Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0833/10
Data do Acordão:05/11/2011
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANTÓNIO CALHAU
Descritores:PRETERIÇÃO DE FORMALIDADE ESSENCIAL
AUDIÊNCIA DO INTERESSADO
Sumário: I - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, pelo direito de audição antes da liquidação (artigos 267.º da CRP e 60.º da LGT).
II - A preterição da formalidade que constitui o facto de não ter sido assegurado o exercício do direito de audiência só pode considerar-se não essencial se se demonstrar que, mesmo sem ela ter sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente.
Nº Convencional:JSTA000P12883
Nº do Documento:SA2201105110833
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
I – A Representante da Fazenda Pública, não se conformando com a decisão do Mmo. Juiz do TAF de Aveiro que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…, com sede em Esgueira, Aveiro, contra as liquidações adicionais de IMT e de IS, dela vem interpor recurso para este Tribunal, formulando as seguintes conclusões:
1) A liquidação adicional de IMT e IS que foi objecto de impugnação diz respeito ao facto de ter sido considerado como valor da matéria colectável um valor superior ao considerado inicialmente na liquidação.
2) O tribunal a quo conclui enfermar o acto de liquidação impugnado do vício de forma por preterição do disposto no art.º 60.º, n.º 1 da LGT.
3) A Fazenda Pública não põe em causa que no presente caso o contribuinte não foi previamente ouvido antes da liquidação. O que põe em causa é que o tribunal a quo não tenha feito aplicação do princípio do aproveitamento do acto.
4) Pois embora a liquidação tenha sido realizada sem ter sido assegurado o princípio da participação da recorrida na decisão ora em crise, a preterição dessa formalidade legal não acarreta, sem mais, a anulabilidade do acto, “pois de acordo com tal princípio deverá entender-se que não se justifica a anulação, apesar da preterição de direito de audição, nos casos em que se apure no processo contencioso que, se a audiência tivesse sido realizada, o interessado não teria a possibilidade de apresentar elementos novos nem de se pronunciar sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final sobre as quais não tivesse já tido oportunidade de se pronunciar” conforme tem sido entendido pelo STA.
5) Os impugnantes imputaram ao acto de liquidação impugnado, para além do vício de preterição do direito de audição, o vício de ilegalidade das liquidações adicionais de IMT e Imposto de Selo.
6) Na sentença recorrida apreciou-se a questão da legalidade da liquidação adicional de IMT e IS decorrentes de avaliação patrimonial sequente a distrate da escritura de compra e venda de imóvel, considerando-se que a impugnante não tem razão e que como tal improcede a impugnação.
7) A sentença recorrida refere inclusivamente “a própria impugnante reconheceu que o imposto era devido e antes de ser celebrada a escritura designada de distrate procedeu ao pagamento de IMT”.
8) Ora, no caso dos autos, resulta da decisão com toda a clareza que se a obrigação legal de audiência tivesse sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente.
9) E partindo de tal pressuposto, é de aplicar o princípio geral do aproveitamento do acto administrativo.
10) Consequentemente, face à solução encontrada para a questão da legalidade da liquidação, a falta de audiência prévia da impugnante não era susceptível de influenciar a decisão tomada.
11) Com efeito, a eventual participação da recorrida no procedimento de liquidação deve considerar-se irrelevante perante a constatação da solução dada pelo tribunal a quo à questão da legalidade da liquidação.
12) Assim, ao contrário do decidido, deve entender-se que seria de aplicar o princípio do aproveitamento do acto, por a decisão tomada ser a única concretamente possível, por o tribunal recorrido ter considerado que o acto de liquidação não sofria de ilegalidade.
13) A douta sentença sob recurso não fez uma aplicação correcta do art.º 60.º, n.º 1, al. a) da LGT.
