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Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:056/20.0BEBRG
Data do Acordão:02/01/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:PEDRO MACHETE
Descritores:IFAP - IP
ELEGIBILIDADE
DESPESAS
SÓCIO
CASAMENTO
QUOTA SOCIAL
Sumário:I - A circunstância de uma sociedade por quotas beneficiária de um subsídio europeu – cuja disciplina é concretizada por uma portaria nacional – que tenha como únicas sócias e gerentes pessoas casadas, sob o regime da comunhão de adquiridos, com os sócios e gerentes de uma sociedade por quotas fornecedora de bens e serviços no âmbito da atividade subsidiada não é, por si só (automaticamente), suficiente para que as despesas realizadas com as aquisições desses bens e serviços sejam consideradas não elegíveis com fundamento em estarem em causa transações realizadas entre cônjuges (relações pessoais), e não transações comerciais realizadas entre pessoas coletivas.
II - Com efeito, a desconsideração da personalidade coletiva opera com base em exigências decorrentes do princípio da boa-fé, contrariando atuações abusivas ou fraudulentas, pelo que envolve sempre a formulação de um juízo de censura à concreta conduta do(s) sócio(s), em razão da verificação de condutas fraudulentas ou abusivas.
III - Também o artigo 10.º, n.º 2, do CPA determina que o cumprimento das regras da boa-fé seja apreciado em concreto, ou seja, com referência a uma dada situação, o que é concretizado, por exemplo, no artigo 168.º, n.º 4 do mesmo Código (possibilidade de anulação administrativa de atos constitutivos de direitos num prazo mais alargado que o geral – cinco anos em vez de seis meses – quando «o respetivo beneficiário tenha utilizado artifício fraudulento com vista à obtenção da sua prática»).
IV - In casu, todavia, a fundamentação do ato impugnado, na parte referente à consideração como inelegíveis das despesas correspondentes aos mencionados fornecimentos, é omissa quanto à sua desnecessidade ou desrazoabilidade e não formula qualquer juízo de censura das sócias e gerentes da recorrida, em virtude de as mesmas serem casadas com os sócios e gerentes da sociedade fornecedora; tão pouco o mesmo ato refere estar em causa uma desconsideração da personalidade jurídica daquelas duas sociedades nem aduz qualquer facto que justificasse tal desconsideração (tendo o argumento referido supra em I. surgido apenas na contestação do IFAP, IP, à ação de impugnação que lhe foi movida).
V - A mesma circunstância relativa às sócias da sociedade beneficiária do subsídio referida supra em I. não justifica que as despesas realizadas com a aquisição dos bens e serviços em causa sejam consideradas não elegíveis em virtude de resultarem de transações entre pessoas coletivas com relações de participação e sócios comuns.
VI - Desde logo, porque a eventual existência de sócios comuns que sejam pessoas singulares não é condição suficiente de relações de participação entre pessoas coletivas; para que este tipo de relações entre pessoas coletivas exista, é necessário que pelo menos uma delas seja membro ou sócia da outra.
VII - Além disso, a doutrina (jus-comercialista) e a jurisprudência maioritárias entendem, essencialmente com base no artigo 8.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, que o que integra a comunhão conjugal, por força do regime de bens, não é a participação social em si, mas apenas o seu valor ou vertente patrimonial (“quota-valor”).
VIII - Acresce que, mesmo para os autores (em especial jus-civilistas) e a orientação jurisprudencial que consideram que a própria participação social também pode integrar, por força do regime de bens, a comunhão conjugal, sendo por conseguinte ambos os cônjuges sócios, o citado preceito do Código das Sociedades Comerciais, ao considerar apenas um dos cônjuges como sócio, dispõe simplesmente sobre a administração da participação social comum e da correspondente legitimidade para o exercício dos direitos sociais: isto é, diz somente quem deve ser considerado como sócio para efeitos do exercício dos poderes que, pela sua própria natureza, envolvem a relação com a sociedade.
IX - Assim, quer se entenda que a solução consagrada no artigo 8º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais é uma expressão da não comunicabilidade da qualidade de sócio, quer se entenda que se trata de uma específica restrição ao efeito da comunicabilidade, o que releva em termos práticos é que o cônjuge não é tratado como sócio, pelo que, em relação à sociedade, o cônjuge não, podendo exercer os poderes de sócio, também não pode influenciar internamente a atuação daquela.
X - Deste modo, é certo que, face à sociedade beneficiária do subsídio, os cônjuges das únicas sócias desta não são seus sócios (interpretação maioritária); ou, sendo-o por via do regime de bens do casamento (interpretação minoritária), não têm legitimidade para exercer os direitos sociais correspondentes, pelo que também não devem relevar como sócios comuns face à teleologia da norma aplicável da portaria nacional (prevenir que a influência ou peso dos sócios comuns às duas sociedades – a beneficiária do subsídio e a fornecedora – distorça os termos das transações entre ambas).
Nº Convencional:JSTA000P31860
Nº do Documento:SA120240201056/20
Recorrente:INSTITUTO DE FINANCIAMENTO DA AGRICULTURA E PESCAS, I.P. (IFAP)
Recorrido 1:A..., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento: