Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02694/08.0BEPRT 0169/17
Data do Acordão:12/09/2021
Tribunal:2 SECÇAO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IRC
ISENÇÃO
ASSOCIAÇÃO DE MUNICÍPIOS
Sumário:I - Apesar de o art. 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, equiparar, quanto ao regime fiscal, as associações de municípios e as autarquias locais, o art. 9.º do CIRC, no que respeita à isenção de imposto, distingue as autarquias locais das associações de municípios.
II - A isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 9.º do Código do IRC não configura uma isenção subjectiva simples, mas uma isenção subjectiva mista, porque faz depender o tratamento mais favorável aí consagrado de uma condição objectiva, qual seja o não exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas.
III - Não permitindo a matéria de facto que foi dada como assente pelo tribunal de 1.ª instância aferir sobre a actividade desenvolvida pela associação de municípios, impõe-se a anulação oficiosa do julgado e o regresso dos autos à 1.ª instância para nova decisão, precedida da fixação da pertinente matéria de facto.
Nº Convencional:JSTA000P28689
Nº do Documento:SA22021120902694/08
Data de Entrada:02/22/2017
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:LIPOR - SERVIÇOS INTERMUNICIPALIZADOS DE GESTÃO DE RESÍDUOS DO GRANDE PORTO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 2694/08.0BEPRT (169/17)

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que, julgando procedente a impugnação judicial deduzida por “LIPOR – Serviço Intermunicipalizado de Gestão de Resíduos do Grande Porto”, anulou a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) que lhe foi efectuada, com referência ao ano de 2004, por a Administração Tributária (AT) ter considerado que não podia beneficiar da isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 9.º do Código do IRC (CIRC).

1.2 O recurso foi admitido, com subida imediata e nos próprios autos e a Recorrente apresentou a motivação do recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor (Porque usamos o itálico nas transcrições, os excertos que estavam em itálico no original surgirão, aqui como adiante, em tipo normal.):

«A. Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou procedente a impugnação sub judice, deduzida da liquidação de IRC de 2004, declarando que “prosseguindo a impugnante eminentemente um serviço público – o de recolha e tratamento de resíduos”, (…) “não restam dúvidas de que a impugnante sempre usufruiria de isenção à luz do artigo 9.º al. b), do CIRC”.

B. Com o assim decidido, e salvo o devido respeito, não pode a Fazenda Pública conformar-se, por entender que a sentença recorrida se mostra afectada de erro sobre os pressupostos de direito, em termos que afectam irremediavelmente a validade substancial da sentença.

C. Sem prescindir nem conceder da inaplicabilidade da isenção referida no art. 36.º da L. n.º 11/2003 à tributação da impugnante em sede de IRC, a Fazenda Pública defende que, tendo a L. n.º 11/2003, de 13.05, sido revogada pela L. n.º 45/2008, de 27.08, não havia sequer que ponderar a aplicação da norma remissiva constante do seu art. 36.º, porque a ressalva do n.º 6 do art. 38.º da L. n.º 45/2008 refere-se exclusiva e precisamente à manutenção em vigor da natureza de pessoa colectiva de direito público, indicada pelo n.º 2 do art. 2.º da L. n.º 11/2003, e não a todo o regime consagrado nesta lei.

D. A manutenção da natureza de direito público não significa que se possa invocar para as associações de municípios de fins específicos a manutenção do benefício das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais, porque este benefício decorria tão só do art. 36.º da L. n.º 11/2003 e não é inerente à natureza de pessoa colectiva de direito público.

E. Ao permitir a manutenção em vigor, estritamente, da natureza de direito público para as associações de municípios de fins específicos constituídas até à entrada em vigor da L. n.º 45/2008, como é o caso da impugnante, esta lei pretendeu restringir o alcance do regime pretérito que aceitou continuasse a reger essas associações, devendo entender-se, do seu conjunto normativo, que a L. n.º 45/2008 pretendeu que após a sua entrada em vigor só as associações de municípios de fins múltiplos ou comunidades intermunicipais beneficiariam das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais.

Sem embargo,

F. A Fazenda Pública entende também ser de rejeitar a afirmação que admite que a remissão do art. 36.º da L. n.º 11/2003, de 13.05, é realizada para os termos previstos na al. a) do art. 9.º, n.º 1, do CIRC, em que as associações de municípios são equiparadas a autarquias locais e como tal estão isentas de IRC, “por mais discutível que seja a opção legislativa ou a redacção da norma remissiva e da norma de isenção”.

G. Se o legislador pretendesse que as associações de municípios beneficiassem da isenção que vale para as autarquias locais a que se refere a al. a) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC não só não restava espaço para a aplicação da al. b) do mesmo preceito, havendo que considerá-la implicitamente revogada a partir da entrada em vigor da L. n.º 11/2005, como igual conclusão teria de se retirar para qualquer norma constante de qualquer diploma fiscal que previsse, em condições específicas de cada tipo fiscal, isenções para as associações de municípios.

H. Revela-se mais razoável e plausível que o legislador tenha querido salvaguardar a aplicação das normas especiais que fixem tratamento especial para as essas associações, preservando o efeito útil destas – assim, a remissão genérica do art. 36.º da L. n.º 11/2003 não prejudica a aplicação de normas especiais, caso da al. b) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC.

I. No que concerne à aplicação à impugnante da isenção da al. b) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC, razão de ser do enquadramento da associação de municípios impugnante como sujeito passivo não isento de IRC que exerce a título principal actividades de natureza comercial e industrial decorre da reconhecida realização de operações económicas por parte da impugnante com carácter empresarial, ie, buscando a melhor combinação dos factores de produção para a percepção de acréscimos patrimoniais, visando obter uma diferença positiva entre os valores do património líquido no início e no fim do período de tributação, que a impugnante destina segundo a gestão dada pela sua administração.

J. Relevante, para o caso delineado nos autos, é, então, a natureza e modo de exercício da actividade pela impugnante, que gerou os valores objecto de tributação, pois que ao direito fiscal importa sobretudo a real configuração das situações de facto, a realidade económica, a realidade de facto, conforme estatui, de forma genérica, no n.º 3 do art. 11.º da LGT.

