Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:047146
Data do Acordão:05/04/2006
Tribunal:PLENO DA SECÇÃO DO CA
Relator:FREITAS CARVALHO
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR.
MAGISTRADO.
AGENTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
CRIME.
PRINCÍPIO DA EXCLUSIVIDADE DA JURISDIÇÃO PENAL.
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA.
Sumário:I - O CSMP ao referir no acordão punitivo que “ os factos praticados pelo arguido …revelam grave violação grave violação dos deveres gerais de isenção e lealdade e integram a prática de ... crimes ... que demonstram além de falta de lisura, uma definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função”, está tão só, no exercício do poder disciplinar que lhe compete – artigo 27, al. a), da LOMP, redacção da Lei n.º 60/98, de 27-08 - a qualificar, a título incidental e no âmbito do procedimento disciplinar, certo comportamento como integrando ilícito criminal para efeitos de avaliar da viabilidade ou não da manutenção da relação funcional do arguido.
II - Não está, pois, a invadir a reserva de jurisdição dos tribunais criminais para a qualificação e punição de tais condutas como crimes, nem está a afirmar que a conduta do arguido cai no âmbito do direito penal ou, sequer, que deve ser punida como crime, razão por que é de todo indiferente, para os efeitos que vimos tratando, que tais factos tenham ou não sido objecto de decisão, condenatória ou absolutória, de um tribunal criminal transitada em julgado, como pretende o recorrente.
III – Assim, a Administração ao formular o juízo referido em I, ponderando o desvalor daqueles factos na aplicação da sanção disciplinar, não está a violar o princípio da presunção de inocência do arguido ou o princípio da separação de poderes e exclusividade da jurisdição penal, decorrentes dos artigos 2 e 32, n.ºs 2 e 9, da CRP.
Nº Convencional:JSTA00063129
Nº do Documento:SAP20060504047146
Data de Entrada:01/26/2005
Recorrente:A...
Recorrido 1:PLENÁRIO DO CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Votação:UNANIMIDADE
Ref. Acórdãos:
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC 1 SUBSECÇÃO DO CA.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - FUNÇÃO PUBL / DISCIPLINAR.
Área Temática 2:DIR JUDIC - EST JUDIC.
Legislação Nacional:EMP98 ART27.
CONST97 ART32.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC25349 DE 2002/05/05.; AC STAPLENO PROC29864 DE 2001/04/03.; AC STAPLENO PROC40528 DE 2001/05/17.; AC STA PROC40969 DE 1997/05/27.
Referência a Pareceres:P PGR N241/95 DE 1997/12/07.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência no Pleno da 1ª Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
A…, magistrado do Ministério Público, identificado nos autos, recorre do acórdão de fls. 66 e seg.s, que negou provimento ao recurso contencioso que interpusera da deliberação de 14-06-2000, do Plenário do Conselho Superior do Ministério Público, que lhe aplicou a pena disciplinar de aposentação compulsiva.
I. I. O recorrente formula as seguintes conclusões:
1. A decisão punitiva entendeu que o magistrado recorrente não se adaptava às funções que desempenhou, porquanto havia cometido três crimes — cfr. decisão recorrida.
2. O magistrado recorrente à data da prática do acto (o que sucede ainda na actualidade) estava simplesmente pronunciado pela prática de tais crimes.
3. Foi assim assacado ao acto vício de violação de lei (por erro de facto nos pressupostos), decorrente da circunstância daquela decisão punitiva ter sido proferida com fundamento em pressupostos errados e estranhos ao processo disciplinar, tendo-se adiantado que deve ser tida por irrelevante qualquer consideração que se faça em função de juízos do foro criminal, sobretudo quando o magistrado recorrente apenas está pronunciado pelos crimes que a administração diz que o mesmo praticou.
4. O Tribunal recorrido, depois de concluir connosco no sentido de que os ilícitos, disciplinares e criminais, são efectivamente diferentes, julgou que, do ponto de vista da reserva de relevância em sede disciplinar da ilicitude penal, seriam três as razões pelas quais não se verificaria a ilicitude assacada ao acto.
