto é, que o regime geral do pagamento em prestações (e a possibilidade de pagamento em prestações nos termos do n.º 5 do artigo 196.º do CPPT) apenas se encontra vedado no caso em que o imposto foi efetivamente repercutido.
E. Desde logo, a terminologia utilizada “legalmente repercutido” não conduz a que o preceito tenha o âmbito de aplicação pretendido pela ATA (isto é, de abranger as situações em que o imposto foi efetivamente repercutido e as que em que embora não tenha sido, é repercutível).
F. Em acréscimo, diversamente ao exposto pela ATA no recurso por si interposto, o correto exercício de análise do elemento literal do preceito determina que se entenda que o conceito “imposto legalmente repercutido” previsto no n.º 2 do artigo 196.º CPPT se reconduz meramente às situações em que o imposto foi efetivamente liquidado e repercutido pelo devedor (e não entregue ao Estado).
G. Aliás, como exposto, outra expressão haveria sido escolhida caso o legislador pretendesse que o preceito tivesse aplicação às situações em que o imposto não foi liquidado e repercutido (isto é, situações em que o imposto é repercutível).
H. Ainda para este efeito, entende a Recorrida que a escolha pelo legislador da utilização do particípio passado na conjugação do verbo “repercutir” impõe que apenas se possa considerar que a norma se destina a condutas concretas já concluídas e não à repercussão legal em abstrato (que conduziria a que a norma integrasse as situações em que o imposto não foi liquidado e repercutido, embora existisse essa obrigação).
I. No tocante à análise do elemento teleológico, considera a ATA que o erro na análise do elemento literal pelo tribunal a quo determinou o erro na análise do elemento teleológico.
J. Ora, em face de tudo o exposto, e seguindo o raciocínio da ATA, tendo o elemento literal sido corretamente analisado pelo tribunal a quo, a análise do elemento teleológico e interpretação do preceito encontra-se correta.
K. Em acréscimo, o facto de o não cumprimento com a obrigação de liquidação e repercussão do imposto constituir, à semelhança da repercussão do imposto e não entrega ao Estado, uma infração tributária, não conduz, tal como afirma a ATA, a que tenham igual tratamento ao abrigo do n.º 2 do artigo 196.º do CPPT.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto vertida no probatório da sentença recorrida.

Há agora que conhecer do mérito do recurso, para o que se seguirá de perto o parecer do Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido nos autos.
O presente recurso vem interposto da sentença do TAF de Almada, na parte em que julgou parcialmente procedente a reclamação apresentada de ato do órgão de execução fiscal que indeferiu o pedido de pagamento em prestações da dívida exequenda.
A Recorrente insurge-se contra o assim decidido, invocando que o tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento, por errónea aplicação do direito, «a qual teve por base uma errada interpretação quer do elemento literal -não distinguindo o que o legislador expressamente separou-, quer do elemento teológico – diferenciando desvalor de ação que o legislador não diferencia».
Entende a Recorrente que com a expressão “imposto…legalmente repercutido a terceiros” constante do segmento final da norma do nº 2 do artigo 196º do CPPT, o legislador se quis referir ao imposto em que existe repercussão legalmente fixada, independentemente de ter ou não ocorrido essa repercussão. E que «a lei atribui tanto ou maior desvalor às situações em que existiu liquidação, dedução, repercussão, como nas situações em que nenhuma destas realidades se verificou».
Conclui, assim, que ao decidir naqueles termos, a sentença violou o disposto nos artigos 85º e 196º do CPPT e o artigo 36º da LGT.
E termina pedindo a revogação da sentença nessa parte.