K. Sendo certo que a impugnante dispõe de organização comercial e industrial em ordem ao exercício de uma actividade de produção ou troca de bens e serviços que é capaz de gerar rendimentos e, portando de acréscimo patrimonial.

L. Daí que a omissão do escopo legal ou estatutário da impugnante de qualquer finalidade lucrativa efeito não assuma relevo excludente, pois que as actividades exercidas pela impugnante são reconhecidamente dirigidas à obtenção [de] sucessivos acréscimos patrimoniais, obtidos pela eficiente combinação de factores de produção, conseguindo não apenas economias de escala, mas “maior rentabilidade”, “redução de custos” e, por isso, aumento de proveitos.

M. Tais acréscimos destinam-se a ser aplicados na estrutura produtiva, reduzindo as contribuições financeiras que os Municípios associados têm o dever de prestar, repartindo assim, indirectamente, os proveitos entre esses associados.

N. É esse acréscimo patrimonial verificado na associação impugnante em consequência do modo como exerce a sua actividade que determina a sua tributação em IRC.

O. A prossecução de finalidades típicas de um serviço público não obsta em si mesma, na perspectiva da Fazenda Pública, ao preenchimento das condições para que a associação de municípios impugnante se constitua em sujeito passivo não isento de IRC, desde que exerça as actividades atribuídas em vista daquela prossecução com natureza empresarial, nos termos do n.º 4 do art. 3.º do CIRC.

P. As actividades de tratamento e valorização dos resíduos urbanos sólidos que compõem a parte do objecto da associação impugnante indicada no n.º 1 do art. 2.º dos seus Estatutos podem ter sido estabelecidas em função da satisfação de fins ou interesses da colectividade, podem manifestar a prossecução de um serviço público,

Q. mas o modo empresarial através do qual é exercida, em conjunto com as demais, e o resultado lucrativo que, em repetidos exercícios económicos é conseguido, reintegrado em toda a estrutura produtiva, preenche a estatuição da lei fiscal de sujeição e não isenção, e deve determinar a tributação daquela entidade em sede de IRC.

R. Posto que a impugnante exerce a sua actividade de modo empresarial, buscando acréscimos patrimoniais entre o início e o fim de cada exercício económico, tem de concluir-se que os seus custos ou gastos, tal como os seus proveitos ou ganhos, fazem parte do apuramento do resultado líquido desse exercício.

S. Em face do exposto, a associação aqui impugnante exercendo sua actividade de modo empresarial em vista do contínuo incremento do seu património, aliviando a carga financeira que impende sobre os seus membros, e evidenciando capacidade contributiva, é sujeito passivo não isento de IRC.

T. Como tal, a situação da impugnante subsume-se à al. b) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC, dado que, no ano fiscal a que respeita a liquidação impugnada, se demonstrou exercer a título principal actividade comercial, industrial ou agrícola com carácter empresarial e escopo lucrativo.

U. Adicionalmente, e sem reserva dos fundamentos do presente recurso até aqui expostos, a Fazenda Pública não se conforma com a condenação em custas proferida na sentença recorrida na vertente em que, de modo implícito, e ao abrigo do n.º 7 do art. 6.º do RCP, considera não haver fundamento bastante para dispensar a Fazenda Pública do pagamento do remanescente da taxa de justiça correspondente ao valor da causa superior a € 275.000,00.

V. Entende a Fazenda Pública, com respeito por diversa opinião, que se encontram preenchidas todas as condições previstas no art. 6.º do RCP, n.ºs 1 e 7, para a dispensa do pagamento do remanescente, pois a causa não se mostra de decisão especialmente complexa, não houve incidentes, nem má conduta processual das partes.

W. Como tal, a Fazenda Pública pugna, com o maior respeito, que a decisão recorrida deve ser alterada quanto às custas, por erro de julgamento, e substituída por outra que dispense a Fazenda do pagamento do remanescente da taxa de justiça na parte devida pelo valor da causa superior a € 275.000,00, nos termos do n.º 7 do art. 6.º do RCP.

Termos em que, e nos melhores de direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com o que se fará inteira JUSTIÇA».

1.3 A Impugnante apresentou contra-alegações, que rematou com conclusões do seguinte teor:

«A. Inconformada com a decisão a Fazenda Pública interpôs o presente recurso, a cujas alegações se apresenta agora resposta.

B. Entende a recorrida que a decisão de que vem interposto o presente recurso não merece censura, não lhe sendo imputável qualquer erro de julgamento de direito, por a mesma se encontrar em conformidade com as exigências de fundamentação impostas pelo artigo 123.º do CPPT e pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 659.º do CPC, ou, bem assim, qualquer nulidade das previstas no artigo 125.º do CPPT e no artigo 668.º do CPC.

C. Pelo contrário, a recorrente limitou-se a uma vez mais reiterar aquele que é o seu posicionamento originário – impugnado – face às questões jurídicas suscitadas.

D. A Fazenda Pública limitou-se, enfim, a repetir nesta sede, os mesmos dogmas ou preconceitos que já tinha tomado públicos no relatório que fundamenta o acto tributário impugnado, basicamente assentes em falsos pressupostos, num incompreensível desconhecimento da matéria de facto e numa profunda ignorância do alcance das funções e do serviço públicos.

E. A respeito da questão central dos presentes autos, a de saber se a LIPOR exerce ou não, a título principal, uma actividade comercial e industrial, o Tribunal a quo não hesita em responder negativamente. E fá-lo com a consciência de que, como consta dos estatutos da Impugnante publicados em Diário da República e não colocado em causa pela AT, o objecto imediato da LIPOR é a reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios associados e por outras entidades que a associação venha a admitir, bem como a gestão, manutenção e desenvolvimento das infra-estruturas necessárias para o efeito; assim sendo, a actividade exercida pela LIPOR tratamento e aproveitamento de outros resíduos não perigosos reveste natureza eminentemente dum serviço público – vulgarmente designado de recolha e tratamento de lixo urbano – pois, a circunstância de tal actividade poder ser exercida por privados (o que não é o caso), não retira esse carácter de serviço público (pelo menos, no sentido de utilidade pública).