A primeira dessas razões é a seguinte:
5. É a distinção de ilícitos que justifica a implicação disciplinar dos factos passíveis de sanção disciplinar e penal em simultâneo.”
6. Face a estes dizeres, até algo genéricos, importa concluir, com rigor e precisão, que os mesmos não têm qualquer força justificativa lógica que seja apta a contrariar o vício de violação de lei assacado ao acto.
7. Ou seja, ninguém nega ou negou que a distinção de ilícitos justifica a implicação disciplinar dos factos simultaneamente justificadores de uma sanção disciplinar e penal em simultâneo.
8. Só que... isso, como defende a lei, só ocorre depois da condenação criminal que se não verificou!!!!
A segunda das razões é a seguinte:
9. “... sem unidade de ilicitude, o desvalor jurídico de natureza penal, releva no ilícito disciplinar como mero índice de qualificação da infracção disciplinar, pelo alarme social que provoca e pela danosidade associada que, em regra terá para a eficácia funcional do serviço a prática de uma falta disciplinar que seja, ao mesmo tempo, tipificada como crime.”
10. Se o desvalor jurídico de natureza penal revela? (releva) no ilícito disciplinar como mero índice de qualificação da infracção disciplinar, então não pode o mesmo, como se frisou no recurso contencioso e sob pena de ocorrer violação de lei, fundar uma condenação disciplinar
A terceira das razões é a seguinte:
11. “... porque no quadro de autonomia dos ilícitos e independência dos processos, justificados pela diferenciação dos bens a proteger, os comportamentos são apreciados à luz de normativos diversos, a partir de enfoques distintos, com critérios de prova diferentemente orientados, sem perigo de contradição entre a decisão disciplinar e a sentença penal, em termos que ponham em causa a unidade da ordem jurídica.”
12. A aludida inexistência de contradição, a insusceptibilidade de poder ocorrer quebra da unidade da ordem jurídica, não invalida, comprime, prejudica, ou sequer... belisca a conclusão de que não se afigura possível concluir que um funcionário não se adapta definitivamente à função, com fundamento no alegado, mas suposto, cometimento de crimes relativamente aos quais o arguido apenas se encontra pronunciado!!!
13. Numa palavra, não é possível aceitar uma campanuda qualificação jurídico administrativa de uma conduta como tendo constituído crime apenas para efeitos disciplinares, quando o arguido na sede própria apenas foi pronunciado por esse crime que a administração diz que o magistrado supostamente cometeu.
14. A administração poderia ter entendido fundadamente que as condutas subjacentes aos ilícitos (também eventualmente passíveis de uma qualificação jurídico-criminal) eram de molde a revelar a inadaptação para o exercício da função, nunca poderia era ter dito expressa e literalmente que essa inadaptação se verificou em virtude de o magistrado recorrido ter cometido crimes, conforme se lê da decisão punitiva.
15. Entender que a administração pode qualificar como crime uma determinada conduta, para efeitos estritamente disciplinares, sem atender à qualificação criminal que está a ser levada a efeito na jurisdição penal onde o arguido apenas está pronunciado por esse crime, ofende o princípio da separação de poderes e a exclusividade da jurisdição penal (cfr. art. 2.° e 32.°, n.° 9 da CRP).
16. Entender que a administração pode aplicar uma sanção disciplinar qualificando as condutas como constituindo crimes ofende o princípio da presunção da inocência, plasmado no art. 32°, n.° 2 da CRP.
Não houve contra alegações a Exm.ª Procuradora Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer :
“Somos de parecer que não assiste razão ao Recorrente.
Decorre da independência dos procedimentos criminal e disciplinar (art° 7°, do E.D.) a possibilidade de a Administração desencadear o procedimento disciplinar antes da apreciação dos factos pelos tribunais, não tendo, em princípio, a absolvição em processo penal, relevância no processo disciplinar - cfr. Acs. de 23.06.1999, Proc. no 37.812; de 29.02.2000, Proc. n° 31.130; de 3.04.2001, Proc. 29.864 e de 24.01.2002, Proc. n°48.147.
