Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0515/14
Data do Acordão:06/04/2014
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:DERROGAÇÃO DO SIGILO BANCÁRIO
PROCESSO PENAL
DOCUMENTO BANCÁRIO
Sumário:A Administração tributária não pode fazer uso para fins tributários de documentos bancários obtidos em processo criminal objecto de arquivamento em relação à recorrente em razão da sua não pronúncia e da extinção da responsabilidade penal por morte do seu marido sem para tal ter utilizado o procedimento administrativo de derrogação do sigilo bancário previsto no artigo 63.º-B da LGT, sob pena de lhe postergar o seu direito ao recurso da decisão que determine o acesso a tal documentação bancária.
Nº Convencional:JSTA00068755
Nº do Documento:SA2201406040515
Data de Entrada:05/06/2014
Recorrente:A............
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF PORTO
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC FISC GRAC.
Legislação Nacional:LGT98 ART63-B N3 N9 ART87 N1 D F ART89-A N11.
CONST76 ART20 N1 N2 ART26 N1 N2.
CIRS88 ART39.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -
1 – A…………, com os sinais dos autos, recorre para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 28 de Fevereiro de 2014, que julgou totalmente improcedente o recurso por si interposto da decisão do Director de Finanças do Porto de avaliação, por método indirecto, da matéria tributável em sede de IRS relativa aos anos de 2005, 2006 e 2007, apresentando para tal as seguintes conclusões:
I. A utilização de informações bancárias do contribuinte por parte da administração tributária, sem precedência dos formalismos legalmente estabelecidos para o efeito, ofende o núcleo essencial do direito fundamental, constitucionalmente protegido, da reserva da vida privada (artigo 26.º, n.º 1 e 2 da CRP).
II. A utilização de informações bancárias da Recorrente por parte da AT é ilegal, na medida em que não foi seguido o procedimento imposto pelos n.ºs 4 e 5 do artigo 63.º-B da Lei Geral Tributária.
III. O n.º 9 do artigo 63.º-B da LGT não permite a dispensa do procedimento previsto nos n.ºs anteriores do mesmo artigo para que possa ser utilizada informação recolhida em processo de inquérito penal com vista à avaliação indirecta da matéria colectável em processo tributário.
IV. O procedimento de avaliação indirecta não foi feito no âmbito de um procedimento que tenha incluído a investigação das contas bancárias, tendo sido violado o n.º 11 do artigo 89.º-A da LGT.
V. A preterição do formalismo estipulado no artigo 63.º-B da LGT, no acesso a informação bancária protegida, originando que a utilização dessa informação é determinada apenas pela Direcção Distrital de Finanças, gera um vício de incompetência no procedimento inspectivo, gerador de nulidade, uma vez que a utilização da informação deveria ter sido determinada pelo director-geral da AT;
VI. Uma interpretação do n.º 9 do artigo 63.º-B e do n.º 11 do artigo 89.º-A, ambos da LGT no sentido de que a AT pode utilizar informação bancária apurada no processo penal sem desencadear o procedimento previsto nos números 3 a 7 do artigo 63.º-B da LGT, seria manifestamente inconstitucional, por violação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 26.º da Constituição da república Portuguesa.
Assim se dando provimento ao presente recurso, revogando-se o julgado recorrido e anulando-se a decisão de determinação da matéria colectável em IRS nos anos de 2005, 2006 e 2007.
Como é de inteira JUSTIÇA!

2 – Contra-alegou a administração Tributária e Aduaneira, concluindo nos termos seguintes:
I. A abertura – ocorrida no ano de 2012 – das Ordens de Serviço OI201202305/OI201202306/OI201202307, concernentes, respectivamente, aos anos de 2005, 2006 e 2007, teve por base a informação recolhida no âmbito do processo de inquérito n.º 703/06.6JAPRT, a correr termos junto do 2.º juízo criminal de Santa Maria da Feira, conforme consta no Relatório Final de Inspecção, a fls. 8, constante do processo administrativo instrutor;
II. No âmbito do processo de inquérito n.º 703/06.6JAPRT foram obtidas informações bancárias respeitantes à Recorrente – que abarcavam os períodos de 2005, 2006 e 2007 – sendo que tal informação, “ventilada” dos órgãos de polícia criminal para a entidade inspectiva competente, ocorreu, inclusive, na sequência de “trabalho realizado (…) relatório intercalar datado de 15 de Julho de 2010, assinado pelas inspectoras tributárias .............. e .............., as quais colaboraram no processo de inquérito em regime de assessoria técnica.";
III. O aproveitamento da prova pela Recorrida, oportunamente produzida em sede de inquérito, mostra-se legitimamente consagrado na lei, de acordo com o disposto no n.º 9 do artigo 63.º-B da LGT, existindo, inclusivamente, jurisprudência nesse sentido, como é o caso do Acórdão do TCA Norte, processo n.º 01619/09, que refere que nada obsta a que a Autoridade Tributária utilize a informação bancária apurada no processo penal; bem pelo contrário, tendo a Autoridade Tributária o poder e o dever de utilizar as provas produzidas no processo penal que possam assumir relevância para efeitos tributários, designadamente para determinar o rendimento tributável para efeitos de tributação em IRS;
IV. O teor do acórdão somente vem complementar o que, em matéria de meios probatórios, se encontra preceituado tanto no artigo 72.º da LGT como no artigo 50.º do CPPT, - admissibilidade de todos os meios de prova;
V. Nos termos do disposto no artigo 63.º-B, n.º 9 da LGT, o regime previsto nos números anteriores não prejudica a legislação aplicável aos casos de investigação por infracção penal e só pode ter por objecto operações ou movimentos bancários realizados após a sua entrada em vigor, sem prejuízo do regime vigente para as situações anteriores;
