Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01988/07.6BEPRT
Data do Acordão:09/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANÍBAL FERRAZ
Descritores:IRS
VANTAGEM PATRIMONIAL
Sumário:I - Tanto na doutrina fiscalista, como na jurisprudência, a conclusão mais sufragada e difundida, aponta no sentido de que a interpretação da lei, realizada pela administração tributária e aduaneira (AT), através de circulares…, não tem força de lei, nem possui o caráter de vinculação próprio das normas legais, bem como, não constitui interpretação autêntica e, por isso, a sua legalidade pode ser, sempre, questionada, destacadamente, pela via contenciosa.
II - Sem prejuízo da AT dever obediência ao entendimento imposto pelo SEAF, desse ponto de vista se legitimando (internamente) a emissão da liquidação impugnada, não podemos atribuir-lhe a chancela de que estava em conformidade com a lei, à data, ano de 2002, vigente, porquanto o critério utilizado para determinar o, legalmente relevante, “valor de mercado considerado pelas associações do sector automóvel” (art. 24.º n.º 6 do CIRS) não satisfaz a ideia, do legislador, de ser alcançado e operado um valor fixado, com unanimidade ou muito amplo consenso, pelas entidades representativas, em especial as com maior número de associados, do setor automóvel, acrescido da circunstância de, facilmente, poder ser disponibilizado para conhecimento da generalidade ou maioria dos contribuintes/sujeitos passivos de IRS.
Nº Convencional:JSTA000P26357
Nº do Documento:SA22020091601988/07
Data de Entrada:11/30/2018
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acórdão proferido no Supremo Tribunal Administrativo (STA), com sede em Lisboa;
# I.

O/A representante da Fazenda Pública (rFP), recorre da sentença proferida, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, em 12 de julho de 2018, que julgou procedente impugnação judicial, apresentada, por A………., com os demais sinais dos autos, contra decisão de indeferimento de recurso hierárquico e que visou ato, de liquidação adicional de IRS, referente ao ano de 2002.

A recorrente (rte) formalizou alegação, terminada com o seguinte quadro conclusivo: «

A - Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a impugnação judicial contra a decisão de indeferimento do Recurso Hierárquico apresentado contra a liquidação adicional de IRS do ano de 2002, que determinou o montante a pagar de € 2.197,76.

B - A douta sentença proferida pelo Tribunal a quo concluiu que “a liquidação impugnada é ilegal, não podendo manter-se na ordem jurídica, pelo que deve a mesma ser anulada, procedendo, assim, a impugnação.”

C - A liquidação impugnada teve origem nas conclusões de procedimento de inspeção Tributária, ou seja, nas correções efetuadas em sede de IRS, do exercício de 2002, originadas pela omissão de rendimentos na declaração Modelo 3 de IRS, no montante de 8.754,81 resultante da diferença entre o valor de mercado e o valor pelo qual a viatura foi adquirida, nos termos do n° 6 do artigo 24° do CIRS.

D - A Lei 30-G/2000, de 29 de dezembro, aditou à alínea b) do n° 3 do CIRS vários números, por forma a que ficasse bem expresso na lei a sujeição a tributação de algumas vantagens acessórias concedidas pela entidade patronal devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta, nomeadamente o n° 10 (renumerado pela Lei n° 109-B/2001, de 27 de dezembro)

E - De acordo com o disposto no n° 10, alínea b) do n° 3 do artigo 2° do CIRS consideram-se rendimentos do trabalho dependente as remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídas na remuneração principal que sejam auferidas devido à prestação de trabalho (...), designadamente (...) a aquisição pelo trabalhador ou membro social, por preço inferior ao valor de mercado, de qualquer viatura que tenha encargos para a entidade patronal”

F - Como consequência da implementação desta medida, foram introduzidas regras específicas no que diz respeito à quantificação do rendimento sujeito a tributação, que tem a sua expressão no n° 6 do artigo 24° do CIRS.

G - Na medida em que este critério suscitou algumas dúvidas junto dos sujeitos passivos, foi através do despacho n° 1478/2002-XV, de 2002.11.09, proferido pelo Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais sancionado o seguinte atendimento:

“(...) exclusivamente para os exercícios de 2001 e 2002, deverá ser adoptado o guia EURO TAX, o qual teria efeitos de referência e de fundamento dos desvios de valor entre o preço declarado e o preço de cotação de venda, por forma a determinar correctamente a vantagem acessória tributável como rendimento de categoria A”

H - O valor de mercado é a quantia pela qual um bem (ou serviço) poderia ser trocado, entre um comprador interessado e um vendedor nas mesmas condições, em circunstâncias normais de funcionamento.