F. Ora, assim não pensa a recorrente, que coloca a noção de “actividade exercida a título principal” no centro das soluções que propõe: todo o Direito a que a recorrente recorre – uma vez estabelecida a sua posição de não aplicação à LIPOR da isenção de IRC – para apurar o lucro tributável e as tributações autónomas da empresa tem esse conceito como pressuposto.

G. A tese prosseguida pela recorrente merece, no entanto, alguns esclarecimentos: pela actividade comercial ou industrial (ou, ainda, agrícola) que consubstancia o objecto de uma sociedade comercial entende-se, nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do Código do IRC, uma actividade que consista na realização de operações económicas. Depois, de acordo com a Doutrina unânime, por actividade económica entende-se uma actividade que em regra gera lucros distribuíveis pelos sócios (cfr., por todos, JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, Vol. II – Das Sociedades –, págs. 8 e seguintes). De resto, é o que se recolhe da lei: segundo o artigo 980.º do Código Civil, o “[c]ontrato de sociedade é aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade”.

H. Sublinhe-se, neste momento, que, nem nas associações do regime geral (cfr. o artigo 157.º do Código Civil), nem nas associações municipais, o lucro pode ser repartido pelos associados.

I. Ora, a noção de “actividade exercida a título principal” tem de ser interpretada por remissão para os conceitos de fim associativo ou ainda, subsidiariamente, de objecto social, e atendendo, mais concretamente, ao entendimento que possamos fazer do que é que são fins ou objectos principais e acessórios.

J. Neste ponto, a sentença recorrida é exímia: subjacente ao sentido da decisão do Tribunal está, pois, a caracterização de um determinado fim de uma associação ou objecto de uma sociedade como “principal” dever-se-á fazer por apelo ao critério que melhor conjugue, por um lado, a teleologia – isto é, o propósito, quanto a essa matéria, de quem constituiu a associação ou a sociedade – com, por outro lado, a formalidade – ou seja, a percepção que a comunidade jurídica pode ter de qual é esse objecto a partir dos documentos públicos que garantem a transparência e a segurança do tráfego jurídico. Assim sendo, melhor meio não há para averiguar qual o objecto principal de uma associação ou sociedade do que indagá-lo a nível estatutário.

K. E esta tese é, de resto, bem apoiada na Doutrina societária, que vem definindo o objecto da sociedade como a actividade económica de não mera fruição que o sócio ou os sócios se propõem exercer através da sociedade ou propõem que a sociedade exerça (cfr., de novo por todos, JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Ob. Cit., págs. 8 e seguintes). Pelo que, então, o objecto principal dessa sociedade (ou o fim principal de uma associação) há-de sempre ser aquele que os sócios (ou os associados) fizeram, em primeira linha, constar expressamente do acto constituinte ou negócio jurídico por excelência expressivo da sua vontade – isto é, os estatutos.

L. Ora, de acordo com o n.º 2 do artigo 2.º da Lei 11/2003, as associações de municípios de fins específicos (como a LIPOR) são pessoas colectivas de direito público criadas para a realização de interesses específicos comuns aos municípios que as integram, isto é, interesses exclusivamente de serviço público, não lucrativo ou empresarial. Aliás, do artigo 5.º do mesmo diploma extrai-se a confirmação de que as mesmas não podem exercer (pelo menos a título principal) uma actividade que gere lucros para os associados (os municípios que as integram). As atribuições aí elencadas, enquadradas até pela referência do corpo do n.º 1 a “fins públicos”, nada têm a ver com um qualquer carácter empresarial, constituindo simplesmente atribuições dos próprios municípios, agora levadas a cabo de forma delegada pelas associações.

M. É o que acontece no caso concreto, como bem preconiza a sentença de que se recorre: é ao Estado e, mais especificamente, aos municípios – como todos reconhecem – que compete promover e garantir a realização dos serviços básicos de recolha e tratamento dos lixos: não é este um compromisso ou responsabilidade do Estado – dos municípios nos resultados da actividade, mas um verdadeiro “dever que visa garantir sua existência”, o que, aplicado ao caso e à questão sub judice, transforma a actuação de uma associação com aquela natureza numa decorrência daquela responsabilidade de execução, não focalizada num interesse de cariz lucrativo, e já não numa responsabilidade de execução privada (embora de interesse público) de carácter empresarial.

N. Por outro lado, qualquer outro critério (de cariz material) para qualificação como principal de um determinado fim associativo ou objecto social seria imprestável.

O. Referimo-nos a um critério relativo, por exemplo, à contribuição das receitas respectivas para a globalidade dos resultados da associação ou da empresa ou aos níveis de afectação a esse fim dos recursos da entidade em causa – segundo o qual apenas poderíamos concluir que uma actividade não-lucrativa é a actividade exercida a título principal se as receitas e/ou os níveis de afectação de recursos superassem as receitas e os níveis de afectação às restantes. Um tal critério seria imprestável, desde logo, em abstracto, porque, de novo, não podemos esquecer a natureza das associações de municípios.

P. É que, como também se defende na decisão recorrida, uma associação deste tipo dedica-se, exclusiva ou principalmente, à realização, fora da lógica concorrencial, dos serviços de interesse público (não-lucrativos) típicos da actividade municipal (tendo essencialmente como contrapartida financeira o produto das contribuições, transferências, dotações, subsídios ou comparticipações municipais, estatais e comunitárias), para o que necessita, muitas vezes, de recorrer ao exercício de outras actividades, a estas acessórias, como meio de financiamento da actividade principal – é o que acontece no caso concreto! –.

Q. Nestes termos, o Tribunal a quo compreendeu (bem) que uma qualquer actividade complementar da associação, a que estejam subjacentes prestações de serviços com escopo lucrativo e uma actuação no mercado, facilmente represente a fatia maioritária dos rendimentos da associação por muito acessória que seja a intencionalidade dos associados na sua prossecução e residuais os meios a ela afectos. Mas o mesmo critério seria imprestável igualmente em concreto.

R. Tendo em conta que a actividade acessória da LIPOR se resume à recolha e tratamento de resíduos, bem se percebe também, como já dissemos, que os respectivos (e eventuais) lucros só sejam possíveis porque a LIPOR aproveita todo um know-how e uma estrutura montada para a sua actividade principal de serviço público, assim logrando objectivos de economia de escala que de outra forma nunca conseguiria.