VI. Atento o disposto no artigo 9.º, n.º 3 do CC e no artigo 63.º-B, n.º 9 da LGT, a Recorrida é de parecer que caso o legislador e, mais importante, a lei quisessem excluir a hipótese de aproveitamento, em sede de procedimento inspectivo, de informações de natureza bancária, recolhidas em sede de processo de inquérito, tê-lo-iam manifestado expressamente na letra da norma, o que não aconteceu;
VII. Ao fazer uso dos elementos bancários recolhidos em sede do processo de inquérito n.º 703/06.6JAPRT, a Recorrida actuou em obediência à lei, respeitando os princípios de legalidade tributária, da indisponibilidade de créditos tributários, do inquisitório e da busca da verdade material;
VIII. O efectivo aproveitamento pela Recorrida dos elementos bancários recolhidos em sede do processo de inquérito n.º 703/06.6JAPRT também consubstancia a harmonia com outros princípios acessórios do sistema tributário, como seja o da celeridade do procedimento e o da proibição de actos inúteis por parte da Autoridade Tributária;
IX. Seria, deste modo, manifestamente destituído de fundamento que a Recorrida, ante a possibilidade de agilizar as suas diligências inspectivas por via do respectivo aproveitamento de meios de prova, já legalmente produzidos e utilizados no âmbito de um outro processo, de natureza criminal, estivesse impossibilitada de o fazer apenas por que alegadamente não respeitou a tramitação procedimental prevista no artigo 63.º-B da LGT;
X. O Acórdão do STA, processo n.º 0837/12, de 05-09-2012, pronunciou-se favoravelmente sobre a utilização de informações bancárias no âmbito do procedimento inspectivo, recolhidas em sede de processo de inquérito, aí se dá possibilidade legal de utilização em sede de procedimento inspectivo de informação bancária com origem em processo criminal, nos termos do disposto no artigo 63.º-B, n.º 9 da LGT;
XI. Da redacção do artigo 63.º-B, n.º 1, al. c) da LGT não resulta que, em todo e qualquer processo de acréscimos de património não justificado, haja a obrigação de derrogar o sigilo bancário do sujeito passivo, alvo de escrutínio inspectivo;
XII. O que se infere é que a Autoridade Tributária, em caso de acréscimos de património não justificados, reconduzíveis ao teor do artigo 87.º, n.º 1, al. f) da LGT, tem o poder (e não o dever) de aceder a todas as informações e documentos bancários;
XIII. O recurso a essa disponibilidade de meios para a obtenção de um fim revelar-se-á inútil em todos os casos em que esse mesmo fim se encontre já, oportunamente, tutelado;
XIV. À altura em que, em sede de procedimento inspectivo, importava descortinar as pertinentes informações de caris bancário para efeitos de fixação da matéria colectável por aplicação de métodos indirectos, tais necessidades foram colmatadas pela remissão das “cópias dos extractos bancários que haviam sido objecto de análise”, conforme fls. 8 do Relatório Final de Inspecção, constante do processo administrativo instrutor;
XV. A avaliação indirecta e o procedimento de investigação das contas bancárias deverão ser incluídos no mesmo procedimento inspectivo quando o sujeito passivo se recusar a disponibilizar o conteúdo ínsito nas contas bancárias que lhe pertencem, quando para isso instado pela Recorrida, o que não se reconduz ao caso dos autos;
XVI. Não vinga, deste modo, a arguição do vício de incompetência, por alegada violação do artigo 63.º-B, n.º 4 da LGT, nem vinga a afirmação, no mínimo, imprecisa, de que a “A administração fiscal utilizou informação bancária da recorrente para efeitos da alínea f) do artigo 87.º da LGT, sem decisão da entidade competente (no caso, Director-Geral dos Impostos), sem audição prévia da demandante para tal, e sem garantia da sindicabilidade judicial da decisão, a qual teria efeito suspensivo.”.
XVII. Por se estar perante uma situação tributária conducente à alínea f) do artigo 87.º da LGT, - e porque a recorrente era co-titular da maioria das contas bancárias escrutinadas em sede de procedimento inspectivo, cfr. fls. 18 e seguintes do Relatório Final de inspecção – estava a Recorrida legalmente dispensada do consentimento dos seus titulares para a obtenção de tais elementos (alínea c), do n.º 1 do artigo 63.º-B da LGT);
XVIII. Nos termos do artigo 63.º-B, n.º 1 da LGT, a derrogação do sigilo bancário não tem que ser antecedida de audição prévia do titular das contas bancárias, conforme disposto no n.º 5 do artigo 63.º-B da LGT;
XIX. Por sua vez, o recurso jurisdicional interposto, nos termos do artigo 146.º-B do CPPT, reconduzível aos casos do artigo 63.º-B, n.º 1 da LGT tem efeito meramente devolutivo, e não suspensivo;
XX. Por seu turno, a derrogação do sigilo bancário não é um direito absoluto consagrado a favor dos contribuintes, sendo, antes, passível de ser objecto de restrições necessárias à salvaguarda de outros interesses com igual dignidade constitucional, designadamente, a cooperação com a justiça, o equitativo pagamento de impostos, o combate à corrupção e criminalidade económico-financeira, à evasão fiscal, entre outros;
XXI. Neste sentido, o acórdão n.º 278/95 do tribunal Constitucional, que afirma que a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso a dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes;
XXII. Entre os princípios constitucionais passíveis de serem tutelados em detrimento do segredo bancário – e, no limite, em detrimento do direito à reserva da intimidade da vida privada – figuram princípios como o dever fundamental de pagar impostos (103.º CRP), o da igualdade fiscal (13.º CRP) e o da tributação pelo rendimento real (104.º CRP);
XXIII. São exactamente os princípios do dever fundamental de pagar impostos, de igualdade fiscal e da tributação pelo rendimento real que, a par de outros já referidos, como o da celeridade, o da proibição da prática de actos inúteis e da busca da verdade material, legitimam o aproveitamento da informação bancária recolhida em sede de processo penal.