Conforme tem vindo a ser considerado, o princípio da presunção de inocência do arguido (art° 32°, n° 2, da C.R.P.), entendido à letra, conduziria até «à própria proibição de antecipação de medidas de investigação e cautelares, inconstitucionalizando o inquérito disciplinar em si mesmo, e à proibição de suspeitas de culpabilidade». — cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República, anotada, 3 edição, pág. 203, e Acs. de 21.03.95, Proc. n° 37.146 e de 18.12.2002, Proc n° 1859/02 .
Assim, a consequência que dele decorre para os processos disciplinares reduz-se ao facto de impender sobre a Administração o ónus da prova dos factos constitutivos das infracções, impondo-se que Aquela, na aplicação da sanção disciplinar, tenha por base factos que permitam um juízo de certeza sobre a sua prática (cfr. Ac. de 27.11.2002, Proc. n° 125/02).
Foram imputadas ao Recorrente factos que, em abstracto, integram ilícito do foro penal.
Tendo resultado provada a exactidão material de todos os factos constantes da acusação — cfr. n°s 2.1.2. da matéria de facto dada como assente no acórdão recorrido, e 2.2.2, último parágrafo.
O acórdão do Plenário do Conselho Superior do Ministério Público faz assentar o juízo sobre a incapacidade de adaptação às exigências da função, não da prática de crimes, mas da prática de «factos» que analisa de forma circunstanciada no seu ponto n° 5 (fls. 16).
Deverá, em consequência, ser negado provimento ao recurso jurisdicional.”
II. Ao abrigo do disposto no art. 713º, nº 6 do CPCivil, e porque sobre ela não foi suscitada qualquer controvérsia, considera-se reproduzida a matéria de facto fixada na decisão impugnada
III. O recorrente insurge-se contra a decisão recorrida pelo facto de esta ter julgado improcedente o vício de violação de lei por erro nos pressupostos decorrente do facto de, em seu entender, a decisão punitiva ter concluído pela definitiva incapacidade de adaptação do recorrente às exigências da função de Magistrado com base em factos que considerou integrarem a prática de crimes de prevaricação, abuso de poder e denúncia caluniosa, objecto de um processo crime ainda pendente e, por isso “ externos ao processo disciplinar”.
Na sua perspectiva, a decisão punitiva ao fazer relevar tais factos, que qualifica como crimes pelos quais o recorrente havia sido tão só pronunciado, socorre-se de elementos estranhos ao processo disciplinar, o que não é lícito porque ainda não existe condenação pela prática dos mesmos, pelo que viola o princípio da presunção de inocência do arguido e o princípio da separação de poderes e exclusividade da jurisdição penal, decorrentes dos artigos 2 e 32, n.ºs 2 e 9, da CRP.
Vejamos, em primeiro lugar, o que sobre a matéria aqui em análise, a entidade recorrida refere na decisão punitiva objecto do recurso contencioso.
Diz-se no acórdão do CSMP, trancrito na al.h), da matéria de facto:
Os factos praticados pelo arguido, que assim se têm como provados, conforme os elementos do processo e a explicitação constante de fls. 314 a 328 do relatório do inquérito, para que remete o relatório final de fls. 424 a 432, revelam grave violação dos deveres gerais de isenção e lealdade e integram a prática e quatro crimes de prevaricação, p. e p. pelo artigo 369°, n° 4 do Código Penal, um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382°, do mesmo diploma, e um crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365°, também do Código Penal, que demonstram além de falta de lisura, uma definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função.
Nestes termos, e ainda pelos demais fundamentos que constam o aludido relatório final, considera-se o arguido incurso nas infracções disciplinares previstas e punidas pelas disposições conjugadas dos artigos 138°, 141°, alínea, 146°, 152°, 159°, alíneas a) e b), e 163° da Lei n° 47/86, de 15 de Outubro, a que se referem agora as disposições dos artigos 163°, 166°, alínea f), 1710, 177° e 184°, alíneas a) e b), e 188° do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público, aprovado pela Lei n° 60/98, de 27 de Agosto, por referência ainda aos artigos 3°, nos 1, 2, 3, 4, alíneas a) e d), 5 e 8 do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei no 24/84, de 16 de Janeiro, pelo que acordam em aplicar ao Lic. … a pena de aposentação compulsiva.