S. Ademais, como bem compreendeu o Tribunal a quo, os proveitos resultantes daquela actividade acessória são sempre aplicados no desenvolvimento das condições em que é levada a cabo a actividade principal, muitas vezes até por imposições de Directivas comunitárias e regulamentos do sector.

T. É, pois, partindo do princípio de que a LIPOR não exerce uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola a título principal que devemos interpretar a sua situação tributária.

U. No fundo, temos que, a título principal, cabe à LIPOR a assunção directa de responsabilidades que relevam imediatamente da prossecução das atribuições dos municípios nela integrados (recolha e tratamento de resíduos) – é esta a destinação do essencial da sua actividade –, assumindo a impugnante a condição de um operador dedicado, isto é, de uma entidade cuja actuação de serviço público e, nessa medida, desinteressada e altruísta, visa em derradeira instância alimentar ou satisfazer as necessidades daqueles municípios no sector específico da gestão de resíduos.

V. Sobre o conceito de exercício, a título principal ou meramente acessório, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, deve atender-se ainda ao teor do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, em 29.11.2000, no âmbito do processo n.º 025580, de acordo com o qual “I- Podem beneficiar da isenção de IRC prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC, as pessoas colectivas de utilidade pública que tenham fins predominantemente científicos. II- Podem beneficiar desta isenção pessoas colectivas de utilidade pública que tenham por fins primaciais actividades científicas de qualquer natureza, incluindo de divulgação científica, não se restringindo a isenção às que tenham actividades práticas de investigação científica”. Para concluir desta forma, esclarece aquele Tribunal, com interesse essencial para o presente caso, que “O que é relevante para que se conclua que as pessoas colectivas de utilidade pública visam predominantemente fins científicos, para efeitos da norma em apreço, é que as actividades de natureza comercial ou industrial a que respeita a isenção de IRC, sejam meramente acessórias dos fins científicos, designadamente que os proventos obtidos no seu exercício se destinem a ser utilizados na satisfação desses fins científicos” (o sublinhado é nosso).

W. Nestes termos, a AT só pode tributar a LIPOR com base no seu (alegado) lucro tributável se esta prosseguir uma actividade económica a título principal (e não a qual quer outro título – acessório, marginal, residual, isolado), algo que, como vimos, não se verifica.

X. As liquidações são, portanto, também por força deste desajustamento entre a natureza da actividade da Impugnante e o Direito aplicado, ilegais.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, com todas as consequências legais, designadamente a manutenção, nesta parte, da sentença recorrida».

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer do seguinte teor:

«[…]

2. No seu recurso a Recorrente suscita a apreciação de duas questões:

a) Saber se a sentença incorreu em erro de julgamento na apreciação que fez sobre a questão da sujeição a tributação em sede de IRC da associação intermunicipal “LIPOR - Serviço Intermunicipalizado de Gestão de Resíduos do Grande Porto”, designadamente por se ter considerado beneficiar esta das isenções previstas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRC;

b) Saber se a sentença incorreu em erro de julgamento ao não dispensar a Fazenda Pública do pagamento da taxa de justiça remanescente, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais.

2.1 Para se decidir pela procedência da acção considerou o tribunal “a quo” que a impugnante sendo uma “associação de municípios é uma entidade equiparada a autarquia local e como tal beneficia da isenção de IRC prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRC. E por outro lado, a actividade que a impugnante exerce – tratamento e eliminação de outros resíduos não perigosos – reveste natureza eminentemente dum serviço público, pelo que usufrui igualmente da isenção prevista na alínea b) do artigo 9.º do CIRC.
Sobre a questão da dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente o tribunal “a quo” não chegou a pronunciar-se, sendo certo que este pedido não havia sido formulado por qualquer uma das partes.

2.2 A primeira questão que se coloca é a de saber se na actividade desenvolvida pela impugnante de “reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos”, bem como a “gestão, manutenção e desenvolvimento das infra-estruturas necessárias”, aquela beneficia ou não da isenção de IRC ao abrigo do disposto no artigo 9.º do CIRC, designadamente à luz do disposto nas alíneas a) e b) do seu número 1.
De acordo com a matéria assente na sentença recorrida a impugnante tem por objecto social “a reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios seus associados e por outras entidades que a associação venha a admitir, bem como a gestão, manutenção e desenvolvimento de infra-estruturas necessárias para o efeito”.
Ainda de acordo com os estatutos da recorrida, a mesma “desenvolve a sua actividade na área dos municípios associados, por sua conta e risco, como serviço intermunicipalizado ou por qualquer outra forma legalmente possível”.
Para efeitos de apreciação da questão importa atender ao disposto nos artigos 2.º, 3.º e 9.º do CIRC, na parte que nos interesse e na redacção aplicável no ano de 2004 e que é a seguinte (sublinhados nossos):

Artigo 2.º
Sujeitos passivos
1- São sujeitos passivos do IRC:
a) As sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais pessoas colectivas de direito público ou privado, com sede ou direcção efectiva em território português;
Artigo 3.º
Base do imposto
1- O IRC incide sobre:
a) O lucro das sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, das cooperativas e das empresas públicas e o das demais pessoas colectivas ou entidades referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior que exerçam, a título principal, uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola.
CAPÍTULO II
Isenções
Artigo 9.º
Estado, Regiões Autónomas, autarquias locais, suas associações de direito público e federações e
instituições de segurança social
1- Estão isentos de IRC:
a) O Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais, bem como qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, compreendidos os institutos públicos, com excepção das entidades públicas com natureza empresarial;
b) As associações e federações de municípios e as associações de freguesias que não exerçam actividades comerciais, industriais ou agrícolas;