XXIV. Face ao excerto supra, é de concluir que a sentença ora recorrida não violou o preceituado nos termos do disposto nos n.º 4 e 5 do artigo 63.º-B e n.º 11 do artigo 89.º-A da LGT, nem o disposto nos n.º 1 e 2 do artigo 20.º e n.º 1 e 2 do artigo 26 da CRP, por interpretação inconstitucional do n.º 9 do artigo 63.º-B e do n.º 11 do artigo 89.º-A da LGT.
Nestes termos e nos mais de direito, requer-se a V. Exas. seja negado, integralmente, provimento ao presente recurso, mantendo válida a decisão judicial do Tribunal “a quo” ora recorrida, por consequência, mantendo-se a decisão do Director de Finanças de Aveiro que determinou a fixação da matéria tributável em sede de IRS, referentes aos períodos de tributação dos anos 2005, 2006 e 2007, fixando um rendimento tributável no montante de €1.312.108,20, a enquadrar na categoria G.

3 – O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer nos seguintes termos:
«(…)
A questão que se coloca é a de saber se a prova obtida em sede de inquérito com acesso a documentação bancária ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo Dec.-Lei n.º 298/92, de 31/12, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 36/2010, de 2 de Setembro), pode ser utilizada em sede de procedimento tributário.
Suscita a Recorrente a questão de não ter tido qualquer intervenção no processo penal onde foi obtida toda a informação sobre as contas bancárias e nessa medida não poder exercer os seus direitos de controlo e de defesa e atacar a legalidade e legitimidade do acesso à informação bancária, o que no seu entender configura violação do direito de acesso ao direito (tutela jurisdicional efectiva) e do direito à reserva da intimidade da vida provada, consagrados nos artigos 20.º n.º 1 e 2, e 26.º, n.º 1 e 2, ambos da CRP.
Como se alcança da factualidade dada como assente na sentença recorrida (transcrição do relatório dos Serviços de Inspecção Tributária), os elementos documentais bancários respeitam a contas tituladas pela Recorrente e respectivo ex-cônjuge, constando igualmente que a Recorrente foi constituída arguida no processo de inquérito. Ou seja, o processo-crime donde foi extraída a certidão com os elementos bancários que serviram de suporte ao procedimento de avaliação indirecta ao abrigo do disposto no artigo 89.º-A da Lei Geral Tributária, respeitava a factos imputados à Recorrente e seu cônjuge (entretanto falecido), e no âmbito do qual ambos foram constituídos arguidos pela prática do crime de branqueamento de capitais.
Pese embora a Recorrente não tenha sido pronunciada em sede de processo penal e nessa medida este processo tenha sido arquivado na parte que lhe respeita, certo é que há que apurar a responsabilidade tributária decorrente desses mesmos factos – fluxos monetários que deram entrada nas contas bancárias tituladas pelos dois elementos do agregado familiar. E nessa medida a questão que se coloca é a de saber se a prova obtida nessa sede é passível de ser utilizada no procedimento tributário aberto para o efeito.
No caso concreto dos autos o Ministério público junto da comarca de Vila Nova de Gaia, aquando do encerramento do inquérito, decidiu determinar a extracção de certidão da acusação e a sua remessa à Direcção de Finanças de Aveiro, por resultar significativa divergência entre os rendimentos declarados pelo agregado familiar da Recorrente e os movimentos das contas bancárias por si tituladas, conforme elementos apurados em sede de inquérito.
Na posse de tais elementos, os Serviços de Inspecção Tributária solicitaram a remessa dos elementos relativos aos movimentos bancários existentes no processo-crime e com base nos mesmos propuseram as correcções à matéria tributável objecto de recurso.
Como resulta assente na sentença recorrida, o processo crime foi arquivado na sequência da extinção do procedimento criminal por morte de um dos arguidos e pela falta de responsabilidade quanto ao outro. Extinta a responsabilidade penal, a acção pode prosseguir para efeitos de apuramento da responsabilidade tributária. E com esse propósito a AT pode ter em consideração os elementos documentais bancários obtidos em sede de inquérito?
Como se sabe a obtenção desses elementos documentais pela autoridade judiciária não está sujeita aos mesmos trâmites e controlos a que é sujeita a sua obtenção por parte da administração Tributária.
Nos termos do artigo 63.º-B da LGT, a AT tem o poder de aceder a informações e documentos bancários quando existam indícios da prática de crime em matéria tributária (al. a)) e quando se verifiquem indícios da falta da veracidade do declarado ou esteja em falta declaração legalmente exigível (al. b)).
Mas perante essa diligência pode ser impugnada judicialmente pelo titular da conta, nos termos do n.º 5 do artigo 63.º-B da LGT, ainda que esse recurso tenha efeito meramente devolutivo.
Daí que possa considerar-se que deixando de estar presentes os interesses subjacentes à acção penal, a utilização desse meio de prova por parte da AT para efeitos de tributação deva ficar sujeito aos requisitos e trâmites mais restritos previstos no artigo 63.º-B da LGT.
No âmbito do Acórdão do TCA Norte de 15/10/2010 (recurso n.º 01619/09), citado na sentença recorrida (e no relatórios dos Serviços de Inspecção Tributária), considerou-se, num caso similar de utilização de documentação bancária obtida em sede de processo-crime, que não tendo sido invocada pelo ali recorrente “qualquer ilegalidade na obtenção da informação bancária no processo-crime, não vemos como possa opor-se com sucesso à utilização dessa informação como meio de prova em sede de procedimento tributário”. Ou seja, o TCA considerou que só relevaria eventual ilegalidade na obtenção da prova em sede do processo-crime e como não tinha sido invocada qualquer ilegalidade a esse respeito não existia qualquer impedimento na sua utilização em sede de procedimento tributário.