Tal acórdão foi objecto de reclamação necessária para o Plenário do mesmo Conselho que, apreciando o segmento que recorrente agora põe em causa – incapacidade de adaptação às exigências da função –, indeferiu a reclamação, mantendo a pena de aposentação compulsiva aplicada ao recorrente, referindo na sua parte final:
“ ... , é patente que um magistrado que se socorre da sua função e da sua categoria profissional para fazer valer os seus próprios direitos não demonstra isenção, característica necessária para o exercício do seu cargo. Tal falta de isenção torna-se ainda mais patente quando os factos não ocorrem na área da comarca onde presta serviço; quando, necessitando do auxílio duma força policial, depois de invocar a sua qualidade de Delegado do Procurador da República, lhe transmite uma versão dos factos que não corresponde à verdade; finalmente, quando se faz valer da sua função e do auxílio que a força policial lhe estava a prestar para ilegalmente apreender uma máquina e para dar voz de prisão a diversas pessoas. Toda a conduta do arguido, que está minuciosamente descrita na acusação e que foi dada como provada no acórdão reclamado é, assim, demonstrativa da sua falta de capacidade para o exercício do cargo, que, aliás, as classificações de serviço nas inspecções a que foi sujeito tornam bem patente.
8. Termos em que, acordam no plenário do Conselho Superior do Ministério Público em indeferir a reclamação apresentada pelo arguido Lic. …, mantendo, pelas razões invocadas no acórdão da Secção Disciplinar de fls. 435 a 437, e com fundamento nas normas legais ali indicadas, a pena de aposentação compulsiva.” – cfr. fls. 18 e 19, dos autos .
No recurso contencioso o raciocínio lógico do recorrente, com vista à demonstração da existência do alegado vício de violação de lei, assenta nas seguintes considerações:
- “os pressupostos de que depende o processo criminal são diversos daqueles que encerram o processo disciplinar “ – concl. 23;
- “são diversos os bens jurídicos que se visam salvaguardar nos dois processos “ - concl. 24;
- “pelo que é irrelevante toda e qualquer consideração que se faça dos factos descritos em função de juízos do foro jurídico-criminal e, agravadamente, quando o recorrente não foi condenado pelos mesmos “ – concl. 25 .
O acórdão recorrido, depois se concordar com as duas primeiras afirmações do recorrente – da diferenciação entre ilícito disciplinar e criminal e a possibilidade de os mesmos factos integrarem simultaneamente responsabilidade e disciplinar – rejeita a alegação contida na terceira afirmação - da irrelevância da ilicitude penal no processo disciplinar – com base no seguinte discurso argumentativo :
“Antes de mais porque é, precisamente, a distinção de ilícitos que justifica a implicação disciplinar dos factos passíveis de sanção penal e disciplinar em simultâneo.
Depois, porque, sem unidade de ilicitude, o desvalor jurídico de natureza penal, releva no âmbito disciplinar como mero índice de qualificação da infracção disciplinar, pelo alarme social que provoca e pela danosidade associada que, em regra terá para a eficácia funcional do serviço a prática de uma falta disciplinar que seja, ao mesmo tempo, tipificada como crime.
Finalmente, porque no quadro da autonomia de ilícitos e independência de processos, justificados pela diferenciação dos bens a proteger, os comportamentos são apreciados à luz de normativos diversos, a partir de enfoques distintos, com critérios de prova diferentemente orientados, sem perigo de contradição entre a decisão disciplinar e a sentença penal, em termos que ponham em causa a unidade da ordem jurídica.
Assim se compreende, por um lado, que não haja norma expressa que determine a suspensão do processo disciplinar quando este e o processo criminal corram em paralelo, com incidência sobre os mesmos factos e que, portanto, em princípio, o procedimento disciplinar não tenha que aguardar o desenrolar do processo penal (acórdão STA de 2000.02.29 — rec° n° 31 130) e, por outro lado, se justifica a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido que “o facto de o arguido ser absolvido em processo crime, não obsta, em princípio, à sua punição em processo disciplinar instaurado com base nos mesmos factos” (acórdão de 2002.01.24 — rec° n°48 147).
