Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:035/12.0BECBR 0812/18
Data do Acordão:10/08/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
PROCESSO DISCIPLINAR
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DISCRICIONARIEDADE
Sumário:É de admitir a revista onde se questiona a recusa das instâncias em sindicarem a apreciação administrativa das provas produzidas num processo disciplinar – recusa fundada no argumento de que a Administração goza, naquela sua conduta, de uma discricionariedade só controlável no caso de haver «erro grosseiro e manifesto», que o autor não invocara – já que a tese das instâncias é controversa e respeita a uma «quaestio juris» extremamente relevante e facilmente repetível.
Nº Convencional:JSTA000P23710
Nº do Documento:SA120181008035/12
Data de Entrada:09/04/2018
Recorrente:A...
Recorrido 1:CM DA FIGUEIRA DA FOZ
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em apreciação preliminar, no Supremo Tribunal Administrativo:
A………….., identificado nos autos, interpôs a presente revista do aresto do TCA Norte confirmativo da sentença do TAF de Coimbra que julgou improcedente a acção movida pelo ora recorrente contra o Município da Figueira da Foz e onde ele impugnou a deliberação camarária que lhe aplicara a pena disciplinar de suspensão por trezentos dias.

O recorrente pugna pela admissão da revista por ela tratar de matéria relevante e necessitada de uma melhor aplicação do direito.
Não houve contra-alegação.

Cumpre decidir.
Em princípio, as decisões proferidas em 2.ª instância pelos TCA’s não são susceptíveis de recurso para o STA. Mas, excepcionalmente, tais decisões podem ser objecto de recurso de revista em duas hipóteses: quando estiver em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, assuma uma importância fundamental; ou quando a admissão da revista for claramente necessária para uma melhor aplicação do direito («vide» o art. 150º, n.º 1, do CPTA).
Mediante a acção dos autos, o autor e aqui recorrente impugnou o acto que, na sequência de processo disciplinar, lhe aplicou a pena de suspensão por trezentos dias.
Um dos vícios imputados ao acto «in initio litis» – e o único que presentemente sobrevive e se discute – consistia num erro nos pressupostos de facto; pois o autor disse que as provas produzidas no procedimento não revelavam a ocorrência dos factos constitutivos das infracções.
O TAF recusou-se a conhecer do mencionado vício porque, em sede de apreciação da prova, a Administração gozaria de uma «discricionariedade» cujo exercício só seria judicialmente sindicável havendo um «erro grosseiro». E o TCA reiterou tal pronúncia, afirmando que os tribunais não podem controlar o exercício administrativo da livre apreciação das provas, salvo se aí se insinuar algum erro «grosseiro e manifesto» – cuja existência, com estes predicados, o autor não alegara.
A revista critica essa recusa das instâncias em enfrentarem o dito vício. E, embora o recorrente pareça admitir que a sindicância judicial se restringe, neste género de casos, a erros patentes e óbvios, não pode duvidar-se que os poderes cognitivos do tribunal de revista podem e devem abranger a tese, enunciada pelas instâncias, que assimilou a livre apreciação das provas a um exercício discricionário.
Ora, e apesar de vir apoiada nalguma jurisprudência, essa tese é nitidamente controversa. Em geral, são livremente apreciadas as provas cuja força probatória não esteja legalmente definida; pois, nestas últimas, o resultado da produção de prova é sempre vinculado para o julgador, que não dispõe da liberdade de apreciação ou valoração vigente nas primeiras (cf., v.g., os arts. 361º, 366º, 371º, n.º 1, «in fine», 391º e 396º do Código Civil). Ou seja: as provas servem para a captação da verdade. Nos meios de prova dotados de força probatória plena, o legislador, embora «in abstracto», define a verdade por antecipação; nos meios probatórios destituídos dessa força, tal definição incumbe ao julgador da prova.
Portanto, a «liberdade» na apreciação das provas opõe-se naturalmente a «vinculação». Mas essa «relatio oppositorum» não parece forçar a conclusão de que tal liberdade, se exercida por algum órgão da Administração, constitua uma manifestação da discricionariedade administrativa. «Grosso modo», esta figura envolve sempre uma liberdade na escolha de meios «ad finem». Mas a liberdade na apreciação das provas parece ser de outro tipo, pois consiste na detecção, pura e simples, da verdade naturalística.
E, se a liberdade (na apreciação das provas) e a discricionariedade (administrativa) não forem o mesmo, esvair-se-á a base donde fluiu a solução das instâncias. Com efeito, seria então estranho que o tribunal limitasse os seus poderes cognitivos a erros de apreciação imediatos e notórios, abstendo-se de sindicar erros efectivos, mas desmerecedores desses predicados.
E, em prol dessa estranheza, podem já indicar-se, nesta «summaria cognitio», duas razões: os tribunais de 2.ª instância conhecem quaisquer erros de apreciação da prova cometidos pelos tribunais inferiores (art. 662º do CPC), não estando aí limitados aos que sejam «grosseiros e manifestos»; ora, surpreenderia que a Administração, ao julgar «de factis», dispusesse – em geral – de prerrogativas de avaliação recusadas aos tribunais da 1.ª instância. Por outro lado, nada parece impedir que os tribunais sindiquem a livre apreciação administrativa das provas se todos os critérios usados pela Administração lhes forem acessíveis – pois, em tais casos, não existe qualquer diferença de natureza nas actividades primária e secundária (ou de controle).
Tudo isto sugere que as instâncias adoptaram, sobre o referido assunto, uma tese questionável – e, ademais, fortemente restritiva dos direitos de defesa dos cidadãos perante a Administração. Ora, a «quaestio juris» aí implicada, porque basilar no funcionamento da justiça administrativa e susceptível de continuamente ressurgir numa multidão de casos, merece um esclarecimento definitivo e cabal por parte do Supremo.

Nestes termos, acordam em admitir a revista.
Sem custas.

Porto, 8 de Outubro de 2018. – Madeira dos Santos (relator) – Costa Reis – São Pedro.