Já no caso do Acórdão do STA de 05/09/2012 (recurso n.º 837/12) citado pela Recorrente, considerou este tribunal que a administração tributária ao ter acedido à documentação bancária com o fim previsto no então artigo 129.º, n.º 6 do CIRC, não podia utilizar esses elementos no âmbito de outro procedimento, pois nesse caso obstava a que o titular do direito ao sigilo bancário pudesse exercer nesse caso os seus direitos (designadamente o direito ao recurso). Estava em causa o acesso a documentação bancária mediante autorização do titular da conta para efeitos de prova do preço efectivo na transmissão de imóvel.
Afigura-se-nos, contudo, que a fundamentação que suporta este último aresto não é transponível para o caso concreto dos autos. Com efeito, no procedimento previsto no artigo 129.º, n.º 6, do CIRC, o acesso às contas bancárias tituladas pelo sujeito passivo ou pelos seus administradores ou gerentes era concedido mediante autorização destes com um fim específico – prova de que não tinha sido outro o valor da transmissão do prédio. Daí que a informação decorrente desse acesso autorizado não pudesse ser utilizada para outro fim, sob pena de subverter a finalidade da norma e as circunstâncias em que era prestado o consentimento dos titulares das contas bancárias.
No caso concreto dos autos está em causa o recurso à avaliação indirecta resultante de acréscimo de património em divergência não justificada com os rendimentos declarados, ao abrigo do disposto na alínea f) do artigo 87.º e n.º 3 e 5 do artigo 89.º-A, ambos da Lei Geral Tributária.
Nestes casos a AT pode aceder à documentação bancária sem depender do consentimento do titular da conta, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 63.º-B da Lei Geral Tributária, estando essa decisão sujeita aos requisitos de fundamentação e podendo ser objecto de recurso para o tribunal com efeitos meramente devolutivos – n.º 4 e 5 do artigo 63.º-B da Lei Geral Tributária.
Mas será que tendo a administração tributária tido acesso, por via da consulta do processo-crime, à referida documentação, ficará dispensada desse procedimento para fazer uso da mesma em sede de processo tributário?
Veja-se que embora a administração tributária não tenha tido, aparentemente, intervenção na investigação dos crimes objecto do processo de inquérito n.º 703/06.6JAPRT, na maior parte dos casos assim acontece, ao abrigo das disposições do RGIT. E nesses casos a administração tributária pode lançar mão do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 63.º-B da Lei Geral tributária para aceder à documentação bancária. Mas também é certo que actualmente essa disposição legal ficou um pouco esvaziada de interesse, uma vez que a existir indícios da prática de crime o mesmo deve ser participado ao Ministério Público e nesse caso a administração tributária pode ter acesso a essa documentação bancária através dessa entidade, ou seja, providenciando para que o Ministério Público faça uso do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 79.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras para aceder à documentação bancária.
Ora, nestas situações não poderá a administração tributária utilizar esses elementos documentais para apurar a responsabilidade tributária conexa com os crimes em investigação?
Aparentemente o legislador esqueceu-se de disciplinar essas situações.
Não oferece quaisquer dúvidas que no caso de arquivamento do processo ou do trânsito em julgado da decisão final de processo-crime, a administração tributária tem o prazo de caducidade alongado para liquidar a responsabilidade tributária decorrente dos factos ali apurados – artigo 45.º, n.º 5 da Lei Geral Tributária.
No caso concreto dos autos estamos perante uma situação de arquivamento do processo (não relevando a diversidade de fundamentos desse arquivamento no que respeita aos elementos do agregado familiar). Ao contrário de decisão final no processo crime em que tenha havido julgamento e fixados factos que possam ser utilizados como prova por parte da administração tributária, no caso de arquivamento do processo-crime os elementos dele constantes apenas poderão ser utilizados pela administração tributária como factos indiciários de uma determinada realidade. E nessa medida recai sobre a administração tributária o ónus de diligenciar pela obtenção dessa prova. Resultando dos elementos comunicados pelo Ministério Público que a Recorrente e o seu ex-cônjuge teriam obtido proventos significativamente superiores aos declarados nos anos de 2005, 2006 e 2007, recaía sobre a administração tributária o ónus de diligenciar pela obtenção dessa prova, designadamente pelos elementos bancários que revelassem essa situação patrimonial. Configurava-se, assim, a necessidade de aceder à documentação bancária em causa, cujo procedimento está previsto na Lei Geral Tributária, uma vez que estamos perante procedimento tributário e no âmbito do qual assistem aos visados (titulares das contas) direitos ali consignados, designadamente o direito ao recurso da decisão que determinar esse acesso.
Com efeito, os procedimentos de acesso à documentação bancária são diversos conforme se trate de processo-crime ou de procedimento tributário, diversidade essa decorrente dos interesses em jogo, pelo que temos de concluir que essa diversidade se reflecte igualmente na utilização dos dados obtidos num e noutro dos processo.
Prevendo a Lei Geral Tributária que mesmo no caso de indícios da prática de crime a administração tributária esteja sujeita aos trâmites previstos no artigo 63.º-B, ou seja, que o contribuinte seja notificado dessa decisão e que o mesmo possa impugná-la através de recurso para o tribunal, mesmo que se considere que essa informação bancária pode ser obtida junto do processo-crime, esse acesso não pode deixar de estar sujeito às mesmas regras. Ou seja, o contribuinte tem o direito de se opor a que a administração tributária tenha acesso a essa documentação para apurar a responsabilidade tributária. Atente-se que não está em causa responsabilidade a exercer em sede de processo-crime, mas sim apurar responsabilidade tributária, ainda que conexa com um crime (no caso branqueamento de capitais), em sede de procedimento tributário.
Daí que se nos afigure que não releva saber nesses casos se a administração bancária tem ou não que solicitar ás instituições financeiras a documentação bancária em causa, mas sim se a recorrente tem o direito de impugnar o recurso a essa documentação obtida através de certidão do processo crime em sede de procedimento tributário (caso esse acesso não seja negado com base no segredo de justiça).
