Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:075/18.6BCLSB
Data do Acordão:03/21/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
TRIBUNAL ARBITRAL
RESPONSABILIDADE DISCIPLINAR
Sumário: I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem, ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percepcionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
Nº Convencional:JSTA000P24355
Nº do Documento:SA120190321075/18
Data de Entrada:02/15/2019
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:A.....-FUTEBOL, SAD
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – Relatório

1. A……… - Futebol, SAD (A……..), instaurou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), ao abrigo do disposto no artigo 4.º, n.os 1 e 3, al. a), da Lei n.º 74/2013, de 06.09 (na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 33/2014, de 16.06) contra a Federação Portuguesa de Futebol (FCF) recurso de impugnação do acórdão do Conselho de Disciplina da FPF/Secção Profissional, de 27.03.18, que, em sede de recurso hierárquico, manteve a sanção disciplinar de multa no montante de € 6.078,00 pela prática dos ilícitos previstos e punidos pelo art. 127.º, n.º 1, e 187.º, n.º 1, als. a) e b), do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017 (RDLPFP/17).
O TAD, por acórdão de 18.07.2018, julgou improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida, condenando o A…….., SAD, nas custas que, tendo em conta o valor da causa considerado (€ 6.078,00), foram fixadas em 4.150,00 €, valor a que acresce IVA à taxa legal, perfazendo o montante de € 5.104,50.
Inconformado, o A…….., SAD, interpôs recurso jurisdicional para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS). Por decisão singular do relator, de 21.09.18, foi concedido parcial provimento ao recurso e revogado o acórdão do TAD na parte recorrida, anulando-se os actos disciplinares impugnados.
Inconformada com esta decisão, a FPF reclamou para a conferência da decisão singular do relator, a qual, por acórdão de 18.10.18, desatendeu a reclamação e confirmou a decisão reclamada. É desta última decisão que agora se recorre para este Supremo Tribunal.

2. A FPF, ora recorrente, apresentou alegações, concluindo do seguinte modo (cfr. fls. ….):
“1. A Recorrente vem interpor recurso de revista para o STA do Acórdão proferido pelo TCA Sul em 18 de outubro de 2018, que revogou o acórdão arbitral proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto. Esta instância, por seu turno, havia decidido confirmar a decisão de aplicação à ora Recorrida de multas por comportamento incorreto do público, punidas através dos artigos 127.º e 187.º do RD da LPFP;
2. A questão em apreço diz respeito à responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos por ocasião de jogos de futebol, o que, para além de levantar questões jurídicas complexas, tem assinalável importância social uma vez que, infelizmente, os episódios de violência em recintos desportivos têm sido uma constante nos últimos anos em Portugal e o sentimento de impunidade dos clubes dado por decisões como aquela de que agora se recorre nada ajudam para combater este fenómeno;
3. O Acórdão proferido, salvo o devido respeito, carece de fundamentação pois limita-se a remeter a sua fundamentação para outro Acórdão que por sua vez remete para um parecer do Ministério Público – que se considera inadmissível – e, por sua vez, tal parecer do Ministério Público remete para os argumentos apresentados pela ora Recorrida, o que equivale a falta de fundamentação;
4. A questão essencial trazida ao crivo deste STA – responsabilização dos clubes pelos comportamentos incorretos dos seus adeptos – revela uma especial relevância jurídica e social e sem dúvida que a decisão a proferir é necessária para uma melhor aplicação do direito;
5. Assume especial relevância social a forma como a comunidade olha para o crescente fenómeno de violência generalizada no futebol – seja a violência física, seja a violência verbal, seja perpetrada por adeptos, seja perpetrada pelos próprios dirigentes dos clubes;
6. Em causa nos presentes autos estão, essencialmente, comportamentos dos adeptos relacionados com o rebentamento de engenhos pirotécnicos (v. g. petardos, potes de fumo, etc.) por ocasião de jogos de futebol. Ora, como é sabido, para além de serem objetos proibidos, por lei, a entrarem em recintos desportivos, tais engenhos têm a potencialidade de ferirem gravemente os seus utilizadores e os que os rodeiam;
7. São deveres dos clubes assegurar que tais objetos não entram nos estádios de futebol e que os seus adeptos não tenham comportamentos incorretos, o que decorre dos regulamentos federativos, é certo, mas também da lei e da Constituição;
8. Admitir, como fez o TCA Sul, que os clubes devem ser desresponsabilizados pelos comportamentos dos seus adeptos – ao arrepio do entendimento de toda a comunidade desportiva e das instâncias internacionais do Futebol, onde esta questão, de tão clara e evidente que é, nem sequer oferece discussão – é fomentar este tipo de comportamentos o que se afigura gravíssimo do ponto de vista da repercussão social que este sentimento de impunidade pode originar;
9. Esta questão tem conhecido posições contraditórias por parte do TAD, sendo que em treze processos arbitrais a questão foi decidida de forma contrária à que fez o Tribunal a quo. Com efeito, não se ignora que a questão é complexa do ponto de vista jurídico e implica um profundo conhecimento das especificidades da realidade e do direito desportivo, o que, salvo o devido respeito, parece ter falhado ao Tribunal a quo;
10. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros, porquanto desde o início de 2017 até à presente data deram entrada no Tribunal Arbitral do Desporto mais de 50 processos relativos a sanções aplicadas à ora Recorrida por comportamento incorreto dos seus adeptos;
11. Tais números não só demonstram de forma incontestável que a Recorrida nada tem feito ao nível da intervenção junto dos seus adeptos para que não tenham comportamentos incorretos nos estádios, como demonstram que a Recorrida tem traçado um “plano de ataque” que não verá um fim num futuro próximo;
12. É por demais evidente que o coletivo de juízes que proferiu o Acórdão não analisou devidamente o processo. Aliás, o Tribunal limitou-se copiar integralmente decisão anteriormente proferida pelo TCA Sul – o que é usual – mas sem curar de que a parte que copia nem sequer traz nada de relevante para o julgamento da questão. Mais grave do que fazer o chamado copy paste é que essa decisão tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB, entretanto revogada em sede de recurso de revista por este STA – havia remetido toda a sua fundamentação para o parecer que o Magistrado do Ministério Público havia elaborado nos autos;
13. No parecer apresentado pelo MP nos autos, não é minimamente indicado ou sugestionado qual o fundamento constante do CPTA (ou até da CRP, admita-se) que estará subjacente à emissão do mesmo, qual o interesse que o MP se encontra a proteger, quais os valores que estará a amparar com a sua vinda aos autos ou quais os direitos fundamentais que pretende com ela salvaguardar;
14. E essa era uma indicação (por incidental que fosse) indispensável à emissão do parecer a que fazemos referência – só assim se poderia entender como legítima a intervenção processual do MP;
15. Sendo ilegítima a intervenção do Ministério Público, é também ilegítima a apropriação dos seus fundamentos por parte dos juízes do TCA Sul;
16. Ora, no final deste jogo de remissões, acaba por não ser apreensível qual a fundamentação do Acórdão recorrido para decidir como decide;
17. O artigo 154.º do CPC, aplicável por via do artigo 1.º do CPTA, sob a epígrafe “dever de fundamentar a decisão”, diz-nos que “1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.” e o n.º 2 que “2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”:
18. Não se trata de despacho interlocutório, pelo que a fundamentação do Acórdão não podia limitar-se a uma remissão para um parecer do MP (ainda para mais, inadmissível) que por sua vez remete e adere aos argumentos apresentados pela ora Recorrida A………. - Futebol SAD. Tal é expressamente vedado pelo n.º 2 do artigo 154.º do CPC;
19. O próprio sentido do n.º 5 do artigo 94.º do CPTA é este, assim como o do n.º 5 do 663.º do CPC; a remissão apenas pode operar para uma decisão procedente, de que se junte cópia, e nunca para um parecer do MP, muito menos para a peça processual de defesa apresentada por uma das partes. Também neste sentido, veja-se o Acórdão do TCA Sul, de 25.06.2015;
20. A Recorrente fica sem saber, afinal, quais os fundamentos determinantes para que o Tribunal a quo tivesse decidido pela improcedência do recurso apresentado;
21. Face ao exposto, o Acórdão de que se recorre é, desde logo, nulo por falta de fundamentação pelo que é imperioso que sobre esta matéria recaia, efetivamente, uma decisão;
22. Não existe nenhuma crítica a fazer à decisão proferida pelo TAD, ao contrário do que entendeu o TCA Sul;
23. Em suma, de acordo com o Relatório de Ocorrências – que, recorde-se, não foi colocado em causa pela A……… - Futebol SAD nos presentes autos nem sequer foi requerida prova para contrariar o seu conteúdo –, na bancada Sul do Estádio ……….., durante jogo contra B……….., os adeptos do A……… rebentaram petardos e entoaram cânticos ofensivos;
24. A Recorrida não colocou em momento algum em causa que estes factos aconteceram, colocou em causa, sim, que tenham sido adeptos do A………. os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas;
25. Tal como consta dos Relatórios de Jogo cujo teor se encontra a fls. … do processo arbitral, os Delegados da Liga são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do A………, sem deixar qualquer margem para dúvidas;
26. Com base nesta factualidade, o Conselho de Disciplina instaurou os competentes processos sumários à Recorrida. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito;
27. Este é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.º do RD da LPFP) somente por análise do relatório de jogo (e, possivelmente, outros elementos aí referidos) que, como se sabe, tem presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. Artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP);
28. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube;
29. Assim, quando os Delegados da LPFP colocam no seu relatório que foram adeptos de determinada equipa que levaram a cabo determinados comportamentos, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos delegados no local. Até porque, caso os Delegados coloquem os seus relatórios factos que não correspondam à verdade, podem ser alvo de processo disciplinar;
30. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD’s que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrida. O RD da LPFP é aprovado em Assembleia Geral da LPFP, de que faz parte a Recorrida, assim como todos os outros clubes que integram as ligas profissionais. Em concreto, a Recorrida não se manifestou contra a aprovação das normas pelas quais foi punida em sede de Assembleia Geral tendo, pelo contrário, aprovado as mesmas decidindo conformar-se com elas;
31. Entende a Recorrida que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório de Jogo) que a Recorrida violou deveres de formação e vigilância, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo;
32. Entendeu já o Supremo Tribunal Administrativo (por várias vezes, aliás) que “a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «iis quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur».”;
33. Assim, o Relatório de Jogo, atento o seu conteúdo, é perfeitamente suficiente e adequado para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto. Ademais, há que ter em conta que no caso concreto existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento;
34. De acordo com o artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP, um dos princípios fundamentais do procedimento disciplinar é o da “f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa”;
35. Isto não significa que o Relatório de Jogo contenha uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrida incumpriu os seus deveres;
36. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil;
37. A Recorrida não tinha que fazer prova absoluta da não verificação dos pressupostos legalmente exigidos, bastando-lhe efetuar a contraprova, fundada num mero juízo de probabilidades. É que, mesmo em sede sancionatória, o “arguido” não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido;
38. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido do Relatório de Ocorrências pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrida. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal Arbitral do Desporto;
39. A documentação junta aos autos foi analisada criticamente, tanto pelo Conselho de Disciplina como pelo Tribunal Arbitral, à luz da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade, designadamente no que se refere à conclusão de que os objetos descritos no relatório dos Delegados da LPFP só entraram e permaneceram no estádio porque a Recorrida, no caso com responsabilidade acrescida por ser entidade organizadora do jogo, não tomou quaisquer medidas que viessem a impedir as ocorrências descritas e praticadas pelos adeptos da bancada sul, afetos ao A………..;
40. Por seu turno, o TCA Sul nada analisa nem nada fundamenta;
41. Também a Recorrida nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede;
42. No que diz respeito ao cumprimento ou incumprimento dos seus deveres, a Recorrida nada refere, ademais porque entende que as normas regulamentares em causa estabelecem uma responsabilidade objetiva, que reputa como inconstitucional;
43. Ademais, a Recorrida está aqui a aplicar um nível de prova altíssimo – para além da dúvida razoável – que nem sequer é a usada pela UEFA nestes casos, conforme reiteradamente decidido pelo CAS que entende como suficiente “a confortable satisfaction” por parte do julgador (neste sentido, por exemplo, veja-se a decisão do CAS no processo 2013/A/3047 Zenit St. Petersburg v. Russian Football Union);
44. Assim, é importante referir que do conteúdo do Relatório de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair diretamente duas conclusões: (i) que o A………… incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos entrado com objetos proibidos (violação do dever de vigilância) nem perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do A…………, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos (única forma dos Delegados identificarem os espectadores, para além da bancada, que essa sim, está reservada para adeptos do GOA naquele estádio);
45. Isto significa que para concluir que quem teve um comportamento incorreto foram adeptos da Recorrida e não adeptos do clube visitante (e muito menos de um clube alheio a estes dois, o que seria altamente inverosímil), o Conselho de Disciplina tem de fazer fé no relatório dos delegados, o qual tem presunção de veracidade. Posteriormente, a Recorrida pode fazer prova que contrarie estas evidências, porém, no caso concreto, tal não aconteceu;
46. Conforme é desde logo estipulado no artigo 172.º, n.º 1 do RD da LPFP: “1. Os clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial.”;
47. Mas tais deveres – de assegurar a ordem e disciplina – não estão apenas previstos em normas regulamentares criadas pela Federação ou pela LPFP; estão desde logo previstos na Constituição e na Lei;
48. A prevenção e combate à violência associada ao desporto, a denominada violência exógena – para além da inerente à prática desportiva presente em algumas modalidades –, é algo que, em particular, a partir da década oitenta do século passado, tem convocado a atenção dos Estados e das organizações desportivas;
49. No plano da legislação desportiva nacional, valem hoje em dia as normas constantes da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho (na sua atual redação consolidada em anexo à Lei n.º 52/2013, de 25 de julho, que procedeu à sua segunda alteração), que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança;
50. Como já há muito foi realçado, nesta dupla função – prevenção e combate - encontram-se presentes diversos operadores. A ação desses diversos operadores revela-se essencial para a prossecução das finalidades da lei e, ademais, assenta num previsto e determinante princípio da colaboração, com raízes constitucionais;
51. Aliás, a responsabilidade dos clubes pelas ações dos seus adeptos ou simpatizantes está prevista desde logo no artigo 46.º do regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, pelo que nem sequer é uma inovação ou uma invenção dos regulamentos disciplinares federativos ou da liga;
52. Em suma, a prevenção e combate à violência associada ao desporto é um dever de todos esses operadores, independentemente da sua natureza jurídica e da localização que tenham nas competições desportivas;
53. É um dever fundamental do Estado mas também desses outros operadores, previsto desde logo no artigo 79.º, n.º 2 da Constituição;
54. O próprio Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 730/95, diz claramente que “o processo disciplinar que se manda instaurar (…) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)”;
55. Ainda que se entenda – o que não se concede – que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrida, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido – a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrida e a violação dos respetivos deveres – foi retirado de outros factos conhecidos;
56. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrida e do que parece entender o TCA Sul;
57. No caso concreto, é absolutamente líquido que segundo as normas circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável foram adeptos do A……….. a perpetrar as condutas descritas e que a Recorrida era a entidade responsável pela revista de adeptos, impondo a necessária segurança no estádio; donde resulta, sem margem para dúvidas, que a Recorrida incumpriu com os seus deveres e deve ser responsabilizada;
58. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto já se pronunciou por treze vezes em sentido diverso ao entendimento sufragado pelo TCA Sul, e de forma totalmente consentânea com o sufragado no Acórdão proferido pelo TAD em análise nos autos;
59. Neste mesmo sentido, veja-se o Acórdão deste STA proferido no âmbito do recurso n.º 297/18, interposto da decisão do TCA Sul tirada no processo n.º 144/17.0BCLSB que dando provimento ao recurso de revista diz que é lícito o uso das presunções judiciais e que cabe ao clube apresentar prova que contrarie a presunção de veracidade dos relatórios, o que no caso, não sucedeu;
60. A tese sufragada pelo TCA é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência;
61. A interpretação perfilhada no acórdão recorrido levará a uma crescente desresponsabilização por este tipo de atos e não se diga que os clubes não podem ser responsabilizados por factos praticados pelos seus adeptos, pois tal responsabilização deriva de uma evolução recente e salutar no fenómeno desportivo e que visa a diminuição da violência no desporto e intima os clubes a tomarem medidas para assegurar que tais factos não se verifiquem;
62. Face ao exposto, deve o acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado por erro de julgamento, designadamente por errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 13.º, al. f), 127.º, 172.º, 186.º, n.º 1, 187.º, n.º 1, al. a) e b) e 258.º do Regulamento Disciplinar da LPFP.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis,
Deverá o presente recurso de revista ser admitido, sendo determinando procedente o recurso apresentado, e, consequentemente, revogado o acórdão proferido pelo TCA Sul, com as necessárias consequências, ASSIM
SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA.