Em suma: o acto punitivo não enferma do vício de violação da lei alegado pelo recorrente, nem por ter qualificado como crime, para efeitos estritamente disciplinares, os factos por ele praticados, nem por ter dado relevância a essa qualificação, antes da condenação penal, ponderando-a como índice de qualificação da infracção disciplinar, no juízo que formulou, de definitiva incapacidade de adaptação do arguido à função de Magistrado do Ministério Público”.
Ora, o recorrente está de acordo que os factos que lhe são imputados na decisão disciplinar são verdadeiros e estão demonstrados no processo; não põe em causa que os mesmos são subsumíveis aos vários tipos legais de crime previstos nos artigos 369°, n° 4, 382 e 365 do Código Penal; o que não aceita é que tal juízo subsuntivo possa ser efectuado por outra entidade que não o tribunal criminal, questionando tão só o facto de ser a Administração a fazer o juízo integrativo de tais factos no tipo legal de crime.
Não lhe assiste, porém razão.
Na verdade, o CSMP ao referir que “ os factos praticados pelo arguido …revelam grave violação grave violação dos deveres gerais de isenção e lealdade e integram a prática de quatro crimes de prevaricação, p. e p. pelo artigo 369°, n° 4 do Código Penal, um crime de abuso de poder, p. e p. pelo artigo 382°, do mesmo diploma, e um crime de denúncia caluniosa p. e p. pelo artigo 365°, também do Código Penal, que demonstram além de falta de lisura, uma definitiva incapacidade de adaptação às exigências da função”, está apenas a dizer, no exercício do poder disciplinar que lhe compete – artigo 27, al. a), da LOMP, redacção da Lei n.º 60/98, de 27-08 - que a gravidade dos factos praticados é de tal modo elevada que atinge bens e valores jurídicos protegidos pelo direito penal, o que demonstra a inadaptação do recorrente à função de magistrado do Ministério Público, a quem compete, além do mais, perseguir e prevenir a prática de ilícitos dessa natureza.
A Administração ao formular esse juízo não está a violar o princípio da presunção de inocência do arguido ou o princípio da separação de poderes e exclusividade da jurisdição penal, decorrentes dos artigos 2 e 32, n.ºs 2 e 9, da CRP, mas tão só a qualificar, a título incidental e no âmbito do procedimento disciplinar, certo comportamento como integrando ilícito criminal para efeitos de avaliar (da repercussão da gravidade dos factos concretos) da viabilidade ou não da manutenção da relação funcional do arguido.
Não está, pois, a invadir a reserva de jurisdição dos tribunais criminais para a qualificação e punição de tais condutas como crimes, nem está a afirmar que a conduta do arguido cai no âmbito do direito penal ou, sequer, que deve ser punida como crime, razão por que é de todo indiferente, para os efeitos que vimos tratando, que tais factos tenham ou não sido objecto de decisão, condenatória ou absolutória, de um tribunal criminal transitada em julgado, como pretende o recorrente.
O facto de a Administração na avaliação dos factos provados no âmbito de um processo disciplinar, ponderar que determinada infracção daquela natureza integra também uma infracção criminal, não envolve a prática de acto materialmente jurisdicional ou a invasão da esfera de atribuições dos tribunais – neste sentido cfr. o acórdão do Pleno de 5-05-92. Proc.º n.º 25349, in Ap DR de 29-11-1994, pág. 387, onde, a propósito de caso idêntico, se escreve : ” o que, com o acto de imposição da pena de aposentação compulsiva a Administração teve em vista foi o exercício do poder disciplinar que indiscutivelmente lhe compete. É certo ter referido que uma das condutas, além de integrar infracção disciplinar, configura também o crime de falsificação previsto e punido pelo artigo 228°, n°s 1 aI. a) e 3 do Código Penal, mas daí não partiu para impor à ora recorrida uma condenação penal. Limitou-se antes a afirmar que essa infracção, como as restantes que lhe vêm imputadas, revela falta de idoneidade moral para o exercício das funções próprias do cargo em que estava investida. Foi com esse fundamento que, ao abrigo do no 3 do artigo 26° do Estatuto Disciplinar, a puniu com pena de aposentação compulsiva.