E a resposta não pode deixar de ser afirmativa. Com efeito assiste à Recorrente o direito de impugnar o recurso a essa documentação bancária, questionando os seus pressupostos e fundamentos ao abrigo do disposto no artigo 63.º-B da LGT.
É certo que a Recorrente não põe em causa esses fundamentos, mas também é certo que não foi observado o procedimento previsto no artigo 63.º-B da Lei Geral Tributária e a Recorrente foi colocada perante uma situação de facto consumada.
Entendemos, assim, que o procedimento de avaliação da matéria tributável está inquinado pelo vício de ilegalidade que lhe é assacado pela Recorrente, por recurso a documentação bancária sem que tivesse sido observado o procedimento previsto no artigo 63.º-B, n.º 3 e 4 da Lei Geral tributária, motivo pelo qual deve a sentença recorrida ser revogada e anulada a decisão de fixação da matéria tributável em causa.»

Com dispensa de vistos, dado o carácter urgente do processo, vêm os autos à Conferência.
- Fundamentação -
4 – Questão a decidir
É a de saber se, como julgado, pode a Administração tributária fazer uso - para fixação da matéria tributável em IRS por métodos indirectos ao abrigo do disposto no artigo 87.º, n.º 1, alínea f) da Lei Geral Tributária (LGT) -, de documentação bancária protegida pelo sigilo bancário obtida em processo penal que terminou com o arquivamento do processo no que respeita à recorrente, sem necessidade de para tal iniciar procedimento de derrogação do sigilo bancário previsto no artigo 63.º-B da mesma Lei, ou se, ao invés e como alegado, tal procedimento é ilegal e inconstitucional, por violação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 26.º da CRP, a interpretação do n.º 9 do artigo 63.º-B e do n.º 11 do artigo 89.º-A ambos da LGT no sentido de que a AT pode utilizar informação bancária apurada no processo penal sem desencadear o procedimento previsto nos números 3 a 7 do artigo 63.º-B da LGT.

5 – Matéria de facto
É do seguinte teor o probatório fixado na sentença recorrida:
Dos factos provados
a) No cumprimento da Ordem de Serviço n.º OI 201202305/6/7, os Serviços da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Aveiro desencadearam um procedimento inspectivo à aqui Recorrente e seu, então marido, com âmbito parcial, visando os anos de 2005, 2006 e 2007, efectuando correcções à matéria tributável em sede de IRS com recurso a métodos indirectos (cfr. Relatório de Inspecção Tributária, a fls. 2 a 17 verso e fls. 20 a 23 do PA apenso aos presentes autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
b) A acção inspectiva fora suscitada no âmbito do processo de inquérito n.º 703/06.6JAPRT, no qual foram constituídos vários arguidos entre os quais a recorrente e seu marido, entretanto falecido, e no qual foi proferido despacho de acusação pelo Ministério Público de Vila Nova de Gaia, no qual figura como denunciante a Direcção Distrital de Finanças do Porto e cujo objecto contende com a prática pelos ali indiciados, nomeadamente, de emissão de facturas falsas e branqueamento de capitais, bem como, outros factos susceptíveis de constituírem crimes de fraude fiscal (cfr. fls. 201 a 650 dos presentes autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
c) No âmbito do processo de inquérito n.º 703/06.6 o Ministério Público ordenou a extracção de certidão do respectivo despacho de acusação e a sua remessa à Direcção de Finanças de aveiro para efeitos de tributação dos rendimentos advindos para os arguidos das actividades ali descritas (cfr. certidão de fls. 201 a 650 dos presentes autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
d) Das correcções resultantes da acção inspectiva levada a efeito e a que se reporta a alínea a) resultou a fixação do rendimento colectável de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) por métodos indirectos nos termos dos artigos 87.º a 90.º da Lei Geral Tributária (LGT), por remissão do artigo 39.º do IRS, nos seguintes termos:
ANOS
RENDIMENTO FIXADO
2005
€663.260,36
2006
€563.811,62
2007
€196.375,84
(Cfr. Relatório de Inspecção Tributária, a fls. 2 a 17 verso e fls. 20 a 23 do PA apenso aos presentes autos);
e) Em 25/02/2011, faleceu o cônjuge da Recorrente, B………… no estado de casado com a ora Recorrente, A………… (cfr. cópia do assento de óbito a fls. 21 dos presentes autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
f) Em 10.12.2012, foi proferida a Decisão Instrutória no processo n.º 703/06.6JAPRT, que correu termos nos Juízos Criminais de Santa Maria da Feira, na qual foi decidido: «a) não pronunciar a arguida A…………; (…) f) declarar extinto o procedimento criminal quanto ao arguido B…………, atento o seu falecimento, nos termos dos artigos n.º 1 e 128.º, n.º 1, ambos do Código Penal (…)» (cfr. doc. junto a fls. 43 a 85 dos presentes autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
g) A Recorrente e o falecido marido apresentaram conjuntamente as declarações de rendimentos relativas aos anos de 2005, 2006 e 2007;
h) Em 01.03.2013, os Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Aveiro elaboraram o Relatório de Inspecção Tributária que está na génese dos presentes autos, que aqui se dá por reproduzido e que parcialmente se transcreve, no qual consta a seguinte fundamentação de facto e de direito: “(…) – reproduzido na sentença recorrida, a fls. 682/720 dos autos (cfr. Relatório/Conclusões dos Serviços de Inspecção Tributária de Aveiro a fls. 2 a 27 verso do PA apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os devidos e legais efeitos);
i) Em 04.03.2013, o Chefe de Equipa dos Serviços de Inspecção fez recair sobre o Relatório/Conclusões a que se reporta a alínea anterior o seguinte PARECER:
«Confirmo. Acção Inspectiva levada a efeito em resultado das investigações realizadas pela polícia judiciária no âmbito do processo de inquérito n.º 703/06.6JAPRT. em conformidade com o disposto no nº 5 do artigo 45º da LGT. O prazo de caducidade da liquidação dos imposto foi alargado em resultado da instauração de inquérito criminal.