Decorre igualmente do n.º 4 do artigo 3.º do CIRC, que «Para efeitos do disposto neste Código, são consideradas de natureza comercial, industrial ou agrícola todas as actividades que consistam na realização de operações económicas de carácter empresarial, incluindo as prestações de serviços».
Decorre das normas transcritas que as pessoas colectivas de direito público são sujeitos passivos de IRC, o qual incide sobre o lucro resultante do exercício, a título principal, de uma actividade de natureza comercial, industrial ou agrícola, a qual consiste na realização de operações económicas de carácter empresarial. No caso concreto dos autos, a “LIPOR - Serviço Intermunicipalizado de Gestão de Resíduos do Grande Porto” é uma pessoa colectiva de direito público e, como tal, caso exerça uma actividade que consista na realização de operações económicas de carácter empresarial, a mesma está sujeita a IRC.
O artigo 9.º do CIRC prevê isenções de IRC de que beneficiam o Estado e as autarquias locais, benefício que é afastado no caso das entidades públicas com natureza empresarial (al. a)) ou das associações e federações de municípios que exerçam actividades de natureza comercial, industrial e agrícola.
Assim e embora o CIRC preveja uma isenção subjectiva para o Estado e autarquias locais (que se compreende), assim como para as associações de municípios, essa isenção é arredada nos casos das empresas públicas (noção que abrange as empresas municipais), pela sua própria natureza (empresarial), e nos casos das associações municipais, em função da actividade que desenvolvam de forma predominante.
A Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, que estabeleceu o regime de criação das comunidades intermunicipais, previa no n.º 2 do seu artigo 1.º a existência de dois tipos de comunidades: comunidades intermunicipais de fins gerais e associações de municípios de fins específicos. Mais se consagrava no artigo 2.º da mesma lei que a associação de municípios de fins específicos é uma pessoa colectiva de direito público criada para a realização de interesses específicos comuns aos municípios que a integram. Sendo que nos termos do artigo 5.º da mesma lei, as associações eram criadas para a prossecução de determinados fins públicos no âmbito das atribuições concedidas às autarquias locais, designadamente na área do ambiente. E nos termos do artigo 6.º, os recursos financeiros das associações assim criadas compreendem, entre outros, o produto da venda de bens e serviços (alínea g) do n.º 3).
Dispõe por último o artigo 36.º da Lei n.º 11/2003, que «As comunidades e as associações beneficiam das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais».
A questão que se coloca desde logo é saber se o disposto neste preceito legal entra em conflito com o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRC ou se ambas as normas têm âmbitos de aplicação diversos. Ou seja, gozando as autarquias locais de isenção de IRC ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do citado preceito legal, não teremos que concluir que as associações de municípios gozam igualmente desse benefício por remissão daquela norma.
Afigura-se-nos, salvo o devido respeito por opinião contrária, que embora conflituantes, os âmbitos de aplicação de tais normas são diversos, e por isso ocorre apenas uma antinomia aparente de normas jurídicas. Assim se por um lado o disposto no artigo 36.º da Lei n.º 11/2003, configura uma remissão genérica para os benefícios fiscais de que gozam as autarquias locais, o disposto no artigo 9.º do CIRC configura uma regulação específica desses benefícios no que diz respeito a este imposto sobre o rendimento. Há, assim, uma relação de especialidade entre as duas normas, cujo aparente conflito deve ser resolvido pelo critério da especialidade, prevalecendo o regime específico da alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRC.
Aqui chegados importa aferir se à luz do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do CIRC, a “LIPOR” goza ou não da isenção ali prevista.
Na abordagem que a sentença recorrida fez destas normas concluiu desde logo o tribunal “a quo” que “não se pode concluir que a impugnante exerce uma actividade comercial, industrial ou agrícola”, embora não adiante qualquer argumento que sustente uma afirmação tão categórica. E na caracterização da actividade desenvolvida pela recorrida considerou-se que a mesma configurava “a prestação de um serviço público” e como não resultava provado que não afectasse todos os rendimentos obtidos à satisfação desse serviço público, não havia como não concluir pelo gozo do benefício da isenção à luz do disposto na alínea b) do transcrito preceito legal.
Afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que a abordagem da questão foi efectuada de forma muito superficial. Desde logo porque não é apreciada a fundamentação aduzida pela Administração Tributária para se decidir pela prática do acto tributário, a qual foi suportada em parecer jurídico do CEF que o tribunal “a quo” simplesmente ignorou. E diga-se, trata-se de matérias delicadas e complexas que merecem uma aprofundada análise, sem a qual qualquer pronúncia carece da necessária e exigível fundamentação, que afecta a validade substancial dessa pronúncia.
Assim sendo importa atender antes de mais à caracterização que se fez da actividade desenvolvida pela recorrida na sentença recorrida. Ora, nesta parte a sentença recorrida limitou-se a discriminar o que consta dos estatutos quanto ao objecto prosseguido pela impugnante e aqui recorrida.
O que consta do artigo 2.º dos Estatutos da LIPOR é que a associação tem por objecto:
«1. A associação tem por objecto imediato a reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios associados, e por outras entidades que a associação venha a admitir, bem como a gestão, manutenção e desenvolvimento das infra-estruturas necessárias para o efeito.
2 A associação pode ver ampliado aquele seu objecto imediato a vir a prosseguir quaisquer fins compreendidos nas atribuições dos municípios associados, com excepção daqueles que, pela sua natureza ou por disposição legal, devam ser exercidos directamente por eles.
3 Pode ainda, a associação, por si ou associada a terceiros, dedicar-se:
a) Ao tratamento de outros resíduos sólidos;
b) Ao tratamento de resíduos industriais ou hospitalares;
c) A exploração de actividades de natureza energética conexas com o seu objecto».
Perante o âmbito de tal objecto e atento o supra exposto, importava apurar elementos sobre a real actividade desenvolvida pela “LIPOR” de modo a permitir aferir se a mesma desenvolvia ou não uma actividade de natureza comercial ou industrial a título principal. Para tanto importava levar ao probatório os elementos que a AT recolheu no âmbito da acção inspectiva e os elementos tidos por comprovados no âmbito da instrução dos autos. Ora, tal tarefa não foi realizada pelo tribunal “a quo”, o qual expressamente desvalorizou tal função, quando deixou exarado na “motivação” sobre a matéria de facto que “apesar das testemunhas inquiridas nos autos, considerando que a decisão da causa se esgota numa questão de direito, estes depoimentos não serão considerados uma vez que sempre conduziria à mesma decisão”.
Ora, se no âmbito das suas atribuições a LIPOR é responsável pela “gestão do totalidade dos resíduos sólidos urbanos recolhidos nos municípios associados e outros, procedendo à sua triagem, tratamento e valorização, para além de desenvolver projectos de investigação e acções de sensibilização e educação ambiental”, impunha-se saber como são levadas a cabo tais atribuições, designadamente se explora directamente estabelecimentos industriais, que serviços presta e qual o destino dos produtos, assim como saber qual o peso de cada um dos sectores dessa actividade.
Afigura-se-nos, assim, e salvo melhor opinião, que a sentença recorrida padece do vício de insuficiência da matéria de facto que obsta ao julgamento da questão de direito colocada ao tribunal, qual seja a de saber se a impugnante e aqui recorrida está ou não sujeita a tributação em sede de IRC no decurso do ano de 2004, o que implica saber se exerce ou não uma actividade de natureza comercial ou industrial a título principal. Tanto mais que a AT considerou para efeito de emissão do acto tributário que a LIPOR «exerce a título principal actividades de natureza comercial e industrial, tal como estas são definidas no n.º 4 do art. 3.º do CIRC, consistindo a sua fonte de rendimentos na realização de operações económicas de carácter empresarial, não obstante serem desenvolvidas no âmbito das atribuições dos municípios, não está isenta, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC» (cfr. relatório do SIT).
Entendemos, assim, que se impõe a revogação da sentença recorrida, por insuficiência da matéria de facto que viabilize o conhecimento da questão de direito, e a remessa dos autos à 1.ª instância, ao abrigo do disposto no artigo 682.º n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo tributário, a fim de ser ampliada a matéria de facto, tendo em consideração a interpretação que se fez supra do quadro legal aplicável».