Para decidir pela procedência parcial da reclamação, o tribunal “a quo” adotou o entendimento sufragado no acórdão deste STA de 04/07/2018, proferido no processo nº 0580/08, de acordo com o qual “A referência a “imposto legalmente repercutido a terceiros”, constante do n.º 2 do art. 42.º da LGT e do n.º 2 do art. 196.º do CPPT, inclui o IVA (cfr. art. 37.º do respectivo Código), mas apenas nos casos em que o imposto em dívida foi efectivamente repercutido a terceiros (e já não naqueles em que o imposto liquidado e não entregue não foi repercutido)”.
Concluiu, assim, o tribunal “a quo” que «…no caso em apreciação, como acima já foi explicitado, a quase totalidade do IVA em cobrança, foi apurado perante a falta de liquidação de imposto alegadamente devido, pelo que não foi efectivamente repercutido, é aplicável, quanto a este valor de dívida, o regime de pagamento em prestações previsto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 196.º do CPPT, contrariamente ao que sustenta a Administração Tributária».

A questão que vem suscitada pela Recorrente consiste em saber se o tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento, na interpretação que fez do disposto no artigo 196º, nº 2, do CPPT, ao considerar verificados os requisitos do pagamento em prestações da dívida exequenda relativa a IVA, cujo montante foi apurado pela AT na sequência de correções e que não havia sido objecto de liquidação por parte do sujeito passivo aquando da realização das operações a ele sujeitas.
Ora, e como se deixou supra referido, na interpretação da norma em causa, o tribunal “a quo” adotou o entendimento sufragado no acórdão deste Supremo Tribunal de 04/07/2018, proferido no processo nº 0580/18, o qual foi reiterado nos acórdãos de 10/04/2019, proc. 01729/18.2BELRS, e de 04/11/2020, proc. 0197/20.3BEALM.
Não se vislumbra que exista motivo para que seja alterada a referida jurisprudência, a qual deve aqui ser reiterada. Com efeito, é patente que a razão de ser subjacente à proibição da concessão do pagamento em prestações da dívida de imposto prevista na segunda parte do nº 2 do artigo 196º do CPPT é o facto de o sujeito passivo ter arrecadado o montante liquidado e não ter feito a sua entrega à Administração Tributária. Na verdade, dado o carácter indisponível dos créditos tributários e da regra geral de proibição de moratórias (art. 30º, nº 2, da LGT, e nº 3 do art. 85º do CPPT), não faz sentido, salvo raras exceções (elencadas no nº 3 do art. 196º), que nesses casos o sujeito passivo possa beneficiar dessa facilidade de cumprimento da obrigação tributária (prevista no nº 2 do artigo 86º do CPPT). Outro tanto já não ocorre naqueles casos em que o sujeito passivo, ainda que em incumprimento, não tenha arrecadado o montante do imposto (independentemente dessa situação lhe ser ou não imputável). E é nesse sentido (de arrecadação da receita tributária) que são utilizadas pelo legislador as expressões “imposto retido na fonte” e “imposto legalmente repercutido a terceiros”, que para este efeito têm sentidos unívocos, ao contrário do que parece pretender a Recorrente.
Assim, repete-se, reiterando-se a jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre a questão que vem colocada, não se vislumbra que a sentença recorrida padeça do vício que lhe é assacado pela Recorrente, a qual está conforme com a jurisprudência deste tribunal, motivo pelo qual se impõe o não provimento do recurso.

Nos termos expostos, os Juízes Conselheiros da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, sem dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, uma vez que a questão aqui colocada já foi por diversas vezes decidida em sentido contrário à pretensão da recorrente, sendo que as conclusões das alegações aqui apresentadas são em tudo semelhantes às que foram apresentadas no processo n.º 0197/20.3BEALM e a recorrente foi notificada do acórdão proferido nesses autos, que seguia a jurisprudência uniforme, em momento anterior ao da apresentação do presente recurso.
D.n.

Lisboa, 23 de Junho de 2021

Assinado digitalmente pelo relator, que consigna e atesta que, nos termos do disposto no art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, têm voto de conformidade com o presente acórdão os Conselheiros que integram a formação de julgamento.

Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Gustavo André Simões Lopes Courinha.