Correcções propostas por aplicação de métodos indirectos, tendo em conta os critérios apresentados, essencialmente nos pontos IV e V do presente relatório. Em resultado das divergências detetadas entre os valores que constam das contas bancárias e a situação patrimonial do sujeito passivo, são propostas correcções à matéria tributável, em campo de IRS, no valor de €625.569,18, €525.824,82 e €160.696,20 aos anos de 2005, 2006 e 2007, respectivamente.
O SP exerceu o direito de audição sobre o projecto de relatório que lhe foi notificado. No ponto VIII deste relatório está devidamente analisada toda a argumentação apresentada pelo SP, concluindo-se que serão de manter as correcções propostas.
Foram preenchidos documentos de correcção anexos IRS, para os anos de 2005, 2006 e 2007.
Não foi levantado auto de contra-ordenação porque os factos analisados constam do processo de inquérito n.º 703/06.6JAPRT. Tendo em conta que o domicílio fiscal está localizado em Avintes - Vila Nova de Gaia, será de remeter o presente relatório para a Direcção de Finanças do Porto, para que possa proceder à notificação e fixação dos valores corrigidos. (…)». (…) (Cfr. Relatório/Conclusões dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Aveiro a fls. 2 a 27 verso do PA apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os devidos e legais efeitos);
j) Em 14.03.2013, O Chefe de Divisão dos Serviços de Inspecção de Aveiro fez recair sobre o Relatório/Conclusões a que se reporta a alínea c) o seguinte PARECER: «O presente relatório conclui o procedimento de inspecção nos termos do art. 62.º do RCPIT. Foi exercido o direito de audição previsto no art. 60.º da LGT e o art. 60.º do RECPIT, no ponto VIII deste relatório encontra-se a análise efectuada aos argumentos aduzidos pelo contribuinte, concluindo-se ser de manter os valores constantes do projecto de relatório.
Assim, concordo com as correcções propostas, com referência aos anos de 2005, 2006 e 2007 e descritas nos pontos IV e V:
- Em sede de categoria G de IRS – Acréscimos patrimoniais não justificados pela diferença entre entradas nas contas bancárias não justificadas e os rendimentos mencionados na declaração mod. 3/IRS, nos termos dos artigos 87.º, 88.º e 89.º-A da LGT – Dê-se sequência aos DC Únicos. À consideração superior. (…) (cfr. Relatório/Conclusões dos Serviços de Inspecção Tributária de Aveiro a fls. 2 a 27 verso do PA apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os devidos e legais efeitos);
k) Em 13.03.2013, Na sequência da elaboração do Relatório Inspectivo que está na génese da decisão recorrida, foi proferido pelo Sr. Director de Finanças de Aveiro no exercício de poderes delegados, o seguinte DESPACHO: «Concordo. Proceda-se conforme vem proposto.» (…) (cfr. Relatório/Conclusões dos Serviços de Inspecção Tributária de Aveiro a fls. 2 a 27 verso do PA apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os devidos e legais efeitos);
l) Em 13.05.2013, foi proferido pelo Sr. Director de Finanças da Direcção de Finanças do Porto, em regime de substituição, o seguinte DESPACHO: «Concordo. Notifique-se» (…) (cfr. Relatório/Conclusões dos Serviços de Inspecção Tributária de Aveiro a fls. 2 a 27 verso do PA apenso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os devidos e legais efeitos);
m) Em 21.05.2013, pelo ofício nº 31364/0507, datado de 2013.05.16, foi a Recorrente notificada das correcções resultantes da análise interna levada a efeito pelos Serviços de Inspecção Tributária, nos seguintes termos: «Fica(m) por este meio notificado(s), nos termos do artigo 62.º do RCPIT, das correcções resultantes da acção de inspecção, cujo relatório/conclusões se anexa como parte integrante da presente notificação, respeitante à Ordem de Serviço acima referenciada.
Foi fixado o conjunto de rendimentos líquidos, por métodos indirectos, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 65.º do Código do Imposto sobre O Rendimento das Pessoas Singulares e artigo 89.º-A da LGT, por remissão do artigo 39.º daquele artigo:
Ano(s)/Exercício(s)
Rendimento* Fixado
2005
€663.260,36
2006
€563.811,62
2007
€196.375,84
*Os prejuízos fiscais não são dedutíveis, nos termos do artigo 52º do código do IRC, por remissão dos artigos 55 do CIRS
A decisão de avaliação indirecta tem por base os factos, motivos e fundamentos constantes do relatório de Inspecção, tendo os valores sido fixados de acordo com os critérios e cálculos mencionados no referido Relatório.
Nos termos do artigo 91.º da LGT, poderá(ão) solicitar a revisão da matéria tributável, fixada por métodos indirectos, numa única petição devidamente fundamentada, dirigida ao Director de Finanças da área do seu domicílio fiscal, a apresentar no prazo de 30 (trinta) dias contados a partir da data da presente notificação, com a indicação do perito que o representa e eventualmente, o pedido de nomeação de perito independente.
No caso de ter havido aplicação do regime previsto no artigo 89-A da LGT – manifestações de fortuna e outros acréscimos patrimoniais não justificados – poderá (ão) apresentar recurso para o tribunal tributário, no prazo de 10 dias, nos termos dos n.ºs 7 e 8 do referido artigo, não sendo aplicável o procedimento constante dos artigos 91. e seguintes da LGT. (…) (cfr. fls. 23 e 23 verso do PA apenso aos presentes autos cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
n) Em 30.05.2013, foi apresentado o presente recurso neste Tribunal (cfr. MDDE que capeia o articulado inicial a fls. 1 dos presentes autos);
Factos não provados
Não resultou demonstrado nos autos que os rendimentos declarados conjuntamente pela Recorrente e seu falecido marido relativamente aos anos de 2005, 2006 e 2007 correspondem à realidade e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna ou incremento patrimonial evidenciado, atenta a total ausência de prova.