3. O recorrido A………. culminou as suas contra-alegações com as seguintes conclusões (cfr. fls. ….):
“i. Ainda que a Recorrente não a evidencie com clareza e objectividade, a questão normativa que entende mal apreciada e decidida pelo Tribunal a quo parece ser a relativa ao critério de apreciação da prova em processo disciplinar.
ii. Tendo por referência o disposto no art. 150.º-2 e -4 do CPTA, a questão de direito que releva será o critério pelo qual haverão o Conselho de Disciplina, o Tribunal Arbitral do Desporto, os Tribunais Administrativos, bem como as demais entidades com poderes sancionatórios e decisórios, de seguir aquando da apreciação da prova respeitante aos comportamentos incorrectos da autoria de espectadores no decorrer de um evento desportivo como o jogo de futebol de onze, concretamente no âmbito de aplicação do RDLPFP.
iii. Pese embora o Tribunal tenha feito uso da hipótese de fundamentação por remissão, que além de legalmente admissível (art. 663.º-5 do CPC, subsidiariamente aplicável por força do art. 140.º do CPTA) vem sendo amplamente reconhecida na jurisprudência (cf. ac. STJ de 19.9.2002), o acórdão recorrido não falha o seu dever de fundamentação, não padecendo de qualquer vício.
iv. Parte da alegação do presente recurso exprime a discordância da Recorrente sobre os termos em que a instância inferior (TCAS) procedeu à apreciação da matéria em discussão e à valoração dos meios de prova constantes dos autos; alegação essa que, como se referiu já, é insusceptível de ser conhecida e apreciada pelo STA em sede de recurso de revista (art. 150.º, n.º 2 e 4, do CPTA), pelo que nessa parte, em tudo o que no recurso consista na “interpelação” para que a matéria de facto seja alterada com base numa reapreciação das provas carreadas para os autos, deverá o recurso ser não conhecido, por inadmissibilidade legal do juízo requerido pela recorrente.
v. Sobrará, assim, a parte da alegação em que a Recorrente “chama a terreiro” o problema normativo da valoração da prova, designadamente, o critério legal da apreciação da prova em processo disciplinar desportivo, matéria esta susceptível de ser conhecida em sede de revista.
vi. Revista que, todavia, deverá improceder, porque fundada numa total desconsideração dos princípios estruturantes do processo disciplinar, que não poderão deixar de abranger o exercício do poder sancionatório previsto no RDLPFP, alguns deles inclusive portadores de estatuto constitucional.
vii. O arguido em processo disciplinar, tal como ocorre em processo penal, não tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, até porque, aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar (cf. jurisprudência uniforme e pacífica, e reiteradamente afirmada nos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 19/01/95, rec. n.º 031486, de 14/03/96, rec. n.º 028264, de 16/10/97, rec. n.º 031496 e de 27/11/97, rec. n.º 039040), vigora ainda o princípio da presunção de inocência.
viii. O princípio da presunção de inocência do arguido, também presente no âmbito do processo disciplinar, tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido – in casu a Recorrida – o ónus de reunir as provas da sua inocência (neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do TCA Norte de 02.10.2010, processo n.º 01551/05.8BEPRT, e ainda o acórdão do TCA Norte de 05.10.2012, processo n.º 01958/08.7BEPRT, disponíveis em www.dgsi.pt).
ix. Donde, toda a prova susceptível de conduzir à responsabilidade jurídico-penal do arguido deve ser carreada para os autos pelo titular da acção disciplinar, não sendo, por isso, admissível qualquer inversão do ónus da prova em sede disciplinar (cf. Acórdão do STA de 17.02.2008, processo n.º 0327/08, acórdão do STA de 28.04.2005, processo n.º 333/05, bem como o acórdão do STA de 12.01.1998, processo n.º 023940, disponíveis em www.dgsi.pt).
x. Revela-se, aliás, unânime que o arguido em processo disciplinar tem direito a um “processo justo”, o que passa, designadamente, pela aplicação de algumas das regras e princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, como é o caso do citado princípio da presunção da inocência, acolhido no art. 32.º-2 da CRP (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 27/11/97, in Rec. n.º 039040; 16.OUT.97, in Rec. nº 031496, de 14/03/96, in Rec. n.º 028264; de 19.JAN.95, in Rec. n.º 031486; de 10.DEZ.98, in Rec. n.º 037808; de 01.MAR.07, in Rec. n.º 01199/06; de 28.ABR.05, in Rec. n.º 333/05; de 17.MAI.01, in Rec. n.º 40528, disponíveis em www.dgsi.pt).
xi. É precisamente o princípio de inocência que exige ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infracções para condenar a Recorrente, não se bastando com meras ilações, ou uma simples referência geográfica, como, porém, aconteceu.
xii. Portanto, sem que esteja demonstrada e devidamente comprovada, através de robustas provas, a materialidade e autoria da infracção disciplinar fica comprometida qualquer condenação do arguido/recorrida, que deve ter a seu favor a presunção de inocência cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).
xiii. Ainda que os relatórios gozem de uma presunção de veracidade e sejam elaborados pelos Delegados presentes ao jogo, não se podem aqui diminuir as exigências de prova e de sua apreciação, bastando-se com simples afirmações vertidas em relatórios.
xiv. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13.º, f), do RD, pode contrariar o quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador.
xv. Para efeitos disciplinares, como in casu, é relevante afirmar que a prova dos factos integradores da infracção é determinada face aos elementos existentes no processo e pela convicção do julgador, estando sujeita ao princípio da livre apreciação da prova (cf. art. 127.º do CPP e art. 94.º-4 do CPTA).
xvi. Uma vez que o RDLPFP nada dispõe em contrário, competirá ao julgador – na fixação dos factos e pressupostos da aplicação da pena disciplinar – formular o seu juízo sobre a realidade e sentido dos factos através da apreciação do material probatório, segundo aquela que é a sua livre convicção.
xvii. Ainda que as provas coligidas possam, em teoria, ser aptas a determinar a instauração do procedimento disciplinar contra o arguido, por se revelarem suficientes, na óptica da acusação, para o considerar suspeito dos factos em causa, para punir disciplinarmente algum agente sempre será preciso ir mais além, recolhendo e produzindo provas concretas que permitam criar a convicção no julgador de que se mostram preenchidos todos os pressupostos exigidos pelo tipo legal.
xviii. A imputação de todos e cada um dos elementos do tipo “incriminador” deve estribar-se em meios de prova que os sustentem, com a natureza de prova directa ou, pelo menos, de prova indirecta.
xix. Considerando os pressupostos legais exigidos para a imputação e condenação pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 127.º-1 e 187.º-1, a) e b) do RDLPFP, era necessário que o Conselho de Disciplina da FPF tivesse carreado aos autos prova suficiente de que i) os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da A……….. – Futebol SAD, como ainda que ii) tais condutas resultaram de um comportamento culposo da A………..- Futebol SAD.
xx. Tal produção de prova jamais podia competir ou ser exigido à arguida, não se podendo neste âmbito admitir – como pretende a Recorrente – uma inversão do ónus da prova.
xxi. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese da Recorrida equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência¸ o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.
xxii. Além do mais, não se pode aqui abrir a porta, a uma “prova por presunção” sobre a autoria dos factos e sobre a violação de deveres constitutiva da ilicitude típica.
xxiii. A prova em sede disciplinar, designadamente aquela assente em presunções judiciais, tem de ter robustez suficiente, tem de ir para além do início da prova, para permitir, com um grau sustentado de probabilidade, imputar ao agente a prática de determinada conduta, tendo sempre presente um dos princípios estruturantes do processo sancionatório que é o da presunção da inocência, designadamente: “todo o acusado tenha o direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular” (GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, I, Verbo, 2008, p. 82).
xxiv. Também não se pode aqui admitir a aplicação de acordo com o qual: à recorrente, titular do poder punitivo disciplinar, caberia fazer a prova da primeira aparência da verificação do facto; e à recorrida, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
xxv. Tal critério consubstancia uma violação ao princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a recorrida é titular.
xxvi. E do mesmo passo implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
xxvii. Note-se que, tal posição não tem qualquer base legal ou regulamentar: nesta matéria, os regulamentos aplicáveis não estabelecem qualquer presunção da verificação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar, nem se atribuiu ao arguido qualquer ónus de infirmação do que quer que seja.
xxviii. Trata-se, aliás, de critério decisório incompatível com o princípio da presunção de inocência, por duas ordens de razões: por implicar a imposição de um ónus de prova ao arguido; e por baixar o grau de convicção da verificação do facto para um nível insuportável: não a certeza correspondente à convicção para além de toda a dúvida razoável, mas a suspeita baseada somente na primeira aparência.
xxix. O critério decisório pelo qual pugna a Recorrente – o da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido – contraria jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, a qual representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s) (veja-se, a titulo de exemplo, (Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881; Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, Ac. do STA de 18-02-1997, Proc. 033791, Ac. do STA de 28-06-2011, Proc. 0900/10, Ac. do STA de 18-04-2002, Proc. 033881, tirado em Pleno, disponíveis em www.dgsi.pt).
xxx. Atendendo aos pressupostos exigidos pelos tipos legais previstos nos arts. 127.º-1 e 187.º-1, a) e b) do RD sempre se exigirá para a condenação do clube, in casu a Recorrida, que se mostrassem suficientemente provados – através da produção de prova que incumbe ao titular do processo disciplinar e a qual será sujeita a uma livre apreciação – os factos consubstanciadores da prática das infracções disciplinares; não se tendo verificado tal prova nos autos, e considerando o quadro normativo aplicável ao caso, fica necessariamente prejudicada a alegação da Recorrente.
xxxi. A pretensão da Recorrente está claramente condenada ao fracasso, pois que, mesmo atentando ao descrito nos relatórios de jogo percebe-se que nenhum facto neles é sequer descrito em favor do preenchimento de pressuposto essencial dos tipos legais: uma actuação culposa da Recorrida.
xxxii. Porquanto se mostram por preencher todos os elementos das infracções e não tendo o titular da acção disciplinar carreado aos autos algum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais – uma actuação culposa por parte do clube – nem mesmo nos relatórios de jogo em que sustenta a condenação do clube, sempre se impunha resolver “em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo”.
xxxiii. Face ao exposto, não padece o acórdão recorrido de qualquer erro de julgamento, tendo subsumido correctamente os factos alegados ao direito aplicável.
xxxiv. Se, por mera hipótese de raciocínio, proceder a tese da Recorrente, reputa-se como inconstitucional – por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.º, n.ºs 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.º da CRP) – a interpretação dos artigos 222.º-2 e 250.º-1 do RDLPFP de 2016 segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
xxxv. O douto acórdão do Tribunal a quo não merece qualquer reparo ou censura, devendo manter-se “in totum”.
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem julgar improcedente o recurso de revista, confirmando-se integralmente o douto acórdão recorrido”.