Contra-alegando, veio a impugnante dizer que:
I. Foi objecto de impugnação judicial a liquidação adicional de IMT e Imposto de Selo cobrada à ora recorrida pela Fazenda Pública;
II. No âmbito de tal impugnação foi proferida douta sentença, na qual considerou o tribunal a quo não ter sido respeitado o direito de audição previsto no n.º 1 do artigo 60.º da LGT;
III. Como tal, tal liquidação estaria inquinada de vício de forma, devendo, por isso, ser anulada;
IV. Respeitando-se deste modo o disposto não só no n.º 5 do artigo 267.º da CRP (na redacção de 1997, vigente à data de aprovação da LGT);
V. Mas também, o n.º 3 do artigo 103.º da CRP.
VI. Dos autos, e da respectiva sentença, não se pode de todo concluir que ainda que a obrigação legal de audiência tivesse sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente.
VII. Não havendo assim lugar à aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo, como tal no caso concreto,
VIII. Deveria a recorrida não só ter sido ouvida antes da liquidação,
IX. Mas ainda ter-lhe sido comunicado o respectivo projecto de decisão e correspondente fundamentação, de modo a permitir um exercício cabal do seu direito de audição prévia.
O Exmo. Magistrado do MP junto deste Tribunal emite parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, confirmando-se o julgado recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Mostram-se provados os seguintes factos:
1. Por escritura de compra e venda de 11 de Maio de 1988, a sociedade “A…” vendeu à sociedade “B…” o prédio escrito na matriz urbana da freguesia de Esgueira, inscrito sob o número 3919, parte do descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro sob o n.º cinquenta mil e setecentos e noventa e oito, do livro B – cento e trinta e dois e, duplicadamente, na freguesia de Santa Joana, sob o número cento e quarenta e oito;
2. A aquisição referida em 1., não pode ser objecto de registo, por não possuir o imóvel a correspondente licença de utilização;
3. Por escritura intitulada de distrate de compra e venda realizada a 21 de Dezembro de 2004 entre as sociedades referidas em 1. consta “que, por escritura de compra e venda de onze de Maio de mil novecentos e oitenta e oito, iniciada a folhas quarenta e sete, verso, do livro de notas para escrituras diversas número cento e nove-D, deste Cartório, a sociedade “A…” vendeu à sociedade “B…” o seguinte imóvel (…)”. Que o mencionado acto ainda não foi objecto de registo, por não ter sido emitida para o imóvel licença de utilização que à data da mencionada escritura não era exigida. Que, pela presente escritura, distratam o aludido contrato de compra e venda a cujo imóvel atribuem o valor de quinze mil novecentos e sessenta e um euros e cinquenta e três cêntimos”;
4. Por referência ao acto notarial referido em 3., foi pago IMT no montante de € 2.891,73 (dois mil e oitocentos e noventa e um euros e setenta e três cêntimos);
5. A 25 de Janeiro de 2005, foi entregue declaração para inscrição e actualização do prédio em causa nestes autos ao Serviço de Finanças competente;
6. A 12 de Setembro de 2008 foi a impugnante notificada da liquidação adicional de IMT e Imposto de Selo, no valor, respectivamente, de € 18.352,22 (dezoito mil e trezentos e cinquenta e dois euros e vinte e dois cêntimos) e € 2.258,73 (dois mil e duzentos e cinquenta e oito euros e setenta e três cêntimos);
7. A impugnante reclamou graciosamente das liquidações a 27 de Outubro de 2008;
8. A 16 de Março de 2009 a impugnante foi notificada do indeferimento da reclamação referida a 7..
9. A impugnante não foi notificada para exercer o seu direito de audição.
III – Vem o presente recurso interposto pela representante da Fazenda Pública da decisão do Mmo. Juiz do TAF de Aveiro que, concluindo não se poder considerada sanada a falta de notificação para exercício do direito de audição, nos termos exigidos pelo artigo 60.º da LGT, julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela ora recorrida contra as liquidações de IMT e IS decorrentes de avaliação patrimonial sequente a distrate da escritura de compra e venda de imóvel.