Mais, não se mostra provado relativamente à Recorrente e seu, agora, falecido marido que: i) a partir, pelo menos, do ano de 1996 quem passou a gerir e dispor de todo o património da recorrente e a suportar as despesas familiares foram os filhos desta; ii) sendo que antes de 1996 era o marido da recorrente que de tudo tratava; o sustento da família passou a provir da actividade dos filhos da recorrente, no comércio da sucata, actividade na qual a Recorrente nunca se envolveu; iii) a recorrente durante toda a sua vida nunca exerceu qualquer actividade profissional remunerada, foi única e exclusivamente doméstica; iv) a recorrente nunca fez quaisquer depósitos nas contas bancárias em causa, nunca levantou quaisquer quantias, nem nunca delas usufruiu e vivia exclusivamente da pensão paga pela Segurança social; v) nos períodos de tributação aqui em causa, os filhos da recorrente não partilhavam com esta quaisquer quantias dessas contas; vi) As contas tituladas pelo marido da Recorrente, no período de 2005 a 2007, eram exclusivamente movimentadas pelos seus filhos enquanto pessoas autorizadas a fazê-lo.

6– Apreciando.
6.1 Do alegado erro de julgamento da sentença recorrida
A sentença recorrida, a fls. 675 a 735 dos autos, julgou totalmente procedente o recurso judicial interposto pela ora recorrente contra a decisão de avaliação da matéria tributável, em sede de IRS, relativa aos anos de 2005, 2006 e 2007, proferida pelo Director de Finanças do Porto em 13 de Maio de 2013, no entendimento de que, contrariamente ao peticionado, não ocorrera a caducidade do direito à liquidação do imposto, a utilização das informações bancárias recolhidas no inquérito criminal por parte da Administração Tributária não era ilegal e que se verificavam os pressupostos do recurso à avaliação indirecta.
Para fundamentar o decidido quanto à legalidade da utilização das informações bancárias por parte da Administração fiscal – questão à qual a recorrente restringe o seu recurso, como decorre das suas alegações e respectivas conclusões – a sentença recorrida, depois de fazer uma breve incursão no regime do sigilo bancário, procurando extrair da sua evolução o seu sentido e alcance (cfr. sentença recorrida, a fl. 721 dos autos) e tendo presente o disposto no artigo 63.º-B da Lei Geral Tributária, que transcreve (fls. 724/726 dos autos), considerou que (cfr. sentença recorrida, a fls. 727/728 dos autos):
«Sendo certo que o acesso à informação bancária por parte da AT far-se-á, por via de regra, através do procedimento previsto no art. 63.º-B da LGT (…) – preceito este que regula de modo exaustivo o procedimento a seguir por aquela nos diversos casos em que o legislador lhe admite aceder à informação bancária dos contribuintes, contudo, não quedou esta agrilhoada a este recurso processual, e espartilhada por um único meio de recolha de prova relativa a movimentos bancários, para legitimar a sua actuação.
Desde logo, basta atentar no preceituado no n.º 9 do artigo 63-B da LGT segundo o qual, «(o) regime previsto nos números anteriores não prejudica a legislação aplicável aos casos de investigação por infracção penal (…)», o que, s.e.o, se traduz na faculdade de, no âmbito do procedimento de inspecção tributária, estando verificados os pressupostos legais do acesso administrativo à informação bancária, esta aceder ou lançar mão dos elementos de prova legitimamente recolhidos em sede de processo penal.
De facto, bem andou o legislador tributário ao acolher tal solução, uma vez que não se justificará que a AT, num manifesto desperdício de tempo e de recursos materiais e humanos, promova o procedimento previsto naquele artigo com vista à obtenção de informação bancária, quando já tenha ocorrido legitimamente o levantamento do segredo e o acesso à informação bancária em sede de processo penal.
Note-se, ainda, que o regime plasmado no n.º 11 do art. 63.º-B da LGT (Que dispõe que «A avaliação indirecta no caso da alínea f) do n.º 1 do artigo 87.º deve ser feita no âmbito de um procedimento que inclua a investigação das contas bancárias».), norma que a Recorrente considera ter sido violada pela AT, impõe apenas a investigação das contas bancárias e já não que a investigação das contas bancárias a efectuar no âmbito do procedimento tributário tenha que ser efectuada nos termos do art. 63.º-B, da LGT, pelo que nada obsta a que essa investigação seja feita no âmbito do processo penal. Ou seja, nada obsta a que a AT utilize a informação bancária apurada no processo penal, para dela extrair as legais consequências em sede de tributação, nomeadamente, de rendimentos omitidos. Bem pelo contrário, a AT tem o poder-dever de utilizar as provas produzidas no processo penal que possam assumir relevância para efeitos tributários, designadamente para determinar o rendimento colectável para efeitos de tributação em IRS, como o fez, e bem, no caso sub judice. (Neste sentido vide o douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, Processo n.º 01619/09,0BEBRG de 15-10-2010).
Face a todo o exposto, falece o alegado pela Recorrente, não se mostrando violado o regime ínsito nos artigos n.º 4 e 5 do artigo 63.º-B da LGT e 26.º n.ºs 1 e 2 da CRP.
Discorda do assim decidido a recorrente, alegando que, contrariamente ao julgado, é ilegal a utilização pela Administração tributária de informação bancária obtida no processo penal sem desencadear o procedimento administrativo de derrogação do segredo bancário previsto no artigo 63.º-B n.ºs 3 a 7 da LGT e que a interpretação do n.º 9 do artigo 63.º-B e do n.º 11 do artigo 89.º-A, ambos da LGT no sentido de que a AT pode utilizar informação bancária apurada no processo penal sem desencadear o procedimento previsto nos números 3 a 7 do artigo 63.º-B da LGT, seria manifestamente inconstitucional, por violação dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa.
