Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0235/13.6BEVIS
Data do Acordão:04/11/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P32126
Nº do Documento:SA1202404110235/13
Recorrente:A..., IPSS
Recorrido 1:B..., LDA (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:
1. B..., Lda. (atualmente, Massa Insolvente da B..., Lda.) intentou, no TAF, por si e na qualidade de chefe do consórcio “C..., Lda./B..., Lda.”, acção administrativa comum, sob forma ordinária, contra o A..., IPSS. e em que foi interveniente a sua consorciada, “C..., Lda.”, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:
“a) O valor de trabalhos contratados executados, titulados pela fatura ...21, no montante de 211.177,99€, acrescido de juros à taxa comercial desde a data de vencimento da fatura;
b) O valor de trabalhos a mais, titulados pela fatura ...22, no montante de 405.158,13€, acrescido de juros à taxa comercial desde a data de vencimento da fatura;
c) O valor da garantia inicial e dos valores retidos nas faturas, no montante global de 228.399,02€, acrescida de juros à taxa comercial desde a data de vencimento da fatura;
d) Indemnização a título de lucros cessantes no montante de 212.204,10€, acrescida de juros à taxa comercial desde a citação até integral pagamento;
e) Indemnização pelos prejuízos causados no montante de 300.000,00€, acrescida de juros à taxa comercial desde a citação até integral pagamento.”
Por decisão de 5/4/2014, o TAF indeferiu o incidente de intervenção principal provocada da “C..., Lda” e, consequentemente, julgou a acção improcedente, absolvendo o R. do pedido.
Desta decisão, a A. interpôs recurso de apelação para o TCA-Norte, o qual, por acórdão de 15/3/2019, concedeu-lhe “parcial provimento”, revogando a sentença e determinando que os autos revertam à 1.ª instância para deferimento da intervenção principal provocada e tramitação subsequente”.
O R. interpôs recurso de revista para o STA, o qual, por acórdão desta formação de apreciação preliminar datado de 29/6/2020, não o admitiu.
Em 6/2/2023, o TAF proferiu sentença, onde julgou improcedente a excepção da ilegitimidade activa da chamada, procedente a excepção da caducidade do direito de acção “quanto às facturas n°s. ...21, no montante de € 211.177,99 (IVA incluído), relativa a trabalhos contratuais executados, e ...22, no montante de € 405.158,13 (IVA incluído), relativo a trabalhos a mais” e totalmente improcedente a acção, absolvendo, assim, o R. do pedido.
O A. apelou para o TCA-Norte, o qual, por acórdão de 3/11/2023, concedeu parcial provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no segmento em que julgara verificada a referida excepção da caducidade e revogá-la “no segmento em que julgou improcedentes os pedidos formulados pela autora com fundamento na existência de divergências entre a Autora e a Chamada, enquanto membros de um consórcio externo e em consequência ordenam o prosseguimento dos autos para conhecimento dos demais pedidos formulados pela Autora, se a tal nada mais obstar”.
É deste acórdão que o R. pede a admissão do presente recurso de revista.

2. Tem-se em atenção a matéria de facto considerada pelo acórdão recorrido.

3. O art.° 150.°, n.° 1, do CPTA, prevê que das decisões proferidas em 2.a instância pelos tribunais centrais administrativos possa haver excepcionalmente revista para o STA “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como decorre do texto legal e tem sido reiteradamente sublinhado pela jurisprudência deste STA, está-se perante um recurso excepcional, só admissível nos estritos limites fixados pelo citado art.° 150.°, n.° 1, que, conforme realçou o legislador na Exposição de Motivos das Propostas de Lei n°s. 92/VIII e 93/VIII, corresponde a uma “válvula de segurança do sistema” que apenas pode ser accionada naqueles precisos termos.