5. Por acórdão deste Supremo Tribunal [na sua formação de apreciação preliminar prevista no n.º 1 do artigo 150.º do CPTA], de (fls. …), veio a ser admitida a revista, na parte que agora mais interessa, nos seguintes termos:
“(…)
Como se viu não vem posta em causa a existência dos factos que originaram a instauração do processo disciplinar e a consequente condenação do Recorrido, isto é, que no referido jogo, nas bancadas reservadas aos membros dos grupos organizados de adeptos do A……….., houve rebentamento de petardos, potes de fumo, flash lights e gritos ofensivos contra adversários.
E, se assim é, o que está em causa é, apenas e tão só, a questão é a de saber se a ocorrência de tais factos é, por si só, independentemente do que se vier a provar em sede de culpa, suficiente para sancionar o A……….. pela prática das identificadas infracções. Ou seja, e dito de forma diferente, importa saber se o TCA ajuizou correctamente quando afirmou que, não sendo objectiva a responsabilidade pela prática de tais infracções, será indispensável que a FPF prove que o A………., no citado jogo, não vigiou convenientemente a entrada no estádio dos seus adeptos e que os autores dos factos puníveis tinham sido, de facto, seus adeptos.
O que evidencia que a questão que aqui se coloca tem relevante importância jurídica uma vez que é decisivo saber, se nas circunstâncias dos autos, recai sobre a acusação o ónus de provar o que o Acórdão recorrido considerou indispensável sob pena de absolvição do Clube acusado. Se assim for, isto é, se for fundamental fazer a prova exigida por aquele Aresto a conclusão que se retira é que os normativos alegadamente violados terão uma diminuta aplicação visto ser muito difícil fazer essa prova. O que vale por dizer que a aplicação do disposto nos art.º 127.º e 187.º do RD da FPF, que a Recorrente considera importante para assegurar a ordem nos desafios de futebol, será residual. Questão cuja relevância jurídica e social é, por si só, suficiente para justificar a admissão da revista”.

6. A Digna Magistrado do Ministério Público, notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso de revista, pronúncia esta que, objecto de contraditório, mereceu resposta discordante do A………., SAD.

7. Sem vistos legais (cfr. arts. 36.º, n.os 1 e 2, do CPTA, e 8.º, n.º 2, da Lei do TAD [LTAD]) vêm os autos à conferência para decidir.

II – Fundamentação

1. De facto:
O acórdão recorrido considerou a seguinte quadro factual, que aqui se dá por integralmente reproduzido:
Os factos que a decisão recorrida elenca como provados, são os seguintes:
1. No dia ....... de ........... ......, no Estádio ……….., no Porto, realizou-se o jogo a contar para a ……...ª jornada da Liga ………., oficialmente identificado pelo n.º ………. (203.01.182), que opôs a A……….. - Futebol SAD e a C………… - Futebol SAD.
2. A bancada topo Sul (sectores 81 9, 10 e 11) e a bancada Norte (sector 28) do Estádio ………. são as zonas do estádio reservadas unicamente aos membros dos Grupos Organizados de Adeptos “………….” e “………..” afectos à Demandante.
3. No âmbito do referido jogo, os membros dos Grupos Organizados de Adeptos “……….” e “ ………..” afectos à Demandante foram instalados na bancada topo Sul (sectores 8, 9, 10 e 11) e na bancada Norte (sector 28) do Estádio ……….