1.5 Colheram-se os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos.

1.6 Cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida efectuou o julgamento de facto nos seguintes termos:

«Factos Provados:

1. A impugnante foi constituída pelos Municípios de Espinho, Gondomar, Maia, Matosinhos, Porto, Póvoa do Varzim, Vila do Conde e Valongo, através de escritura pública, a 12 de Novembro de 1982 como associação de municípios, tendo sido publicado o seu estatuto no Diário da República a 10 de Dezembro de 1982, Tendo aquele sido alterado a 26 de Março de 2001 (DR III série n.º 284 de 10.12.1982 e n.º 130 de 5.6.2001).

2. É o seguinte o objecto da impugnante (cfr. art. 2.º, dos estatutos referidos em 1.):
1. A associação tem por objecto imediato a reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios associados, e por outras entidades que a associação venha a admitir, bem como a gestão, manutenção e desenvolvimento das infra-estruturas necessárias para o efeito.
2. A associação pode ver ampliado aquele seu objecto imediato e vir a prosseguir quaisquer fins compreendidos nas atribuições dos municípios associados, com excepção daqueles que, pela sua natureza ou por disposição legal, devam ser exercidos directamente por eles.
3. Pode ainda, a associação, por si ou associada a terceiros, dedicar-se:
a) Ao tratamento de outros resíduos sólidos;
b) Ao tratamento de resíduos industriais ou hospitalares;
c) À exploração de actividades de natureza energética conexas com o seu objecto.
4. A associação desenvolverá a sua actividade na área dos municípios associados, por sua conta e risco, através de serviços próprios, como serviço intermunicipalizado ou por qualquer outra forma legalmente possível.

3. A Direcção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas emitiu a Informação n.º 1399/2006, relativa ao enquadramento fiscal da impugnante e defendendo a sua tributação em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas – documento n.º 5 da Petição Inicial, junto a fls. 137 e seguintes dos autos, numeração referente ao processo físico;

4. Em sede de Inspecção Tributária, a Impugnante, bem como a actividade por si desenvolvida, foi caracterizada do seguinte modo: “(…) Lipor foi constituída como uma associação de municípios através de escritura datada de 12.11.1982 (...). De acordo com a Lei 11/2003 de 13.05 (que estabelece o regime de criação, o quadro de atribuições e competências das comunidades intermunicipais de direito público e o funcionamento dos seus órgãos), a Lipor é uma associação de municípios de fins específicos, sendo uma pessoa colectiva de direito público, criada para a realização de fins específicos comuns aos municípios que a integram. (...) Dos estatutos da Lipor consta como objecto imediato a reciclagem, valorização, tratamento e aproveitamento final dos resíduos sólidos entregues pelos municípios associados, e por outras entidades que a associação venha a admitir bem como a gestão, manutenção e desenvolvimento das infra-estruturas necessárias para o efeito, (...) a Lipor pode ainda, por si ou associada a terceiros, dedicar-se ao tratamento de outros resíduos sólidos, ao tratamento de resíduos industriais ou hospitalares e à exploração de actividades de natureza energética conexas com o seu objecto” – cf. relatório de inspecção tributária constante de fls. 87 e seguintes dos autos, para o qual se remete e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

5. Em 29.10.2008, pelo Serviço de Finanças de Gondomar 2, foi emitida a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, relativa ao exercício de 2004, determinando o imposto a pagar no montante de € 1.487.568,64 – cf. doc. n.º 1 da Petição Inicial, junto a fls. 77 dos autos, numeração do processo físico).

6. Em 11.12.2008 deu entrada neste Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto a Petição Inicial referente à presente Impugnação Judicial – cf. fls. 2 e seguintes dos autos, numeração referente ao processo físico.

Factos Não Provados:

Inexistem factos não provados com relevância para a decisão a proferir.

Motivação:

A convicção do tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos conforme se deixou indicado ao longo dos factos provados.
Apesar das testemunhas inquiridas nos autos, considerando que a decisão da causa se esgota numa questão de direito, estes depoimentos não serão considerados uma vez que sempre conduziria à mesma decisão».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

2.2.1.1 Na sequência de uma informação (Com cópia de fls. 137 a 145. ) da Direcção de Serviços de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (DSIRC) sobre o enquadramento fiscal da ora Recorrida, que foi constituída como uma associação de municípios, a AT, após diversos considerandos em torno da actividade exercida e da legislação aplicável, concluiu que «uma vez que a LIPOR exerce, a título principal, actividades de natureza comercial e industrial, tal como estas são definidas no n.º 4 do art. 3.º do CIRC, consistindo a sua fonte de rendimentos na realização de operações económicas no âmbito das atribuições dos municípios, não está isenta, nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC».
Assim, com base na contabilidade da ora Recorrida, procedeu à liquidação oficiosa do IRC que considerou devido relativamente ao ano de 2004, bem assim como à liquidação dos respectivos juros compensatórios.