I - São estas as condições que as associações do setor automóvel avaliam, usando o seu profundo conhecimento de mercado, para determinar um valor de mercado para os automóveis, tendo em conta todas as características essenciais do veículo.

J - É com base nas informações provindas destas associações que a maioria das entidades particulares ou coletivas, dos mais variados ramos da atividade económica, inclusive automóvel, realizam as suas atividades de compra e venda de viaturas.

K - O valor de mercado encontrado por tais associações é uma aproximação ao valor real do bem e daí o legislador falar em valor médio de mercado, de forma a incorporar as opiniões dos inúmeros especialistas que prestam o serviço de fornecer referências quanto ao valor das viaturas no mercado. Embora possam existir valores diferenciados entre os vários avaliadores, os valores fornecidos por estes são muito aproximados e nunca com uma variação superior a 100%.

L - No caso dos presentes autos, foi efetuada a utilização do valor de mercado definido pela “EUROTAX GLASS”, por ser esta uma revista elaborada com o apoio do ACP (associação nacionalmente reconhecida com especialidade no setor automóvel) e que serve de base a todo o setor comercial automóvel, para determinação do valor de mercado para fins de compra e venda de viaturas usadas e novas, e a que recorrem as companhias de seguro para efeitos de determinação dos valores de perdas totais no âmbito da responsabilidade civil, bem como a ACAP — Associação de Comércio Automóvel de Portugal, e a ANECRA — Associação Nacional do Ramo Automóvel.

M - O impugnante em momento algum fez referência a alguma característica particular do veículo que pudesse desviar significativamente o valor indicado, assim como também não menciona um valor que considere ser de atender para a quantificação do rendimento em espécie que aqui está em questão, nem fundamenta o valor atribuído de € 1.995,19, valor este inferior ao valor de mercado ou refere outra revista de especialidade que pudesse ser atendida para encontrar o valor de mercado.

N - O legislador ao indicar no n° 6 do artigo 24° do CIRS “o valor médio de mercado considerado pelas associações do sector automóvel” deu a possibilidade de opção por uma das diversas associações do setor automóvel no que respeita ao apuramento do valor médio de mercado.

O - Contrariamente ao vertido na douta sentença, a AT cumpriu o vertido na lei, ou seja, utilizou o valor de mercado considerado por uma das “associações do setor automóvel” ou seja o guia Eurotax.

P - O despacho supra referido, apenas veio acabar com as dúvidas suscitadas com a introdução do n° 6 do artigo 24° do CIRS, e sua aplicação, ao referir que deve ser adotado o guia Eurotax como referência para determinar a vantagem acessória tributável, uma vez que a lei apenas referia “associações do setor automóvel”, estabelecendo a certeza aos contribuintes de qual a referência a ser utilizada no apuramento do valor médio de mercado.

Q - O impugnante quando submeteu a sua declaração de rendimentos Modelo 3 em 2003, referente ao ano de 2002, já sabia qual o guia que iria ser adotado pela AT no cálculo da vantagem acessória obtida, pelo que não existe qualquer retroatividade da lei, como afirma a douta sentença.

R - Enquanto a norma não foi alterada, teve de ser aplicada e foi nesse sentido que foi sancionado o despacho proferido pelo Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.

S - A douta sentença condenou a Fazenda Pública ainda no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43°, n° 1 da LGT, contudo entende a Fazenda Pública que os mesmos não são devidos uma vez que não se verificam os pressupostos insertos no n° 1, do artigo 43° da LGT, nomeadamente a existência de “erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da divida tributária em montante superior ao legalmente devido.”

T - Em face dos factos supra vertidos e da interpretação que deve ser efetuada ao n° 6 do artigo 24° do CIRS não pode manter-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo pois a AT limitou-se a cumprir a lei, ao adotar o guia Eurotax na determinação da vantagem acessória tributável como rendimento de categoria A, uma vez que a lei refere “o valor médio de mercado considerado pelas associações do sector automóvel”.

U - Pelo que, deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra que sentencie improcedente a presente impugnação.

Termos em que,

Deve ser concedido provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por decisão julgue improcedente a presente impugnação judicial.»