4. Os adeptos dos GOA afectos à Demandante, situados nas indicadas bancadas do Estádio ………, deflagraram os seguintes potes de fumo: 2 no início do jogo, 2 aos 13 minutos da primeira parte e 2 aos 38 minutos da segunda parte.
5. Os adeptos dos GOA afectos à Demandante, situados nas indicadas bancadas do Estádio ………., deflagraram os seguintes flash light: 2 no início do jogo, 2 aos 13 minutos da primeira parte e 2 aos 38 minutos da segunda parte.
6. Os adeptos dos GOA afectos à Demandante, situados nas indicadas bancadas do Estádio ………, deflagraram os seguintes petardos: 1 aos 13 minutos da primeira parte e 1 aos 73 minutos da segunda parte
7. Os adeptos dos GOA afectos à Demandante, situados nas indicadas bancadas do Estádio …………., aos 19 minutos da primeira parte, entoaram em coro e repetidas vezes a expressão “……..,……, ……., filhos da puta, …….”.
8. “Os adeptos dos GOA afectos à Demandante, situados nas indicadas bancadas do Estádio ………., aos 62 minutos da segunda parte, entoaram em coro e repetidas vezes as expressões “Ó C…….. vai pro caralho” e “Filhos da puta, aconteça o que acontecer, C………… é merda até morrer”
9. “Os adeptos dos GOA afectos à Demandante, situados nas indicadas bancadas do Estádio …………, aos 80 minutos da segunda parte, entoaram em coro e repetidas vezes a expressão “C…….. é merda”.
10. A Demandante não adoptou as medidas preventivas adequadas e necessárias a fim de impedir que os seus adeptos entrassem, permanecessem e deflagrassem no interior do Estádio …….., os artefactos pirotécnicos descritos nos factos provados 4, 5 e 6.
11. A Demandante não adaptou as medidas preventivas adequadas e necessárias à evitação dos acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, descritos nos factos 4 a 9.
12. A Demandante agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que, ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto entidade organizadora do evento desportivo em causa e clube participante no dito jogo de futebol
13. Na presente época desportiva, à data dos factos, a Demandante já havia sido sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infracções disciplinares.
*
5.2 Fundamentação de facto – Matéria de Facto dada como não provada.
Não se apuraram quaisquer outros factos que, directa ou indirectamente, interessem ao presente processo.
*
6. Motivação da Fundamentação de Facto
A matéria de facto dada como provada, resulta da documentação junta aos autos, em especial dos documentos constantes do Processo de Recurso Hierárquico Impróprio n.º 52 - 17/18 – nomeadamente, o relatório do árbitro (fls. 20 a 24 do PD), o relatório do delegado (fls. 25 a 27 do PD), o relatório de policiamento desportivo (fls. 34 a 36), os esclarecimentos prestados pelos Delegados da LPFP (fls. 101), e o extracto disciplinar da Demandante (fls. 57 a 69), tendo-se observado, inter alia, o princípio da livre apreciação da prova. (Cfr. o artº 94º, n.º 4 do CPTA, aplicável ex. vi do art.º 61º da LTAD. Sobre esta temática, vide, na jurisprudência, o Acórdão do TCA Norte, de 27/05/2010, Proc. 0102/06.0BEBRG, disponível em www.dgsi.pt).
Nos termos do preceituado no citado artigo 607º, n.º 5 do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 1.º CPTA e artigo 61.º da Lei do TAD, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, decidindo o Juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Tal preceito consagra o princípio da prova livre, o que significa que a prova produzida em audiência (seja a prova testemunhal ou outra) é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência, tendo em consideração a sua vivência da vida e do mundo que o rodeia. De acordo com Alberto dos Reis prova livre “quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” (Código de Processo Civil, anotado, vol. IV, pág. 570).Também temos de ter em linha de conta que o julgador deve “tomar em consideração todas as provas produzidas” (artigo 413.9 do Código de Processo Civil), ou seja, a prova deve ser apreciada na sua globalidade.
Ora, no contexto do caso concreto, entende-se que afirmação, expressamente evocada no “Relatório de Delegado” em alusão, quanto à específica circunstância de serem adeptos do A……… que deflagraram os petardos em causa e que entoaram os cânticos em questão, corresponde à realidade, porquanto tais factos foram claramente descritos neste exacto sentido pelos Delegados que estiveram presentes no local onde decorreu o jogo e que têm por missão primária registar todas as ocorrências que aí sucedam e, outrossim, na medida em que a bancada topo Sul do Estádio …………, indicada expressis verbis por tais Delegados, é consabidamente ocupada por adeptos afectos à Demandante, em particular pelas claques denominadas “………” e “……….”.
Por outro lado, importa salientar que os “relatórios de delegados” gozam de uma presunção de veracidade que somente pode ser afastada quando existam razões ponderosas para o efeito. Aliás, está em causa uma presunção da maior importância no domínio do direito disciplinar desportivo, inscrevendo-se nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar (cfr. o art. 13º, alínea f) do RD da LPFP) - (Como explicavam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “A presunção consiste na dedução, na inferência, no raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo, provado ou conhecido, e se chega a um facto desconhecido. (...) A prova por presunção reveste uma importância prática extraordinária, visto haver muitos factos, com interesse decisivo, para a procedência das acções (...), que poucas vezes podem ser objecto de prova directa, tendo o julgador de contentar-se com meras presunções, sob pena de se denegar justiça a cada passo” (cfr. ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, “Manual de Processo Civil”, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 501).
Acresce que a Demandante não coloca em causa, id. est., não nega a ocorrência dos factos registados no predito “Relatório de Delegado”. Na verdade, a Demandante apenas contesta que tenham sido adeptos do A………. os autores dos factos em causa nos presentes autos. Sucede, contudo, que embora a Demandante teça diversas considerações pertinentes sobre algumas possibilidades que se colocam, em abstracto, no que respeita à autoria das sobreditas “ocorrências”, não conseguiu infirmar, com plausibilidade, o que foi redigido no referido “Relatório de Delegado”.
Por outras palavras, a Demandante não ilidiu a presunção de que corresponde à verdade o teor do “Relatório de Delegado” aqui em questão
De resto, nada existe nos autos que possa colocar em crise, com verosimilhança, o conteúdo do “Relatório de Delegado” em alusão.
Observe-se ainda, no que tange à apreciação da prova pela entidade administrativa no âmbito do processo disciplinar, que o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a considerar que “a condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta, férrea ou apodíctica da sua responsabilidade, bastando que os elementos probatórios coligidos a demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável”, sendo ademais admissível à Administração – “e até obrigatório” – usar de presunções naturais, desde que as mesmas se revelem adequadas (Cfr. o Ac. do STA, de 21/10/2010, Proc. n.º0607/10, disponível em www.dgsi.pt).
*
Em concreto, com referência aos factos considerados provados, o Tribunal formou a sua convicção nos seguintes moldes:
1. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 20, 25, 28, 30 e 34 do mesmo
2. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 25 a 27, 34 a 36, 51 a 56 do mesmo
3. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 25 a 27, 34 a 36, 51 a 56 do mesmo
4. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 25 a 27, 34 a 36, 101 e 103 do mesmo
5. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 25 a 27, 34 a 36, 101 e 103 do mesmo
6. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 25 a 27, 34 a 36, 101 e 103 do mesmo
7. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 25 a 27, 34 a 36, 101 e 103 do mesmo
8. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 25 a 27, 34 a 36, 101 e 103 do mesmo
9. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 25 a 27, 34 a 36, 101 e 103 do mesmo
10. Resulta da análise conjugada do processo disciplinar e da prova produzida nos presentes autos.
11. Resulta da análise conjugada do processo disciplinar e da prova produzida nos presentes autos.
12. Resulta da análise conjugada do processo disciplinar e da prova produzida nos presentes autos.
13. Resulta dos documentos juntos ao processo disciplinar, nomeadamente de fls. 57 a 69 do mesmo.
Cremos, pois, que a factualidade dada como assente resulta da instrução da causa, para além de qualquer dúvida razoável.

2. De direito:


2.1. Cumpre apreciar as questões suscitadas pela ora recorrente – delimitado que está o objecto do respectivo recurso pelas conclusões das correspondentes alegações –, relacionada com a verificação de nulidade por falta de fundamentação e de erro de julgamento por errada interpretação e aplicação dos artigos 13.º, al. f), 127.º, 172.º, 186.º, n.º 1, 187.º, n.º 1, als. a) e b), e 258.º do RD/LPFP-2017.

2.2. Da nulidade por falta de fundamentação
Entende a recorrente FPF que o acórdão recorrido enferma de nulidade por falta de fundamentação, apoiando esta sua posição fundamentalmente nos seguintes aspectos. Por um lado, “O Acórdão proferido, (…), carece de fundamentação pois limita-se a remeter a sua fundamentação para outro Acórdão que por sua vez remete para um parecer do Ministério Público – que se considera inadmissível – e, por sua vez, tal parecer do Ministério Público remete para os argumentos apresentados pela ora Recorrida, o que equivale a falta de fundamentação”; “Ora, no final deste jogo de remissões, acaba por não ser apreensível qual a fundamentação do Acórdão recorrido para decidir como decide” (conclusões 3. e 16. das alegações). Por outro lado, “O artigo 154.º do CPC, aplicável por via do artigo 1.º do CPTA, sob a epígrafe “dever de fundamentar a decisão”, diz-nos que “1. As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.” e o n.º 2 que “2. A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”; “Não se trata de despacho interlocutório, pelo que a fundamentação do Acórdão não podia limitar-se a uma remissão para um parecer do MP (ainda para mais, inadmissível) que por sua vez remete e adere aos argumentos apresentados pela ora Recorrida A………… - Futebol SAD. Tal é expressamente vedado pelo n.º 2 do artigo 154.º do CPC” (conclusões 17. e 18. das alegações).
Vejamos se assiste razão à recorrente.
Esta mesma exacta questão já foi colocada em outros processos que correram termos neste STA e que envolveram questões jurídicas e factualidade semelhantes à dos presentes autos. São eles os Acórdãos de 18.10.18, Proc. n.º 144/17.0BCLSB; de 20.12.18, Proc. n.º 8/18; e de 21.02.19, Proc. n.º 33/18.0BCLSB, e, em relação a ela, verifica-se que há convergência quanto à respectiva solução, firmando-se orientação com a qual concordamos e, nesse sentido, acompanhamos. Cabe aqui transcrever um excerto extraído do primeiro dos arestos mencionados em que, justamente, e tal como no caso vertente, a FPF recorria do acórdão do TCAS:
Nos recursos jurisdicionais, o art.º 146.º, n.º 1, do CPTA, admite que o MP, quando não seja parte no processo, tenha nele intervenção para se pronunciar sobre o mérito do recurso, ou seja, sobre a legalidade da decisão recorrida.
Como notam Mário Aroso de Almeida e Carlos Fernandes Cadilha (in “Comentário ao CPTA”, 2017-4.ª edição, págs. 637), vigora neste domínio um critério de oportunidade que ao MP cabe fazer actuar e que é insusceptível de controlo jurisdicional, pelo que só àqueles magistrados incumbe analisar a relevância dos interesses em jogo.
Verificada a referida intervenção, não ocorre a violação do n.º 2 do art.º 154.º do CPC quando a decisão remete para um parecer do MP que não é parte no processo.
E não se pode afirmar que, no caso em apreço, esse parecer se limitou a aderir à posição da recorrida, dado que, como resulta do seu teor, atrás parcialmente transcrito, embora nele se manifeste concordância com argumentação por aquela apresentada, não se louvou apenas nos fundamentos por ela invocados”.
Improcede, deste modo, a arguida nulidade por falta de fundamentação do acórdão recorrido, dado que do acórdão recorrido consta com suficiência a motivação de facto e de direito que sustenta a decisão.