2.2.1.2 A ora Recorrida insurgiu-se contra essa liquidação mediante impugnação judicial, na qual sustentou que está isenta de IRC ao abrigo das disposições conjugadas do art. 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, e do art. 9.º, n.º 1, alínea a), do CIRC, considerando que as associações de municípios – como o é a Recorrente –, que são pessoas colectivas de direito público, beneficiam das isenções fiscais que a lei concede às autarquias locais, não lhes sendo aplicável o disposto na alínea b) deste último preceito, que deve ter-se por tacitamente revogado pelo referido art. 36.º do Lei n.º 11/2003. Ou seja, sustentou a ora Recorrida o entendimento de que a alínea b) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC não se pode aplicar à sua situação e que «o regime que se deve aplicar à situação ora em análise é o do artigo 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, o qual estabelece que as associações de municípios beneficiam das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais, entre as quais se conta a isenção de IRC, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do respectivo Código».

2.2.1.3 O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou a impugnação judicial procedente. Considerou, em síntese, que a Impugnante é uma associação de municípios e, por isso, «equiparada a autarquia local» por força do disposto no art. 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, o que, a seu ver, significa que beneficia da isenção de IRC prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC. Mais considerou que, «se se entender que a remissão da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio é realizada para os termos previstos na alínea b)» do mesmo art. 9.º, n.º 1, do CIRC, sempre deverá considerar-se que a Impugnante beneficia da isenção, uma vez que «não se pode concluir que a impugnante exerce uma actividade comercial, industrial ou agrícola». Na verdade, como resulta dos estatutos da Impugnante, a sua actividade, «vulgarmente designada de recolha e tratamento de lixo urbano», «reveste natureza eminentemente dum serviço público», natureza que não lhe é retirada pela «circunstância de tal actividade poder ser exercida por privados». Assim, porque a Impugnante, com a sua actividade, prossegue «eminentemente um serviço público», «não decorrendo dos factos considerados provados que não afecte todos os rendimentos que obtém à satisfação desse serviço público, não restam dúvidas de que a impugnante sempre usufruiria de isenção à luz do artigo 9.º, [n.º 1,] al. b) do CIRC».

2.2.1.4 A Fazenda Pública discorda da sentença. A seu ver, esta incorreu em erro de julgamento na medida em que entendeu que a Impugnante beneficiava da isenção de IRC prevista no n.º 1 do art. 9.º do CIRC, quer ao abrigo da alínea a) quer ao abrigo da alínea b) do preceito. Por outro lado, considera que a sentença também incorreu em erro de julgamento ao não a ter dispensado do pagamento do remanescente da taxa de justiça, uma vez que se mostram reunidos os pressupostos para o efeito, nos termos dos n.ºs 1 e 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
São estas, pois, as questões a apreciar e decidir no presente recurso: a do âmbito da aplicação das normas de isenção consagradas nas alíneas a) e b) do art. 9.º do CIRC e a da dispensa em 1.ª instância do pagamento do remanescente da taxa de justiça.

2.2.2 DA ISENÇÃO DE IRS

2.2.2.1 ISENÇÃO AO ABRIGO DA ALÍNEA A) DO N.º 1 DO ART. 9.º DO CIRC

Como deixámos já dito, a ora Recorrida é uma associação de municípios; mais concretamente, é uma associação de municípios de fins específicos, na classificação bipartida consagrada no art. 2.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio (ELI: http://data.dre.pt/eli/lei/11/2003/05/13/p/dre/pt/html.), de acordo com o disposto nos seus n.ºs 1, alínea b) e 4.
A sentença considerou que as associações de municípios, como a ora Recorrida, gozam das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais, designadamente da isenção de IRC prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC, por força do disposto no art. 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, que dispunha: «As comunidades e as associações beneficiam das isenções fiscais previstas na lei para as autarquias locais». Mas, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que não é assim, como bem salientaram a Recorrente e o Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal.
Na verdade, apesar do teor do art. 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, se considerado isoladamente, apontar no sentido sustentado pela Juíza do Tribunal a quo, não podemos perder de vista que se impõe considerar e conjugar todas as normas jurídicas susceptíveis de regularem a situação, designadamente as pertencentes ao CIRC, código que regula o imposto em causa, na redacção em vigor à data dos factos (2004).
Vejamos:
O art. 9.º, n.º 1, do CIRC, na redacção aplicável, dispunha:
«1- Estão isentos de IRC:
a) O Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais, bem como qualquer dos seus serviços, estabelecimentos e organismos, ainda que personalizados, compreendidos os institutos públicos, com excepção das entidades públicas com natureza empresarial;
b) As associações e federações de municípios e as associações de freguesia que não exerçam actividades comerciais, industriais ou agrícolas».
Ou seja, para efeitos de isenção de IRC, o respectivo Código distingue entre autarquias locais e associações de municípios. O que significa que, como ficou dito no acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Março de 2021, proferido no processo com o n.º 3161/16.3BEPRT (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/a4de3fdaee8c377080258697006f6247.), «a equiparação que o artigo 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio fazia entre associações de municípios e autarquias locais apenas tinha razão de ser nos casos de impostos em que não existisse qualquer referência expressa àquelas; o que não era, notoriamente, o caso do IRC, que distinguia umas e outras entidades».
Não pode, pois, contrariamente ao que entendeu a sentença recorrida, considerar-se que a ora Recorrida estava isenta de IRC ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC, por força do disposto no art. 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio.
Como também ficou dito no citado acórdão deste Supremo Tribunal, «apenas a isenção contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC pode aqui ser equacionada».
Há, pois, que verificar agora se, como também sustentou a sentença, a ora Recorrente estava isenta de IRC ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do mesmo art. 9.º do CIRC.