O acórdão recorrido, na parte em que revogou a sentença, entendeu que o facto de a consorciada da A. (cuja intervenção principal havia sido admitida com fundamento na existência de uma relação litisconsorcial necessária entre elas) ter invocado expressamente não subscrever os pedidos formulados na petição inicial, antes os rejeitando, não bastava para, por si só, julgar imediatamente improcedente a acção intentada contra a dona da obra com fundamento no incumprimento por esta das obrigações assumidas no contrato de empreitada de “Construção de Creche, Lar de Idosos e Serviço de Apoio Domiciliário” que celebrara com o consórcio externo formado pela A. (chefe do consórcio) e pela chamada. Embora reconhecendo que entre os membros do consórcio não existia "uma vontade comum, uníssona quanto ao objeto da ação”, o acórdão considerou o seguinte:
(…).
A decisão recorrida, que viu na divergência da chamada fundamento para logo julgar improcedentes os pedidos formulados pela apelante na ação, assentou na jurisprudência veiculada pelo Acórdão do STA de 29/09/2011, processo n.° 0556/11, no qual se considerou que o direito à adjudicação no âmbito de um procedimento a que concorreu um consórcio, reside apenas na esfera jurídica do consórcio e não relativamente a cada um dos seus membros, e daí que somente o consórcio poderá demandar a entidade adjudicante uma vez que “a proposta apresentada não é divisível em quatro, separadas e parcelares, correspondentes às prestações individuais de cada uma das sociedades”.
Antes de mais importa precisar que no citado acórdão do STA estava em causa uma ação impugnatória visando a anulação de um ato de adjudicação, em que se considerou que a pretensão da autora seria a de conseguir a adjudicação e o contrato lançado a concurso, situação em que, por isso, se entendeu que a mesma não podia aspirar a ocupar sozinha a posição de adjudicatória, que só era atribuível ao conjunto de todas as titulares da proposta classificada em segundo lugar, pelo que não teria, por si só qualquer interesse em obter a anulação do ato de adjudicação, situação diferente da que temos em análise.
(…).
E foi nesse contexto, que o STA proferiu a jurisprudência que a decisão recorrida acolheu, não obstante no caso em concreto, não se estar perante um ato praticado no âmbito de um procedimento pré-contratual mas já no âmbito da execução do contrato de empreitada que foi celebrado na sequência da adjudicação da obra em causa ao consórcio externo formado pela autora e pela chamada, o que constitui um detalhe cujo relevo não é despiciendo considerar para a questão que nos ocupa neste momento.
(…).
No caso em análise, como se disse, não estamos perante a impugnação de um ato de adjudicação mas perante um litígio que surge no âmbito da execução de um contrato de empreitada, pelo que, desde logo, não nos parece aceitável extrapolar o entendimento da jurisprudência nacional invocada na decisão recorrida, que é relativo à falta de interesse na celebração do contrato por parte do membro de um agrupamento, detetado em ações de contencioso pré-contratual, para outras situações como aquela que temos em mãos, em que, em bom rigor, não se pode afirmar que as pretensões formuladas pela Autora sejam indivisíveis, de tal modo que, perante a rejeição ou oposição de um ou dos demais litisconsortes, o autor fique de mão atadas, vendo a sua pretensão gorar-se sem mais.
Aliás, um tal entendimento não está em sintonia com a disciplina legal contida nos artºs. 353.° n.° 2 do C. Civil, 283.° e 298.º do CPC que regula os efeitos da confissão, da desistência e da transação efetuadas pelos litisconsortes.
(…).
Ora, também por apelo à disciplina legal contida nos artigos supra transcritos, encontramos apoio para considerar que a existência de divergências quanto à pretensão formulada por um ou mais litisconsortes em relação aos pedidos deduzidos numa ação relativa a alegados incumprimentos de um contrato de empreitada, em que do lado ativo se verifica a existência de uma relação litisconsorcial, daí não decorre um impedimento a que a ação prossiga nos seus legais termos para aferir da procedência ou improcedência dos pedidos formulados na ação, uma vez que, a confissão, desistência ou transação por banda de um dos litisconsortes não pode relevar a não ser para efeito de custas.