2.3. Do erro de julgamento por violação dos artigos 13.º, al. f), 127.º, 172.º, 186.º, n.º 1, 187.º, n.º 1, als. a) e b), e 258.º do RD/LPFP-2017,

No que concerne, agora, ao alegado erro de julgamento, sustenta a ora recorrente que o acórdão do TAD não merece qualquer censura, pelo que andou mal o acórdão recorrido ao revogá-lo. Fundamentalmente, entende que o relatório do jogo, assente em factos reais, e que beneficia de uma presunção de veracidade nos termos do artigo 13.º, al. f) do RD/FPF – juntamente com as regras da experiência comum e com os documentos junto aos autos –, constitui prova suficiente da ocorrência dos factos que deram origem aos actos punitivos dirigidos ao A………, SAD, por incumprimento dos seus deveres relacionados com a manutenção da segurança e da disciplina em recintos desportivos.
Já a recorrida defende, em síntese, e quanto a estas específicas questões, que a prova dos factos ocorridos, que deve ser cabal (apoiada em provas robustas), cabe unicamente à ora recorrente; que neste domínio disciplinar não cabe a inversão do ónus da prova sob pena de violação do princípio da presunção da inocência e das regras do ónus probatório; não devem valer, do mesmo modo, presunções no que respeita à prova; aqueles princípio será desrespeitado se se entender que à ora recorrente apenas caberá a prova da primeira aparência, competindo à agora recorrida fazer a contraprova;
Vejamos.

À semelhança do que ocorreu com a questão da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, também quanto às questões acima enunciadas se pode constatar que elas foram tratadas nos arestos deste STA acima mencionados, os quais convergem em orientações e soluções com as quais concordamos. Assim sendo, mostra-se oportuno transcrever um excerto do último dos acórdãos mencionados (de 21.02.19, Proc. n.º 33/18.0BCLSB, o qual, por sua vez, transcreve trechos dos outros arestos mencionados) que trata de todas estas questões. Passa-se, então, à sua transcrição:

22. No processo disciplinar, à semelhança do que sucede no processo penal, o ónus da prova dos factos constitutivos da infração cabe ao titular do poder disciplinar, não sendo o arguido que tem de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada, pelo que perante um non liquet em matéria de prova o mesmo terá de ser resolvido em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do in dubio pro reo.

23. E na fixação dos factos que funcionam como pressupostos de aplicação das penas disciplinares a Administração não detém um poder insindicável em sede contenciosa, porquanto nada obsta a que o julgador administrativo sobreponha o seu juízo de avaliação àquele que foi adotado pela Administração, mormente por reputar existir uma situação de insuficiência probatória [cfr., entre outros, os Acs. deste Supremo de 24.01.2002 - Proc. n.º 048147, de 18.04.2002 (Pleno) Proc. n.º 033881, de 07.10.2004 - Proc. n.º 0148/03, de 07.06.2005 - Proc. n.º 0374/05, de 14.04.2010 - Proc. n.º 0803/09, de 28.06.2011 - Proc. n.º 0900/10, de 13.07.2016 - Proc. n.º 0516/14].

24. Temos, ainda, que a condenação em pena disciplinar deve assentar ou estribar-se em provas que permitam um juízo de certeza, ou seja, uma convicção segura, que esteja para além de toda a dúvida razoável, de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados [cfr., entre outros, Acs. deste Supremo de 07.10.2004 - Proc. n.º 0148/03, 28.04.2005 - Proc. n.º 0333/05, de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10, de 28.06.2011 - Proc. n.º 0900/10, de 15.03.2012 - Proc. n.º 0426/10, de 23.01.2013 (Pleno) - Proc. n.º 0772/10, de 14.01.2016 - Proc. n.º 01546/14, de 28.01.2016 - Proc. n.º 0404/14, de 13.07.2016 - Proc. n.º 0516/14].

25. É que no processo sancionador a prova da prática da infração que é exigida deve ser conclusiva e inequívoca no sentido de que o sancionado é o autor responsável, não podendo impor-se uma sanção disciplinar com base em simples indícios ou conjeturas subjetivas.

26. Na verdade, como afirmado no acórdão deste STA de 07.06.2005 [Proc. n.º 0374/05] a «“prova dos factos integrantes da infração disciplinar cujo ónus impende sobre a entidade administrativa que exerce o poder disciplinar, através do instrutor do processo, tem de atingir um grau de certeza que permita desferir um juízo de censura baseado em provas convincentes para um apreciador arguto e experiente, de modo a ficar garantida a segurança na aplicação do direito sancionatório”», segurança essa que não se encontra garantida se «a prova coligida no processo disciplinar não legitimar uma convicção segura da materialidade dos factos imputados ao arguido».

27. Note-se, todavia, que a condenação do arguido em processo disciplinar não exige que a certeza tenha de ser «absoluta, férrea ou apodítica da sua responsabilidade» [cfr., entre outros, os Acs. deste Supremo de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10, de 15.03.2012 - Proc. n.º 0426/10, de 07.01.2016 - Proc. n.º 0131/13], dado o preenchimento do grau de certeza exigido se bastar com existência de elementos probatórios coligidos no processo e que o «demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável».

28. Com efeito, a prova dos factos não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado «a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática» [cfr. o citado Ac. deste Supremo de 07.01.2016 - Proc. n.º 0131/13], uma «verdade histórico-prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida» [cfr. J. Figueiredo Dias, in: «Direito Processual Penal», I, 1981, pág. 194], bastando, por isso, que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.

29. É que «nos juízos de facto a emitir num processo disciplinar, é lícito à Administração, e até obrigatório, usar das presunções naturais que se mostrem adequadas», porquanto «é legítimo, e obrigatório, usar de presunções naturais na realização dos julgamentos de facto. Esse é, aliás, um exercício quotidiano nos tribunais, permitido pelo art. 351º do Código Civil; e de igual metodologia se serve a Administração nos juízos que emita sobre a prova produzida» [cfr. o citado Ac. deste Supremo de 21.10.2010 - Proc. n.º 0607/10].

30. Presentes os considerandos antecedentes e revertendo ao caso sub specie temos que as questões que no mesmo se mostram suscitadas não constituem novidade neste Supremo [cfr. as pronúncias já firmadas nos citados Acs. de 18.10.2018 - Proc. n.º 0144/17.0BCLSB, e de 20.12.2018 - Proc. n.º 08/18.0BCLSB].

31. Tal como afirmado nas pronúncias já emitidas o conhecimento em sede de recurso de revista mostra-se reconduzido a matéria de direito, porquanto o recurso de revista «só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual» e aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o «tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado», cientes de que o «erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» [cfr. arts. 12.º, n.º 4, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) - na redação que lhe foi introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, redação essa a que se reportarão todas as demais citações de normativos daquele Estatuto sem expressa referência em contrário -, e 150.º, n.ºs 2 a 4, do CPTA].

32. Assente este pressuposto temos que o juízo formulado pelo «TCA/S» quanto à matéria de facto apenas pode ser censurado na medida em que se traduza numa questão de direito, questão essa que, como vimos, efetivamente se mostra colocada face aos termos do recurso de revista sob apreciação dado que, mormente, está em causa uma alegada infração de vários comandos normativos [cfr., nomeadamente, os insertos nos arts. 13.º, al. f), 222.º, n.º 2, e 250.º, do RD/LPFP-2017, 349.º do CC, 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP] naquilo que foi, no contexto de processo disciplinar, o apelo ou recurso a presunções judiciais na fixação da factualidade tida por relevante e que foi pressuposto da imputação e responsabilização disciplinar.

33. Em apreciação da matéria objeto de discussão nos autos afirmou este Supremo nos acórdãos citados, em linha, como vimos, com o que constitui entendimento deste Tribunal, que aqui se secunda e reitera, que «no domínio do direito disciplinar, a que se aplicam subsidiariamente os princípios do direito penal, é lícito o uso das presunções judiciais».

34. E que aliada a tal afirmação importa ter, ainda, como «indubitável que, no domínio do direito disciplinar desportivo, vigora o princípio geral da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Liga, e por eles percecionado no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posto em causa” [art. 13.º, al. f), do RD]», sendo que «[e]sta presunção de veracidade, que se inscreve nos princípios fundamentais do procedimento disciplinar, confere, assim, um valor probatório reforçado aos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP relativamente aos factos deles constantes que estes tenham percecionado».

35. Ora, ao invés do que se sustenta no acórdão do «TCA/S» aqui objeto de impugnação, a decisão do «TAD» não incorreu em erro de julgamento ao haver mantido incólume o quadro factual que havia sido fixado como provado na decisão disciplinar punitiva.

36. O juízo na mesma firmado nessa sede louvou-se ou socorreu-se não apenas do princípio da presunção de veracidade dos factos nos termos que se mostram previstos na al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017, mas, também, de presunções naturais radicadas em circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência [cfr. art. 349.º do CC] que enuncia, nomeadamente, sob o ponto «iii) “Do alegado erro na apreciação da prova”», tal como o havia feito, aliás, a decisão disciplinar punitiva impugnada.

37. Esta não viu radicar, pois, o juízo punitivo numa qualquer presunção de culpa da «A……..…., SAD», antes se mostrando o mesmo juízo alicerçado, ao invés, naquilo que foi a prova lograda coligir e produzir no processo disciplinar e o uso de presunções, considerando e fazendo apelo, inclusive, daquilo que são decorrências do cumprimento das obrigações que impendem sobre os clubes no decurso e participação nas competições em que estão envolvidos [cfr., nomeadamente, os arts. 34.º a 36.º do RC/LPFP-2017, e arts. 06.º, 07.º 08.º, 09.º, 10.º e 11.º do RPV/RC/LPFP-2017] e em que a designada «bancada topo Sul» do Estádio do …….., indicada expressis verbis no relatório como local onde os ilícitos ocorreram, é consabidamente um local ocupado por adeptos, sócios, apoiantes ou simpatizantes afetos ao clube «A…….….»/«A……..….., SAD», revelada, nomeadamente, «através da ostentação de camisolas, bandeiras, cachecóis ou da entoação de determinados cânticos».

38. A aqui recorrida, «A……..…., SAD», verdadeiramente não nega ou põe efetivamente em causa a ocorrência dos factos registados no «relatório do delegado» da LPFP ao jogo, já que a impugnação, ou a discussão se centra, no fundo, que tenham sido adeptos seus os autores dos factos em causa nos presentes autos.

39. Ocorre, contudo, que pese embora a mesma teça diversas considerações sobre hipotéticas possibilidades no que respeita à autoria das sobreditas «ocorrências», a aqui recorrida, nem no processo disciplinar, nem na impugnação deduzida quanto à decisão disciplinar punitiva, não conseguiu infirmar, com plausibilidade, o que foi redigido no referido relatório, mediante a alegação de factos perfeitamente ao seu alcance e a produção de meios probatórios que, fazendo a contraprova [cfr. art. 346.º do CC], permitissem ilidir a mera presunção de veracidade de que o mesmo relatório goza [cfr. al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017], presunção esta que não corresponde a uma qualquer presunção legal, ou a uma regra de dispensa, liberação ou de inversão do ónus da prova [cfr. art. 344.º do CC], que seria, aliás, inadmissível no plano constitucional e legal no âmbito de matéria sancionatória.