Assim decidindo, a autoridade recorrida mais não fez do que prosseguir interesse a seu cargo, a disciplina dos serviços, para defesa da dignidade e prestígio destes e dos que os servem, de todo se abstendo de punir o ilícito penal .” (o mesmo acontece, em matéria da prescrição da obrigação de indemnizar resultante da responsabilidade civil com base em ilícito civil que também constitua crime: aí o tribunal comum não está inibido, para esse restrito fim, de conhecer da qualificação de certo facto como criminoso, sem que com isso invada a competência dos tribunais criminais, se estes na matéria nada houveram decidido” - acordão da 1ª Secção do S.T.A. de 27-5-97, Proc. n.º 40 969, confirmado pelo Pleno em acórdão de 21-9-00 .
Ver, também, Parecer n.º 241/95, de 7-12-1995, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República n° 241/95, de 7-12-95, onde se escreve: “... a entidade detentora do poder disciplinar ao examinar a relevância criminal dos factos para efeitos de amnistia não tem, desde logo, por fim a resolução imparcial de qualquer conflito de interesses visando especificamente a realização do direito e da justiça, mas a prossecução do interesse público implicado no exercício do ius puniendi disciplinar ”)
Assim, não corresponde à verdade afirmar-se, como faz o recorrente, que a decisão punitiva fundamente a inadaptação do recorrente à função no facto de o mesmo “ter cometido crimes”; o que dela consta, como se viu, é que os factos praticados pelo arguido que, em abstracto, integram crimes – “demonstram (são indiciadores) além de falta de lisura, uma definitiva incapacidade de adaptação ás exigências da função“.
A conclusão que o arguido retira da diversidade dos pressupostos da responsabilidade disciplinar e criminal, bem como da diversidade de bens jurídicos que uma e outra tutelam - de que, por isso, não é licito utilizar juízos do foro jurídico-criminal no processo disciplinar - não é, pois, correcta.
Do mesmo modo, e pelas razões acima expostas, o n.º 2, do artigo 32, da CRP, que estatui que “ todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação ... “ não impede a ponderação do desvalor, para efeitos de aplicação de sanções disciplinares, de factos praticados pelo arguido que podem integrar, também ilícitos criminais, quer antes daqueles serem objecto de condenação por um tribunal criminal quer mesmo depois de sentença absolutória dos crimes que tais factos consubstanciariam - acórdão do Pleno de 03-04-2001, Proc. n.º 29864.
O princípio da presunção da inocência ali consagrado, embora previsto para o processo penal é aplicável a todos os processos sancionatórios como é o caso dos processos disciplinares, tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido, não impendendo sobre este, mas sobre a Administração, o ónus de reunir as provas indispensáveis para a decisão a proferir, em especial, em sede da comprovação dos factos que lhe são imputados e da respectiva ilicitude – acórdão do Pleno de 17-05-2001, Proc. n.º 40528 .
Ora no caso em apreço, como bem se refere na decisão recorrida a prova dos factos da acusação deduzida contra o recorrente, com base nos quais lhe foi aplicada a sanção disciplinar que impugnou contenciosamente, foi carreada para o processo disciplinar e consta dos documentos e dos depoimentos das testemunhas ouvidas – cfr. ponto 2.1.2. e ponto 2.2.2. do acórdão recorrido .
Conclui-se, assim, ao contrário do alegado, que não se mostram violados os princípios da separação de poderes e exclusividade da jurisdição penal decorrentes dos artigos 2 e 32, n.º 9, da CRP, bem como o princípio da presunção de inocência consagrado no n.º2, do artigo 32, do mesmo diploma fundamental, pelo que improcedem todas as conclusões da alegação do recorrente.
IV. Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 400 euros (taxa de justiça) e 200 euros (procuradoria).
Lisboa, 4 de Maio de 2006. - José António de Freitas Carvalho (relator) – António Fernando Samagaio – Fernando Manuel Azevedo Moreira – José Manuel da Silva Santos Botelho – Rosendo Dias José – Maria Angelina Domingues – Luís Pais Borges – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Adérito da Conceição Salvador dos Santos.