Alega a recorrente que não põe em causa que no presente caso a contribuinte não foi previamente ouvida antes da liquidação; todavia, a preterição dessa formalidade legal não era susceptível de influenciar a decisão tomada, pelo que, de acordo com o princípio do aproveitamento do acto, deve considerar-se irrelevante.
Vejamos. Não há dúvida que a impugnante, aqui recorrida, foi notificada das liquidações impugnadas sem lhe ter sido dada a possibilidade de exercer o seu direito de audição, que lhe é reconhecido, como sabemos, pelo disposto no artigo 267.º da CRP e 60.º da LGT.
É certo que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a sublinhar que a preterição dessa formalidade pode, em certos casos, degradar-se em formalidade não essencial e, portanto, ser omitida sem que daí resulte qualquer ilegalidade determinante da anulação do acto.
Assim, não se justificará a anulação do acto nos casos «em que se apure no processo contencioso que, se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final, ou acabou por ter oportunidade de pronunciar-se, em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau» - cfr. Diogo Leite Campos, Benjamim da Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária Anotada, 3.ª edição, pág. 290.
Também neste sentido, no acórdão deste Tribunal de 10/11/2010, proferido no recurso n.º 671/10, se afirma que «A preterição da formalidade que constitui o facto de não ter sido assegurado o exercício do direito de audiência só pode considerar-se não essencial se se demonstrar que, mesmo sem ela ter sido cumprida, a decisão final do procedimento não poderia ser diferente».
Ou seja, a degradação daquela formalidade em formalidade não essencial só ocorrerá quando, atentas as circunstâncias, a intervenção do interessado se tornou inútil, seja porque o contraditório já se encontre assegurado, seja porque não haja nada sobre que ele se pudesse pronunciar, seja porque, independentemente da sua intervenção e das posições que o mesmo pudesse tomar, a decisão da Administração só pudesse ser aquela que foi tomada (Ac. STA de 3/3/2004, no recurso n.º 1240/02).
Ora, não é essa a hipótese dos autos.
De facto, como se salienta na decisão recorrida, resultando as liquidações adicionais impugnadas do facto de ter sido considerado como valor da matéria colectável um valor superior ao considerado inicialmente na liquidação, é manifesto que não se está perante uma situação de absoluta impossibilidade de a decisão do procedimento de liquidação ser influenciada pela audição da impugnante.
E não colhe o argumento avançado pela recorrente de que, como a sentença recorrida concluiu, sendo legal a liquidação, de resto até reconhecida pela própria impugnante que até procedeu ao pagamento do imposto que era devido, a falta de audiência prévia não era assim susceptível de influenciar a decisão tomada.
Com efeito, o que se afirma na decisão recorrida é que, não estando em causa a exigência do imposto, tanto mais que até a impugnante procedeu inicialmente ao seu pagamento, e dessa forma aceitando que o mesmo era devido, o que a impugnante contesta é a alteração do valor patrimonial tributável que deu origem às liquidações adicionais impugnadas.
Ou seja, tendo a impugnante invocado como fundamentos da impugnação quer a preterição de formalidades essenciais (falta de audição do interessado) quer a não concordância com o valor da matéria colectável que serviu de base às liquidações, embora se diga na decisão recorrida que a impugnante quanto a esta parte não tem razão, já que não vem posta em causa a exigência dos impostos liquidados, o certo é que o Mmo. Juiz a quo não apreciou em concreto a legalidade dos montantes apurados.
E, relativamente a estes, nada nos garante que sempre seriam os mesmos caso tivesse havido lugar à audição da impugnante.
Assim sendo, haverá que concluir-se, pois, que o direito de audiência não podia, neste caso, deixar de ser assegurado, pelo que a decisão recorrida ao julgar preterida tal formalidade legal nenhuma censura nos merece.
IV – Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do STA em negar provimento ao recurso, confirmando-se, assim, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a procuradoria em 1/8.
Lisboa, 11 de Maio de 2011. - António Calhau (relator) - Valente Torrão - Isabel Marques da Silva.