2.2.2.2 ISENÇÃO AO ABRIGO DA ALÍNEA B) DO N.º 1 DO ART. 9.º DO CIRC

A sentença considerou também que a ora Recorrida beneficiava da isenção de IRC ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 9.º do CIRC. Na verdade, ao invés de enquadrar a situação numa ou noutra das duas alíneas do n.º 1 do art. 9.º do CIRC, a sentença optou por considerar que «independentemente da situação retratada recair sobre a alínea a) ou b), a mesma encontra-se sempre abrangida pela isenção».
Entendeu a sentença que «se se entender que a remissão da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, é realizada para os termos previstos na alínea b) do artigo 9.º, n.º 1, do CIRC, a mesma encontra-se abrangida pela tal isenção uma vez que, na opinião deste Tribunal, não se pode concluir que a impugnante exerce uma actividade comercial, industrial ou agrícola». Recorde-se que o n.º 4 do art. 3.º do CIRC, define: «Para efeitos do disposto neste Código, são consideradas de natureza comercial, industrial ou agrícola todas as actividades que consistam na realização de operações económicas de carácter empresarial, incluindo as prestações de serviços»
Depois, fazendo apelo aos estatutos da ora Recorrida, concluiu que «a actividade exercida pela impugnante – tratamento e eliminação de outros resíduos não perigosos – reveste natureza eminentemente dum serviço público – vulgarmente designado de recolha e tratamento de lixo urbano – pois, a circunstância de tal actividade poder ser exercida por privados (o que não é o caso), não retira esse carácter de serviços público (pelo menos, no sentido de utilidade pública)» e, por isso, «prosseguindo a impugnante eminentemente um serviço público – o de recolha e tratamento de resíduos – e não decorrendo dos factos considerados provados, que não afecte todos os rendimentos que obtém à satisfação desse serviço público, não restam dúvidas de que a impugnante sempre usufruiria de isenção à luz do artigo 9.º, alínea b) do CIRC».
Ou seja, a sentença parece ter inferido o não exercício pela ora Recorrida da actividade comercial ou industrial (a actividade agrícola parece estar liminarmente afastada) do facto de ela exercer um serviço público, qual seja a recolha e tratamento de resíduos (lixo urbano).
Mas, salvo o devido respeito e como bem salientou a Recorrente, não é o exercício de uma actividade de serviço público que aqui (em ordem a indagar da isenção de IRC) está em causa; o que está em causa é saber se a actividade por ela exercida pode, ou não, configurar-se como uma actividade de natureza empresarial.
Como bem diz a Recorrente, «[a] prossecução de finalidades típicas de um serviço público não obsta em si mesma […] ao preenchimento das condições para que a associação de municípios impugnante se constitua em sujeito passivo não isento de IRC, desde que exerça as actividades atribuídas em vista daquela prossecução com natureza empresarial».
Recuperamos aqui o discurso do já referido acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo, de 10 de Março de 2021, proferido no processo com o n.º 3161/16.3BEPRT:
«[A] isenção contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC não é uma isenção subjectiva simples, mas antes mista (com elemento objectivos, portanto): nem todas as associações de municípios se encontram isentas, mas tão só aquelas “que não exerçam actividades comerciais, industriais ou agrícolas”.
Ora, basta confrontar a natureza desta isenção com os exíguos elementos de facto levados ao probatório para, logo, nos apercebermos que existe uma absoluta insusceptibilidade de se poder concluir acerca dos exactos termos e extensão em que a Impugnante ora Recorrida exerceu actividades comerciais, industriais ou agrícolas.
É que, se bem a interpretamos, como tomou a isenção referida como uma isenção exclusivamente subjectiva, a sentença recorrida apenas se preocupou em escrutinar os estatutos da associação de municípios impugnante, secundarizando quase por completo o condicionalismo objectivo da norma de isenção, traduzido na actividade real da mesma. E, como tal, a sentença impediu-se a si mesma de aplicar devidamente a norma, por não ter base instrutória para o efeito.
[…] Ora, como vimos, a interpretação da norma em causa não pode ter lugar nestes termos, pelo que, acompanhando o douto Parecer do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, entendemos ser de anular a sentença recorrida, por insuficiência da matéria de facto que habilite ao conhecimento da questão de direito, impondo-se a remessa dos autos à 1.ª instância, nos termos do artigo 682.º, n.º 3 do CPC ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT, a fim de ser ampliada a matéria de facto, tendo em consideração a interpretação que ora se faz da isenção fiscal contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º do Código do IRC».

2.2.3 DA DISPENSA DO REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA

Sustenta também a Recorrente que a sentença fez errado julgamento quando não dispensou o pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Porque a sentença será anulada, fica prejudicado o conhecimento desta questão.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Apesar de o art. 36.º da Lei n.º 11/2003, de 13 de Maio, equiparar, quanto ao regime fiscal, as associações de municípios e as autarquias locais, o art. 9.º do CIRC, no que respeita à isenção de imposto, distingue as autarquias locais das associações de municípios.
II - A isenção prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 9.º do Código do IRC não configura uma isenção subjectiva simples, mas uma isenção subjectiva mista, porque faz depender o tratamento mais favorável aí consagrado de uma condição objectiva, qual seja o não exercício de actividades comerciais, industriais ou agrícolas.
III - Não permitindo a matéria de facto que foi dada como assente pelo tribunal de 1.ª instância aferir sobre a actividade desenvolvida pelo associação de municípios, impõe-se a anulação oficiosa do julgado e o regresso dos autos à 1.ª instância para nova decisão, precedida da fixação da pertinente matéria de facto.


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3. DECISÃO
Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, acordam em conceder provimento ao recurso, anular a decisão recorrida e ordenar que os autos regressem à 1.ª instância, a fim de aí ser proferida nova sentença, após a fixação da matéria de facto pertinente.

Custas pela Recorrida, dispensando-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça, atento o facto de existir já jurisprudência sobre a matéria, circunstância que pode integrar o conceito legal de menor complexidade da causa, e uma vez que o comportamento processual das partes a tal não obsta (cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi do art. 281.º do CPPT, e art. 6.º, n.º 7 do RCP).


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Lisboa, 9 de Dezembro de 2021.- Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia – Gustavo André Simões Lopes Courinha.