Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01108/19.4BELSB
Data do Acordão:09/10/2020
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CARLOS CARVALHO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
ASILO
PROTECÇÃO INTERNACIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:É de admitir a revista do acórdão que revogando a decisão de TAF considerou, relativamente a um pedido de proteção internacional tido por inadmissível porque a Itália seria o Estado responsável, que o SEF não podia decidir sem previamente averiguar se havia «falhas sistémicas» no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento de refugiados naquele país, já que a pronúncia, para além controversa e replicável, mostra-se dissonante com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, carecendo de reapreciação.
Nº Convencional:JSTA000P26288
Nº do Documento:SA12020091001108/19
Data de Entrada:07/20/2020
Recorrente:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Recorrido 1:A................
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em apreciação preliminar, na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA [SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS (SEF)] invocando o disposto no art. 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [CPTA], peticiona a admissão do recurso de revista por si interposto do acórdão de 14.05.2020 do Tribunal Central Administrativo Sul [doravante TCA/S] [cfr. fls. 288/305 - paginação «SITAF» tal como as ulteriores referências à mesma, salvo expressa indicação em contrário], que tendo concedido provimento ao recurso de apelação que A………., devidamente identificado nos autos, havia deduzido por inconformado com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa [doravante TAC/L] [cfr. fls. 174/186 - que havia julgado improcedente a ação administrativa instaurada], revogou esta decisão e conhecendo em substituição determinou «que o Estado Português assuma a responsabilidade pela transferência do RECORRENTE para o seu País de origem – Guiné – em execução da decisão das autoridades italianas e logo que as condições nacionais o permitam, ao abrigo do art. 33.º da Convenção de Genebra e art. 47.º da Lei do Asilo».

2. Motiva a necessidade de admissão do recurso de revista [cfr. fls. 314/340] ao que se infere da motivação expendida «para uma melhor aplicação do direito», invocando, mormente, a incorreta aplicação dos arts. 03.º e 18.º do Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho [vulgo Regulamento de Dublin], 33.º da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados [vulgo Convenção de Genebra], 19.º-A, 36.º, 37.º, 38.º e 47.º da Lei n.º 27/2008, de 30.06 [alterada e republicada pela Lei n.º 26/2014, de 05.05 - doravante «Lei do Asilo»].

3. Foram produzidas contra-alegações [cfr. fls. 346/349], concluindo o A., ora recorrido, pela improcedência da revista.
Apreciando:

4. Dispõe-se no n.º 1 do art. 150.º do CPTA que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

5. Do referido preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s no uso dos poderes conferidos pelo art. 149.º do CPTA, conhecendo em segundo grau de jurisdição, não são, em regra, suscetíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar quando: i) esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, revista de importância fundamental; ou, ii) o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

6. O TAC/L julgou totalmente improcedente a pretensão do A., aqui recorrido, considerando, no seu discurso fundamentador, que o ato impugnado [decisão do Diretor Nacional do SEF, de 14.01.2019, que considerou o pedido de proteção internacional que o mesmo havia apresentado inadmissível, de acordo com o disposto na al. a), do n.º 1, do art. 19.º-A, e n.º 2, do art. 37.º, ambos da Lei do Asilo, e com base na informação n.º 0104/GAR//2019, do Gabinete de Asilo e Refugiados do SEF considerou Itália o Estado responsável pela retoma a cargo do A. ao abrigo do art. 25.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.º 604/2013] não incorre em infração do art. 03.º, n.º 2, do referido Regulamento em articulação com o art. 19.º-A da Lei do Asilo, inexistindo «o invocado défice instrutório, pelo que deve o Autor ser transferido para Itália, porque o pedido de proteção internacional efetuado ao Estado Português é inadmissível».

7. O TCA/S revogou este juízo sustentando, por um lado, que a situação sub specie não teria cobertura ou não estaria sujeita ao âmbito de previsão do art. 03.º, n.º 2, do referido Regulamento, e que, por outro lado, «existindo já uma decisão tomada por um Estado Membro e tendo sido esta de indeferimento, a retoma a cargo pelo Estado Membro responsável - in casu, Itália - cfr. art. 18.º, n.º 1, alínea d), do Regulamento de Dublin III -, não deixa de poder ser evitada, não por via da cláusula de salvaguarda prevista no 2§ do mesmo art. 3.º, que é aqui inaplicável, dado já existir uma decisão tomada por um Estado Membro, mas por via da aplicação direta do art. 33.º, n.º 1 e 2, da Convenção de Genebra e do princípio de non refoulement», impondo-se, então, que, à luz da documentação inserta nos autos, o Estado Português tivesse procedido à devida instrução do procedimento quanto às «condições atuais existentes no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado-Membro considerado responsável, in casu, Itália, para que se possa verificar se, no caso concreto, existem motivos que determinem a impossibilidade de tal transferência», argumentando que a situação em presença seria distinta da que foi julgada por este Supremo Tribunal no seu acórdão de 16.01.2020 - Proc. n.º 02240/18.7BELSB.

8. O R., ora recorrente, insurge-se contra este juízo, acometendo-o de erro de julgamento por incorreta interpretação e aplicação do quadro normativo atrás enunciado.

9. As questões da delimitação e enquadramento/sujeição ao Regulamento Dublin e à Lei do Asilo na sua articulação com a Convenção de Genebra e, bem assim, a do deficit de instrução dos procedimentos de decisão de devolução de uma pessoa a um País terceiro quanto às condições atuais existentes no procedimento de asilo e no acolhimento no Estado-Membro considerado responsável [in casu a Itália] para que se possa verificar se, no caso concreto, existem motivos que determinem a impossibilidade de tal transferência, tem vindo a colocar-se na jurisdição administrativa com frequência, constituindo matéria juridicamente relevante e cuja solução é aplicável em casos futuros.

10. Temos, por outro lado, que o acórdão recorrido do TCA/S, pese embora faça menção à jurisprudência produzida sobre a matéria por este Supremo, acaba, no juízo que faz, por decidir, primo conspectu, ao arrepio da mesma, jurisprudência que, entretanto, veio a ser reiterada [cfr., nomeadamente, ainda os Acs. de 04.06.2020 - Proc. n.º 01322/19.2BELSB, de 02.07.2020 - Procs. n.ºs 01786/19.4BELSB e 01088/19.6BELSB, e de 09.07.2020 - Proc. n.º 01419/19.9BELSB], donde se segue a necessidade de recebimento do recurso, para reanálise do assunto com vista a uma esclarecida e melhor aplicação do direito.

11. Assim, tudo conflui para a conclusão de que se mostra necessária a intervenção deste Supremo e daí que se justifique a admissão da revista.

DECISÃO
Nestes termos e de harmonia com o disposto no art. 150.º do CPTA, acordam os juízes da formação de apreciação preliminar da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal em admitir a revista.
Sem custas [cfr. art. 84.º da Lei n.º 27/2008].
D.N..
Lisboa, 10 de setembro de 2020
[O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, os Conselheiros Jorge Artur Madeira dos Santos e José Augusto Araújo Veloso]
Carlos Luís Medeiros de Carvalho