40. O considerar-se que a aqui recorrida não conseguiu destruir os factos que lhe foram imputados mediante a alegação de factos e a apresentação de provas apenas significa que a prova coligida durante a instrução do processo não foi infirmada na subsequente fase de defesa de que a mesma dispôs, não sendo possível inferir de uma tal afirmação a conclusão de que era àquela que, enquanto arguida, competia fazer a prova a inexistência dos factos e da sua não culpa, não ocorrendo, por conseguinte, uma qualquer infração ao princípio de presunção de inocência do arguido [cfr., entre outros, o Ac. do STA de 10.03.1998 - Proc. n.º 040528], nem sequer a situação, no contexto apurado de efetiva existência de culpa da arguida, permite o operar do princípio do in dubio pro reo.

41. De referir ainda que do facto de nem as autoridades policiais, nem os delegados da «LPFP», ou o árbitro, terem identificado pessoalmente quem, em concreto, fez uso dos engenhos pirotécnicos ou proferiu as expressões/cânticos reportados, tal não invalida ou impossibilita a fixação da factualidade nos termos que se mostram realizados.

42. É que para o que constitui o objeto de incriminação e tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram [no decurso de um jogo de futebol e em que os adeptos e simpatizantes estavam numa bancada afeta a adeptos do «A……..…..», mostrando-se portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao respetivo clube, nomeadamente, as referidas bandeiras, cachecóis e camisolas] a circunstância de, no meio daquela imensa mole humana, não ter sido efetuada a identificação pessoal dum concreto sujeito ou dos concretos sujeitos, tem-se como de todo em todo desnecessária, já que a imputação não é feita aos concretos adeptos, mas ao clube de que os mesmos são apoiantes ou simpatizantes, adeptos esses que, refira-se, não estão sequer sujeitos ou abrangidos pelo âmbito do «RD/LPFP» [cfr., nomeadamente, seus arts. 03.º, 04.º, n.º 1, al. b), e 187.º].

43. Ressuma do exposto que o juízo posto em crise mostra-se, assim, em consonância com o entendimento e jurisprudência convocada, não padecendo, como tal, de qualquer erro de julgamento, nem das apontadas inconstitucionalidades.

44. Como afirmado por este Supremo nos seus acórdãos de 18.10.2018 e de 20.12.2018, supra citados, o estabelecimento e previsão de uma tal presunção de veracidade «não se vê que … seja inconstitucional, quando o Tribunal Constitucional, no Ac. n.º 391/2015, de 12/8 (…), considerou que, mesmo em matéria penal, são admissíveis presunções legais, desde que seja conferida ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que a presunção se sustente e desde que para tal baste a contraprova dos factos presumidos, não se exigindo a prova do contrário» e de que como o mesmo TC entendeu «para a situação idêntica da fé em juízo dos autos de notícia (…) cremos que a presunção de veracidade em causa - que incide sobre um puro facto e que pode ser ilidida mediante a criação, pelo arguido, de uma mera situação de incerteza - não acarreta qualquer presunção de culpabilidade suscetível de violar o princípio da presunção de inocência ou de colidir com as garantias de defesa do arguido constitucionalmente protegidas (art. 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP)», já que «o valor probatório dos relatórios dos jogos, além de só respeitarem, como vimos, aos factos que nele são descritos como percecionados pelos delegados e não aos demais elementos da infração, não prejudicando a valoração jurídico-disciplinar desses factos, não é definitiva, mas só prima facie ou de interim, podendo ser questionado pelo arguido e se, em face dessa contestação, houver uma “incerteza razoável” quanto à verdade dos factos deles constantes, impõe-se, para salvaguarda do princípio in dubio pro reo, a sua absolvição».

45. A decisão disciplinar punitiva não radicou, pois, numa qualquer presunção de culpa da «A......…., SAD», decorrente duma inversão do ónus probatório [cfr. art. 344.º do CC] estribado no art. 13.º, al. f) do RD/LPFP-2017, antes se mostrando alicerçada naquilo que, levando a consideração em matéria desportiva os princípios enformadores do processo disciplinar, foi a prova coligida no mesmo processo e o uso lícito e legítimo das aludidas presunções [cfr. art. 349.º do CC], tudo em observância e sem entorses aos princípios e comandos normativos [constitucionais e legais] convocados [cfr. arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP, 13.º al. f), 127.º, 187.º e 258.º do RD/LPFP-2017].

46. Não pode, pois, manter-se neste segmento o juízo firmado pelo «TCA/S» já que, contrário, àquele que se acaba de produzir”.

Em face do exposto, e não sendo necessárias ulteriores considerações, verifica-se que o acórdão recorrido incorreu no erro de direito que lhe é imputado pela ora recorrente, devendo ser revogado nesta parte.

Mas o ora recorrido A………, SAD, acrescenta outros argumentos em abono da sua posição, relacionados os mesmos com o não cometimento da infracção que lhe é imputada, designadamente porque não resultou provada a ocorrência de uma conduta culposa.
Também sobre idêntica questão se pronunciou o Acórdão de 21.02.19, Proc. n.º 33/18.0BCLSB, e, de novo, remetemos para o que aí foi dito, dado subscrevermos sem reservas o seu teor. Atentemos, então, no excerto que agora se transcreve:

47. Insurge-se, ainda, a recorrente contra o juízo de não preenchimento in casu do ilícito disciplinar previsto e punido nos arts. 127.º, 186.º, n.º 1, e 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 e 06.º, al. g) e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017, que veio a ser firmado no acórdão do «TCA/S», juízo esse fundado na inexistência de prova pela recorrente da efetiva culpa da aqui recorrida dada a ausência de demonstração da ocorrência de conduta ou comportamento de incumprimento de um qualquer dever que sobre a mesma impendesse, e que, como tal, mostravam-se violados aquele quadro normativo e, como sustenta a recorrida, os princípios da culpa [art. 02.º da CRP] [dada a inexistência de responsabilidade objetiva por facto de outrem e de não se haver avaliado a concreta conduta da mesma enquanto agente desportivo, tanto mais que não resulta em evidência qualquer ato ou omissão que possa ter contribuído para os acontecimentos] e da presunção da inocência [art. 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP], ocorrendo inconstitucionalidade.
Vejamos, convocando, previamente, o concreto quadro normativo que releva para a análise da questão, na certeza de que soçobra, nesta sede, a invocação do princípio da presunção da inocência dado que não só se mostra desfasada e deslocada neste contexto, mas, também, insubsistente à luz do atrás exposto, cientes de que, em momento algum do procedimento e/ou do processo, resultaram preteridos à aqui recorrida os seus direitos e/ou as garantias de defesa.

48. Constitui uma incumbência do Estado, em colaboração, nomeadamente, com as associações e coletividades desportivas [in casu, os clubes de futebol] a prevenção e combate à violência no desporto [cfr., no quadro internacional a «Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das Manifestações Desportivas e nomeadamente de Jogos de Futebol» vulgo «Convenção ETS n.º 120» (aprovada, por ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 11/87, de 10.03, e que cessou a sua vigência em 01.01.2019 - cfr. Aviso n.º 90/2018 publicado DR 26.07.2018) e a «Convenção sobre uma Abordagem Integrada da Segurança, Proteção e Serviços por Ocasião de Jogos de Futebol e Outras Manifestações Desportivas» (ETS n.º 218 - vigente na nossa ordem jurídica desde 01.08.2018 - cfr. Aviso n.º 91/2018 publicado DR 26.07.2018); no quadro normativo interno, nomeadamente, os arts. 79.º, n.º 2, da CRP, 03.º, n.º 2, 05.º da Lei n.º 5/2007, de 16.01 (Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto - doravante LBAFD), 01.º, 05.º, 07.º, 08.º, 09.º, 16.º a 18.º, 23.º a 25.º, da Lei n.º 39/2009, de 30.07 (diploma que veio estabelecer o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança - com as alterações introduzidas pela Lei n.º 52/2013, de 25.07)], pugnando-se para que a atividade desportiva seja «desenvolvida em observância dos princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva e da formação integral de todos os participantes» [cfr. o art. 03.º, n.º 1, da LBAFD].

49. Em decorrência do que neste domínio constituem as obrigações e deveres legais enunciados no referido quadro normativo, que impendem, também, sobre os clubes e as sociedades desportivas, vieram, entretanto, a ser aprovados e publicitados pelas entidades responsáveis e organizadores das competições desportivas diversos regulamentos internos em matéria não apenas da organização daquelas competições, mas, também, de prevenção e punição das manifestações de violência, racismo, xenofobia e intolerância nos espetáculos desportivos, e, bem assim, de disciplina, nomeadamente, dos clubes de futebol e sociedades desportivas e dos agentes desportivos [cfr., no que aqui releva, o RD/LPFP-2017 - seus arts. 04.º, n.º 1, als. a) e b) 19.º, 66.º, 80.º, 94.º a 96.º, 105.º, 113.º, 131.º, 132.º, 145.º, 151.º a 154.º, 157.º a 159.º, 173.º, 178.º a 187.º - e o RC/LPFP-2017 - seus arts. 03.º, als. a) e d), 34.º, 35.º, 36.º e Anexo VI ao mesmo Regulamento].

50. Assim, no contexto do futebol, extrai-se do art. 06.º do RD/LPFP-2017 que o regime disciplinar desportivo é autónomo e independente da «responsabilidade civil ou penal, assim como do regime emergente das relações laborais ou estatuto profissional, os quais serão regidos pelas respetivas normas em vigor» [n.º 1], bem como da «responsabilidade disciplinar de natureza associativa decorrente da qualidade de associado da Liga Portuguesa de Futebol Profissional» [n.º 2], sendo que a «aplicação de sanções criminais, contraordenacionais, administrativas, cíveis ou associativas não constitui impedimento, atento o seu distinto fundamento, à investigação e punição das infrações disciplinares de natureza desportiva» [n.º 3], prevendo-se, no que releva, quanto ao âmbito subjetivo de aplicação das normas disciplinares que os «clubes são responsáveis pelas infrações cometidas nas épocas desportivas em que participarem nas competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional e no âmbito dessas competições» [cfr. art. 07.º, n.º 2].

51. O conceito de «infração disciplinar» mostra-se definido no n.º 1 do art. 17.º do referido RD ali se preceituando que se considera «infração disciplinar o facto voluntário, por ação ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável», elencando-se nos seus arts. 29.º e 30.º o leque de sanções disciplinares [principais e acessórias] e quais aquelas que são aplicáveis aos clubes.