Sendo assim, se transpusermos a disciplina legal que resulta destes preceitos para a situação em análise, não podemos senão concluir que a circunstância de inexistir uma posição comum por banda de todos os litisconsortes necessários na ação movida pela aqui apelante, nem por isso a ação deixará de prosseguir os seus legais termos, sendo essa conduta processual da sociedade consorciada da Autora que ser avaliada pelo Tribunal a quo, no momento devido, sem que, por força da posição assumida no seu articulado, o mesmo fique impedido ou desde logo dispensado de prosseguir com a tramitação da ação, por fatalmente terem os pedidos de improceder.
A posição perfilhada na decisão recorrida traduzir-se-ia numa negação do direito da autora de fazer valer em tribunal um direito a que se arroga, amarrando-a de forma intolerável a uma vontade que não é a sua, levando a que não pudesse ver apreciada pelos tribunais uma pretensão em relação à qual se acha com direito, só porque, existindo uma pluralidade ativa, uma das litisconsortes entende nada ter a reclamar em relação ao modo como, no caso, o contrato de empreitada foi cumprido pela apelada, não se estando, no caso, perante uma obrigação indivisível.
(...).
A posição assumida pela decisão recorrida, salvo melhor opinião, viola o direito constitucional de acesso ao Direito e aos Tribunais consagrado no art.º 20.° da lei fundamental e traduzir-se-ia num sacrifício insuportável dos direitos da ora apelante, pelo que, a mesma padece do vício de inconstitucionalidade material, por violação do direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva. Enfatiza-se que, salvo os casos excecionais previstos na lei, em que é possível o recurso à ação direta o direito de acesso aos tribunais implica a possibilidade de os cidadãos e as empresas poderem lançar mão de meios que assegurem a tutela das suas pretensões”.
O R. justifica a admissão da revista com a relevância jurídica e social da questão - complexa e com interesse alargado a outros casos semelhantes - de saber se, em caso de constituição de consórcio, a titularidade de direitos que emergem do contrato de empreitada é conjunta e incindível, insusceptível de ser fraccionada em direitos parcelares, autónomos e individuais radicados em cada uma das consorciadas e com a necessidade de se proceder a uma melhor aplicação do direito, imputando ao acórdão recorrido erro de julgamento, por violação dos art°s. 1.°, 4.°, n.° 1, 5.°, n.° 2 e 14.°, n.° 2, todos do DL n.° 231/81, de 28/7 e 406.°, n°s. 1 e 2, do C. Civil, por a A. carecer de legitimidade substantiva para fazer valer um direito de crédito decorrente da execução daquele contrato celebrado pelo consórcio que integrava.
O assunto sobre que incide a revista, naquilo que tem de generalizável, não respeita a uma questão jurídica a propósito da qual se conheça litigiosidade significativa nem reveste uma elevada complexidade em resultado de dificuldades de operações exegéticas a realizar.
Por outro lado, há que atentar que, num sistema onde a redução a dois graus de jurisdição é a regra, para a admissão da revista “não basta a plausibilidade do erro de julgamento”, exigindo-se “que essa necessidade seja clara, por se surpreender na decisão a rever erros lógicos em pontos cruciais do raciocínio, desvios manifestos aos padrões estabelecidos de hermenêutica jurídica ou indícios de violação de princípios fundamentais de tal modo que seja evidente a necessidade de intervenção do órgão de cúpula da jurisdição” (cf. Ac. desta formação de 9/9/2015 - Proc. n.° 0848/15). Ora, o acórdão recorrido, que decidiu de forma amplamente fundamentada, não só não incorreu nesse erro como parece ter julgado acertadamente.
Assim, deve prevalecer a regra da excepcionalidade da admissão das revistas.

4. Pelo exposto, acordam em não admitir a revista.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 11 de Abril de 2024. – Fonseca da Paz (relator) – Teresa de Sousa – José Veloso.