Contra-alegou a recorrida no sentido da manutenção do julgado recorrido.
O Excelentíssimo Procurador-Geral adjunto junto deste Supremo Tribunal, no seu bem fundamentado parecer junto aos autos e supra transcrito, pronuncia-se no sentido do provimento do recurso, porquanto o procedimento de avaliação da matéria tributável está inquinado pelo vício de ilegalidade que lhe é assacado pela Recorrente, por recurso a documentação bancária sem que tivesse sido observado o procedimento previsto no artigo 63.º-B, n.º 3 e 4 da Lei Geral Tributária, motivo pelo qual deve a sentença recorrida ser revogada e anulada a decisão de fixação da matéria tributável em causa.
Vejamos.
Como bem salienta o Excelentíssimo Procurador-Geral adjunto no seu parecer junto aos autos e supra transcrito, e diversamente do que sucedia na situação que foi objecto do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte citado na sentença recorrida e nas contra-alegações da Autoridade Tributária e Aduaneira, no caso concreto dos autos estamos perante uma situação de arquivamento do processo – porquanto foi proferido pelo juiz de instrução despacho de não pronúncia da recorrente em relação ao crime que lhe era imputado (branqueamento de capitais) e a extinção do procedimento criminal, por morte do arguido, em relação ao seu defunto marido (cfr. doc. de fls. 43 a 85 dos autos, a que se refere a alínea f) do probatório fixado) – onde, ao contrário de decisão final no processo crime em que tenha havido julgamento e fixados factos que possam ser utilizados como prova por parte da administração tributária, no caso de arquivamento do processo-crime os elementos dele constantes apenas poderão ser utilizados pela administração tributária como factos indiciários de uma determinada realidade.
É que, não tendo o processo criminal prosseguido para julgamento, não foi dada à recorrente a possibilidade de sindicar os elementos de prova recolhidos no inquérito, sendo que, em relação aos documentos bancários aí obtidos em derrogação do dever de segredo bancário segundo as regras processuais penais aplicáveis do âmbito do inquérito criminal – justificadas pelos fins punitivos próprios deste processo e expressamente excepcionadas pelo n.º 9 do artigo 63.º-B da LGT do procedimento administrativo de derrogação do segredo bancário para efeitos fiscais -, a sua utilização para fins tributários (que não para fins punitivos), pressupõe, para que seja conforme à lei, que a Administração tributária desencadeie o procedimento de derrogação do segredo bancário previsto no artigo 63.º-B da LGT, no âmbito do qual se permitirá ao visado interpor recurso judicial da decisão administrativa que determina o acesso à informação bancária (cfr. o n.º 5 do artigo 63.º-B da LGT).
Ora, como bem diz o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer junto aos autos, em casos como o dos autos, prescindir do procedimento administrativo de derrogação do sigilo bancário para efeitos de fundamentação da decisão de fixação da matéria tributável por métodos indirectos em razão de indícios da existência de acréscimos patrimoniais não justificados, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 87.º da LGT traduz-se, a final, na postergação do direito da recorrente de impugnar o recurso a essa documentação bancária, questionando os seus pressupostos e fundamentos ao abrigo do disposto no artigo 63.º-B da LGT, o que não se afigura admissível quando em causa esteja, não já a responsabilidade penal, mas mera responsabilidade tributária, e nem sequer conexa com o crime, pois que por este não foi a recorrente pronunciada.
E nem se diga, contra o entendimento que perfilhamos, que tal dever de observância do procedimento previsto no artigo 63.º-B da LGT para utilização de informação bancária obtida no inquérito criminal se traduz num manifesto desperdício de tempo e de recursos materiais e humanos, porquanto não pode considerar-se desperdício a observância das regras procedimentais instituídas pelo legislador que procuram traduzir, no domínio tributário, um justo equilíbrio entre, por um lado, o direito do contribuinte à reserva da sua vida privada, e por outro, o dever de liquidar os impostos devidos.
No caso dos autos, a Administração tributária fundamentou a decisão de fixação da matéria tributável por métodos indirectos ao abrigo do artigo 87.º, n.º 1, alínea f) da LGT com base em documentos bancários recolhidos no inquérito criminal, sem ter observado o procedimento prescrito no artigo 63.º-B da LGT, ou seja, sem decisão fundamentada com expressa menção dos motivos concretos que a justificam do director-geral dos Impostos ou seu substituto legal, que seja notificada ao visado e da qual possa este interpor recurso (no caso, com efeito meramente devolutivo), que, em caso de procedência, determina a impossibilidade de utilização dos elementos de prova obtidos para qualquer efeito em desfavor do contribuinte (cfr. o n.º 6 do artigo 63-B da LGT).
Ao ter actuado como actuou, a Administração tributária eliminou o direito da recorrente de impugnar a decisão administrativa de derrogação do segredo bancário, com manifesto prejuízo dos seus direitos, constitucionalmente protegidos, de acesso aos tribunais para tutela da reserva da sua vida privada (artigos 20.º n.º 1 e 26.º n.º 1 e 2 da Constituição), razão pela qual tal decisão de fixação da matéria tributária está inquinada de ilegalidade, impondo-se a sua anulação.

O recurso merece provimento.
- Decisão -
7 - Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar procedente o recurso judicial interposto da decisão de fixação dos rendimentos tributáveis em IRS dos anos de 2005 a 2007, anulando a decisão sindicada.

Custas pela recorrida, em 1.ª instância e neste STA.

Lisboa, 4 de Junho de 2014. - Isabel Marques da Silva (relatora) - Pedro Delgado - Fonseca Carvalho.