52. Resulta, por sua vez, do capítulo IV do RD/LPFP-2017 o elenco de infrações disciplinares, prevendo-se na sua secção I as «infrações específicas dos clubes», as quais podem ser «muito graves» [cfr. subsecção I, arts. 62.º a 83.º], «graves» [cfr. subsecção II, arts. 84.º a 118.º] e «leves» [cfr. subsecção III, arts. 119.º a 127.º], seguindo-se depois as infrações de dirigentes, de jogadores, de delegados dos clubes e dos treinadores, e na secção VI o regime das «infrações dos espectadores», resultando enunciado no art. 172.º, como princípio geral, o de que os «clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial» [n.º 1] e de que «[s]em prejuízo do acima estabelecido, no que concerne única e exclusivamente ao autocarro oficial da equipa visitante, o clube visitado será responsabilizado pelos danos causados em consequência dos atos dos seus sócios e simpatizantes praticados nas vias públicas de acesso ao complexo desportivo» [n.º 2] [sublinhado nosso].

53. Também as «infrações dos espectadores» se mostram qualificadas como podendo ser «muito graves» [cfr. subsecção II, arts. 173.º a 178.º], «graves» [cfr. subsecção III, arts. 179.º a 184.º] e «leves» [cfr. subsecção IV, arts. 185.º a 187.º], estipulando-se, no que releva para o litígio, no seu art. 187.º, respeitante a «comportamento incorreto do público», que «[f]ora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos: a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC; b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o máximo de 75 UC» [n.º 1].

54. Decorre, por outro lado, do art. 34.º do RC/LPFP-2017, relativo à segurança e utilização dos espaços de acesso público, que os «clubes estão obrigados a elaborar um regulamento de segurança e utilização dos espaços de acesso ao público relativo ao estádio por cada um utilizado na condição de visitado e cuja execução deve ser concertada com as forças de segurança, a ANPC e os serviços de emergência médica e a Liga» [n.º 1], e que tal regulamento deverá conter, designadamente, medidas relativas à «a) separação física dos adeptos, reservando-lhes zonas distintas, nas competições desportivas consideradas de risco elevado; … d) instalação ou montagem de anéis de segurança e adoção obrigatória de sistemas de controlo de acesso, de modo a impedir a introdução de objetos ou substâncias proibidas ou suscetíveis de possibilitar ou gerar atos de violência, nos termos previstos na lei» [n.º 2].

55. Resulta do art. 35.º do mesmo RC que «[e]m matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes: a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto; (…) f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo; (…) k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho; l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; (…) o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos» [n.º 1], e que «[p]ara efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da Lei n.º 39/2009 (…) e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objetos, substâncias e materiais suscetíveis de possibilitar atos de violência, designadamente: (…) f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis» [n.º 2], sendo que «[p]ara além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objetos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objetos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução (…) material produtor de fogo-de-artifício ou objetos similares, e quaisquer outros suscetíveis de possibilitar a prática de atos de violência» [n.º 6] [sublinhados nossos].
56. E quanto aos regulamentos de prevenção da violência [cfr. art. 36.º daquele RC] a matéria surge regulada nos referidos RD/LPFP e no anexo VI ao RC/LPFP [o RPV/RC/LPFP - adotado ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 05.º da Lei n.º 39/2009 (cfr. art. 02.º do mesmo RPV - «norma habilitante»)], extraindo-se do seu art. 04.º que «[c]ompete à Liga e aos seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar», constituindo deveres do «promotor do espetáculo desportivo» [no caso os «clubes» - cfr. art. 05.º, al. h), do referido RPV], no que aqui ora releva, os de «(…) b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança; c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados; (…) l) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009 (…); m) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos; p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei; (…) t) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afetos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos; u) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis» [cfr. art. 06.º do mesmo Regulamento].

57. Constituem, por último, condições de acesso dos espetadores ao recinto desportivo definidas no art. 09.º do referido Regulamento, nomeadamente, o: «f) não entoar cânticos racistas ou xenófobos ou que incitem à violência; (…) l) consentir na revista pessoal e de bens, de prevenção e segurança, com o objetivo de detetar e/ou impedir a entrada ou existência de objetos ou substâncias proibidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência; m) não transportar ou trazer consigo objetos, materiais ou substâncias suscetíveis de constituir uma ameaça à segurança, perturbar o processo do jogo, impedir ou dificultar a visibilidade dos outros espetadores, causar danos a pessoas ou bens e/ou gerar ou possibilitar atos de violência, nomeadamente: (…) vi. substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos; vii. latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis», sendo que o acesso e permanência dos grupos organizados de adeptos [cfr. art. 11.º] se mostra disciplinado pelo estabelecido, nomeadamente, no art. 09.º, sendo sempre obrigatória a revista pessoal aos mesmos e seus bens.

58. Encerrando-se aqui o elencar do quadro normativo tido por pertinente para a análise do litígio temos que a previsão do ilícito desportivo disciplinar em questão, no caso o inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017, mostra-se clara e perfeitamente integrada naquilo que, por um lado, são os deveres legais e regulamentares atrás aludidos e que nesta matéria impendem, nomeadamente, sobre os clubes e sociedades desportivas, e, por outro lado, no que, mais vastamente, constituem os objetivos e os fins da política de combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança e desportivismo, prevenindo a eclosão e reprimindo a existência ou a manifestação de tais fenómenos.

59. Através da previsão do referido ilícito desportivo disciplinar visa-se a prossecução e realização daqueles objetivos e fins, prevenindo e reprimindo os comportamentos e as condutas que nele se mostram tipificados e que são atentatórios e desconformes com aqueles objetivos e fins, fazendo responder clubes e sociedades desportivas por tais condutas e comportamentos incorretos, tidos pelo público aos mesmos afeto ou simpatizante, enquanto reveladores da inobservância por estes, por ação ou por omissão, do que constituem os seus deveres legais e regulamentares gerais e especiais constantes dos comandos normativos atrás convocados.

60. Na formulação do que constitui o tipo de ilícito disciplinar inserto no art. 187.º do RD/LPFP-2017 e do que, em decorrência, se exige para o seu preenchimento em concreto, estão subjacentes, tão-só, as condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube/sociedade desportiva e pelos quais os mesmos respondem, porquanto decorrentes ou fruto do que constitui o incumprimento pelos mesmos, por ação ou omissão, do dever in vigilando que têm sobre as suas claques e adeptos, nomeadamente e no que releva para a discussão objeto dos autos sub specie, de que houve alguma falha no dever de revista dos adeptos, no dever de revista do estádio, no dever de controlar os adeptos dentro do estádio, no dever de demover os adeptos de praticarem ou desenvolverem tal tipo de comportamentos e condutas.

61. Ora no caso vertente inexiste, por não aportado aos autos, um qualquer elemento densificador e revelador do cumprimento por parte da demandante dos deveres a que está subordinada no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos seus adeptos e espectadores, bem sabendo que estava obrigada a cuidar dos mesmos e que eram os seus adeptos que ocupavam a denominada «bancada sul», onde se verificaram as ocorrências registadas no Relatório.

62. Sobre os clubes de futebol e as respetivas sociedades desportivas, como é o caso da demandante aqui recorrida, recaem especiais deveres na assunção, tomada e implementação de efetivas medidas não apenas dissuasoras e preventivas, mas, também, repressoras, dos fenómenos de violência associada ao desporto e de falta de desportivismo, de molde a criar as condições indispensáveis para que a ordem e a segurança nos estádios de futebol português sejam uma realidade.

63. Neste contexto, ao invés do sustentado pela demandante na sua impugnação e que veio a ter acolhimento no acórdão recorrido, não estamos em face de uma qualquer situação de responsabilidade disciplinar objetiva violadora dos princípios e comandos constitucionais.

64. Com efeito, mostra-se ser in casu subjetiva a responsabilidade desportiva na vertente disciplinar da demandante aqui recorrida, já que estribada naquilo que foi uma violação dos deveres legais e regulamentares que sobre a mesma impendiam neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.

65. É que se no domínio da prevenção da violência associada ao fenómeno desportivo o quadro normativo impõe deveres a um leque alargado de destinatários, nomeadamente, aos clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e também para os violar, pelo que apurando-se a violação de deveres legalmente estabelecidos os destinatários dos mesmos serão responsáveis por essa violação.

66. Socorrendo-nos e transpondo para o caso vertente a jurisprudência do TC expendida no acórdão n.º 730/95 [consultável in: «www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/» e que foi firmada no quadro da apreciação da conformidade constitucional da sanção de interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes prevista nos arts. 03.º a 06.º do DL n.º 270/89, de 18.08 (diploma no qual se continham medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto) e 106.º do Regulamento Disciplinar da FPF], temos que os ilícitos disciplinares ou disciplinares desportivos imputados e pelos quais a demandante aqui recorrida foi sancionada resultam de «condutas ilícitas e culposas das respetivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) - condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que eles não cumpriram de forma capaz», «[d]everes que consubstanciam verdadeiros e novos deveres in vigilando e informando», presente que cabe a cada clube desportivo o «dever de colaborar com a Administração na manutenção da segurança nos recintos desportivos, de prevenir a violência no desporto, tomando as medidas adequadas», concluindo-se no sentido de que «[n]ão é, pois, (…) uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres».

67. É, por conseguinte, neste ambiente de proteção, salvaguarda e prevenção da ética desportiva, bem como do combate a manifestações de violência associada ao desporto, que incidem ou recaem sobre vários entes e entidades envolvidos, designadamente sobre os clubes de futebol e respetivas sociedades desportivas, um conjunto de novos deveres in vigilando e in formando e em que a inobservância destes deveres assenta não necessariamente numa valoração social, moral ou cultural da conduta do infrator, mas antes no incumprimento de uma imposição legal, sancionando-se aqueles por via da contribuição omissiva, causal ou co causal que tenha conduzido a um comportamento ou conduta dos seus adeptos.

68. Na verdade, não estamos in casu, pois, perante uma responsabilidade objetiva já que o regime previsto nos arts. 17.º, 19.º, 20.º, 127.º, 187.º, n.º 1, als. a) e b), do RD/LPFP-2017 em articulação, nomeadamente, com os arts. 06.º, al. g), e 09.º, n.º 1, al. m), do RPV/RC/LPFP-2017 e com o que resulta do demais quadro normativo atrás convocado, observa o princípio da culpa, tanto mais que em sua decorrência apenas se sancionam os clubes de futebol ou as suas sociedades desportivas pelos comportamentos incorretos do seu público havidos em violação por aqueles dos deveres que sobre os mesmos impendiam.

69. Daí que, no contexto, o princípio constitucional da culpa, enquanto servindo, igualmente, de elemento conformador e basilar ao Estado de direito democrático, e tendo como pressuposto o de que qualquer sanção configura a reação à violação culposa de um dever de conduta, considerado socialmente relevante e que foi prévia e legalmente imposto ao agente, não se mostra minimamente infringido, tanto mais que será no quadro do processo disciplinar a instaurar [cfr. arts. 212.º e segs., 225.º e segs., do RD/LPFP-2017] que se terão de averiguar e apurar todos os elementos da infração disciplinar, permitindo, como se refere no citado acórdão do TC, que «por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)».

70. Frise-se que é na e da inobservância dos deveres de assunção da responsabilidade pela segurança do que se passe no recinto desportivo e do desenvolvimento de efetivas ações de prevenção socioeducativa que radica ou deriva a responsabilidade disciplinar desportiva em questão, dado ter sido essa conduta que permitiu ou facilitou a prática pelos seus adeptos dos atos ou comportamentos proibidos ou incorretos.

71. E que cabe aos clubes de futebol/sociedades desportivas a demonstração da realização por parte dos mesmos junto dos seus adeptos das ações e dos concretos atos destinados à observância daqueles deveres e, assim, prevenirem e eliminarem a violência, e isso sejam esses atos e ações desenvolvidos em momento anterior ao evento, sejam, especialmente, imediatamente antes ou durante a sua realização.

72. Para o efeito, aportando prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas, conduza a que estas ocorrências e condutas sejam tendencialmente banidas dos espetáculos desportivos, assumindo ou constituindo realidades de carácter excecional.

73. A previsão no quadro disciplinar do ilícito desportivo em crise mostra-se, assim, devidamente legitimada já que encontra, ou vê radicar, repousar os seus fundamentos não apenas naquilo que é a necessária prevenção, mas, também, na culpa, sancionando-se o que constitui um negligente cumprimento dos deveres supra enunciados, sem que, de harmonia com o exposto, um tal entendimento atente ou enferme de violação dos princípios da culpa e do Estado de direito, ou constitua um entorse aos direitos de defesa e a um processo equitativo, dado que assegurados e garantidos em consonância e adequação com o entendimento e interpretação fixados.

74. E também não vemos que tal entendimento e interpretação possam envolver uma pretensa violação dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, pois, não estamos em face da assunção duma presunção de culpa da arguida ou de regra que dispense, libere ou inverta o ónus probatório que colida com o primeiro princípio, nem, como atrás referido, no caso em presença somos confrontados com uma situação de inexistência de prova relevante de que foi cometido ilícito e de quem é o sujeito responsável à luz da prova produzida para, mercê da existência de legítima dúvida, fazer apelo ao segundo princípio.

75. Assiste, por conseguinte, razão à recorrente, não podendo, assim, manter-se o juízo firmado neste segmento no acórdão recorrido”.


De novo sem necessidade de considerações complementares, e pelos motivos expostos no excerto acabado de transcrever, conclui-se que o acórdão do TAD não merece qualquer censura também quanto à questão acabada de analisar.


Por último, e quanto à alegada inconstitucionalidade da “interpretação dos artigos 222.º-2 e 250.º-1 do RDLPFP de 2016 segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação” (questão que o recorrido coloca como mera hipótese de raciocínio caso proceda a tese da recorrente, e que retoma na sua resposta ao parecer emitido pelo MP – cfr. conclusão xxxiv), o trecho que agora se transcreveu também se debruça sobre ela.
Fundamentalmente, o recorrido insurge-se contra a alegada ‘expansão’ da presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios do jogo à prova da actuação culposa que lhe é imputada. Ou seja, em virtude desta ‘expansão’, ter-se-ia considerado que caberia ao recorrido, em situação de clara inversão do ónus da prova inconstitucional (e em violação, entre outros, do princípio da presunção da inocência), provar que não tinham sido adeptos seus a lançar os engenhos pirotécnicos e a entoar cânticos ofensivos e que tinha adoptado medidas de prevenção da sua ocorrência, isto é, que tinha cumprido os deveres legais e regulamentares a que está adstrito. Entende o recorrido que, a sufragar-se esta tese (que entende ser defendida pelo MP no seu parecer), estar-se-ia a impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem.
A este propósito cumpre reter algumas ideias-chave contidas no mencionado trecho do Acórdão de 21.02.19, Proc. n.º 33/18.0BCLSB, que teve de enfrentar questões idênticas: “No processo disciplinar, à semelhança do que sucede no processo penal, o ónus da prova dos factos constitutivos da infração cabe ao titular do poder disciplinar”; “Note-se, todavia, que a condenação do arguido em processo disciplinar não exige que a certeza tenha de ser «absoluta, férrea ou apodítica da sua responsabilidade» […], dado o preenchimento do grau de certeza exigido se bastar com existência de elementos probatórios coligidos no processo e que o «demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável»“; “É que «nos juízos de facto a emitir num processo disciplinar, é lícito à Administração, e até obrigatório, usar das presunções naturais que se mostrem adequadas», porquanto «é legítimo, e obrigatório, usar de presunções naturais na realização dos julgamentos de facto. Esse é, aliás, um exercício quotidiano nos tribunais, permitido pelo art. 351º do Código Civil; e de igual metodologia se serve a Administração nos juízos que emita sobre a prova produzida» […]”; “O juízo na mesma firmado nessa sede louvou-se ou socorreu-se não apenas do princípio da presunção de veracidade dos factos nos termos que se mostram previstos na al. f) do art. 13.º do RD/LPFP-2017, mas, também, de presunções naturais radicadas em circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência [cfr. art. 349.º do CC] que enuncia, nomeadamente, sob o ponto «iii) “Do alegado erro na apreciação da prova”», tal como o havia feito, aliás, a decisão disciplinar punitiva impugnada”; “Esta não viu radicar, pois, o seu juízo punitivo numa qualquer presunção de culpa da «A………, SAD», antes se mostrando o mesmo juízo alicerçado, ao invés, naquilo que foi a prova lograda coligir e produzir no processo disciplinar e o uso de presunções, considerando e fazendo apelo, inclusive, daquilo que são decorrências do cumprimento das obrigações que impendem sobre os clubes no decurso e participação nas competições em que estão envolvidos [cfr., nomeadamente, os arts. 34.º a 36.º do RC/LPFP-2017, e arts. 06.º, 07.º 08.º, 09.º, 10.º e 11.º do RPV/RC/LPFP-2017] e em que a designada «bancada topo Sul» do Estádio ……….., indicada expressis verbis no relatório como local onde os ilícitos ocorreram, é consabidamente um local ocupado por adeptos, sócios, apoiantes ou simpatizantes afetos ao clube «A…….»/«A…….., SAD», revelada, nomeadamente, «através da ostentação de camisolas, bandeiras, cachecóis ou da entoação de determinados cânticos»“; “O considerar-se que a aqui recorrida não conseguiu destruir os factos que lhe foram imputados mediante a alegação de factos e a apresentação de provas apenas significa que a prova coligida durante a instrução do processo não foi infirmada na subsequente fase de defesa de que a mesma dispôs, não sendo possível inferir de uma tal afirmação a conclusão de que era àquela que, enquanto arguida, competia fazer a prova a inexistência dos factos e da sua não culpa, não ocorrendo, por conseguinte, uma qualquer infração ao princípio de presunção de inocência do arguido […], nem sequer a situação, no contexto apurado de efetiva existência de culpa da arguida, permite o operar do princípio do in dubio pro reo”; “De referir ainda que do facto de nem as autoridades policiais, nem os delegados da «LPFP», ou o árbitro, terem identificado pessoalmente quem, em concreto, fez uso dos engenhos pirotécnicos ou proferiu as expressões/cânticos reportados, tal não invalida ou impossibilita a fixação da factualidade nos termos que se mostram realizados”; “É que para o que constitui o objeto de incriminação e tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram [no decurso de um jogo de futebol e em que os adeptos e simpatizantes estavam numa bancada afeta a adeptos do «A………», mostrando-se portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao respetivo clube, nomeadamente, as referidas bandeiras, cachecóis e camisolas] a circunstância de, no meio daquela imensa mole humana, não ter sido efetuada a identificação pessoal dum concreto sujeito ou dos concretos sujeitos, tem-se como de todo em todo desnecessária, já que a imputação não é feita aos concretos adeptos, mas ao clube de que os mesmos são apoiantes ou simpatizantes, adeptos esses que, refira-se, não estão sequer sujeitos ou abrangidos pelo âmbito do «RD/LPFP» [cfr., nomeadamente, seus arts. 03.º, 04.º, n.º 1, al. b), e 187.º]”; “A decisão disciplinar punitiva não radicou, pois, numa qualquer presunção de culpa da «A…….., SAD», decorrente duma inversão do ónus probatório [cfr. art. 344.º do CC] estribado no art. 13.º, al. f) do RD/LPFP-2017, antes se mostrando alicerçada naquilo que, levando a consideração em matéria desportiva os princípios enformadores do processo disciplinar, foi a prova coligida no mesmo processo e o uso lícito e legítimo das aludidas presunções [cfr. art. 349.º do CC], tudo em observância e sem entorses aos princípios e comandos normativos [constitucionais e legais] convocados [cfr. arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP, 13.º al. f), 127.º, 187.º e 258.º do RD/LPFP-2017]”.
Em suma, a punição do ora recorrido decorreu dos factos relatados nos relatórios do jogo – sobre os quais recai uma presunção de veracidade e que não foram contrariados pelo recorrido – conjugados com raciocínios baseados em presunções naturais legítimas. Quanto ao excerto do acórdão do TC utilizado pelo recorrido para sustentar a inconstitucionalidade de uma responsabilidade objectiva por facto de outrem no domínio do direito disciplinar desportivo, o mesmo acórdão, nesse excerto, admite excepções à aplicação do princípio jurídico-constitucional da culpa neste domínio. Porventura porque, dada a dificuldade da prova em casos como o dos autos, exigir-se a culpa como pressuposto de aplicação da punição poderia redundar no esvaziamento total do regime legal e regulamentar com o qual se pretende garantir um ambiente são e respeitador de valores constitucionais básicos como, entre outros, a vida, a integridade física e psicológica, o direito ao bom nome.

Na sua resposta ao parecer do MP, o ora recorrido vem suscitar a inconstitucionalidade da norma que resulta “da conjugação do disposto no art. 2.º, n.os 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.ª linha), da Portaria n.º 301/2015, com o previsto nos artigos 76.º/1/2/3 e 77.º/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º-1 e 268.º-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.º da CRP). Quid iuris?
A resposta ao parecer emitido pelo MP não pode ser utilizada para ampliar o objecto do recurso ou para suscitar questões novas, pois que o objecto do recurso se estabilizou nas conclusões oportunamente apresentadas. Assim sendo, não se poderá conhecer das pretensões aí deduzidas que extravasem o objecto do recurso, como manifestamente sucede no que concerne à resposta do ora recorrido ao parecer do MP. Resta salientar que, no seu Parecer, o MP nem sequer menciona de forma explícita a questão das custas no TAD, não se podendo falar em decisão surpresa, ainda para mais tendo em consideração que o caso dos autos é mais um a juntar àqueles que também envolveram o ora recorrido em situações semelhantes e em que a questão das custas foi colocada.

III – Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido, mantendo-se o acórdão do TAD de 18.07.18.

Custas a cargo do aqui recorrido neste STA e no TCAS.

Lisboa, 21 de Março de 2019. - Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – Jorge Artur Madeira dos Santos – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.