*

O recorrido (rdo) contra-alegou e concluiu: «

1. A anterior redação do nº 6 do art. 24º do CIRS não produz efeitos por falta de determinação dos conceitos aí utilizados, e por evidente deficiência ou obscuridade do método de determinação do rendimento;

2. Apercebendo-se desse estado de coisas, o legislador aprovou uma nova redação, e acrescentou outras normas no sentido de tornar possível a determinação exata de uma equivalência patrimonial para o rendimento em espécie previsto no art. 2º, nº 3, alínea b), nº 10);

3. A Administração Fiscal não pode substituir-se ao legislador na criação normativa, e na fixação do alcance das normas jurídicas vigentes;

4. Ao sujeito passivo também não pode reconhecer-se esse mesmo papel, não lhe podendo caber a sugestão ou escolha de uma determinada associação do sector automóvel em detrimento de outras;

5. O exemplo de publicação seguido pela Administração Fiscal não passa disso mesmo, um mero exemplo, entre muitos outros possíveis, não se extraindo daí qualquer relevância jurídico-fiscal, até porque, podendo fazê-lo, o legislador não regulou tal matéria com clareza que permitisse a determinação do rendimento tributável, nem sendo possível à entidade empregadora do impugnante a emissão da correspondente declaração de rendimentos;

6. O Impugnante continua sem conseguir aferir qualquer rendimento tributável, a partir do art. 24º, nº 6, do Código do IRS, tal como se encontrava redigido em 2002;

7. Pelo exposto, afigura-se ao impugnante que carece de fundamento legal o cálculo de rendimentos tal como foi efetuado pela Administração Fiscal, já que, desse modo, foram ultrapassadas as determinações do legislador e foram assumidas funções para as quais não tem competência legal, tais como a integração e interpretação da lei, em termos inovadores;

8. Será, assim, do mesmo modo, ilegal a liquidação adicional de IRS do ano de 2002 de que o Impugnante foi alvo, uma vez que as correções ao rendimento tributável desse ano foram efetuadas no exercício de uma competência que não cabia à Administração Fiscal, pelo que,

Nestes termos e nos demais de direito, deverá o recurso interposto pela Fazenda Pública ser declarado improcedente, e mantida a douta sentença proferida pelo Tribunal Tributário do Porto, nos seus exatos termos.»


*

O Exmo. magistrado do Ministério Público emitiu parecer, onde conclui que “a sentença recorrida fez uma correta interpretação e aplicação da lei, motivo pelo qual se impõe a sua confirmação, julgando-se improcedente o recurso.”, tendo, na análise deste, expendido: «

(…).
A questão que se vem suscitada pela Recorrente consiste em saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento, ao ter reputado de ilegal o recurso ao índice de preços referente a “Veículos Ligeiros de Passageiros” publicado pela “Eurotax Glass´s Group Company”, na concretização do conceito legal de “valor médio de mercado considerado pelas associações do sector automóvel”, previsto no nº 6 do artigo 24º do CIRS, na redação em vigor à data da ocorrência do facto tributário.
O ato de liquidação adicional de IRS impugnado respeita ao ano de 2002, pelo que importa atender à redação então em vigor dos normativos aplicáveis.
Dispunha o nº 10, alínea b) do nº 3 do artigo 2º do CIRS que são considerados rendimentos do trabalho dependente “as remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídas na remuneração principal que sejam auferidas devido à prestação de trabalho (…), designadamente (…) a aquisição pelo trabalhador ou membro social, por preço inferior ao valor de mercado, de qualquer viatura que tenha encargos para a entidade patronal”.
Dispunha igualmente o nº 6 do artigo 24º do CIRS que “no caso de aquisição de viatura pelo trabalhador ou membro de órgão social, o rendimento corresponde à diferença positiva entre o respectivo valor médio de mercado considerado pelas associações do sector automóvel e o somatório dos rendimentos anuais tributados como rendimentos decorrentes da atribuição do uso com a importância paga a título de aquisição.” (sublinhados nossos).
A problemática suscitada nos autos prende-se com a interpretação e aplicação do segmento desta última norma que fala em “valor médio de mercado considerado pelas associações do sector automóvel”. Não sendo questionado que à data não existia qualquer procedimento adotado pelas associações do setor automóvel na fixação de qualquer valor médio de mercado de veículos automóveis, a questão que se coloca consiste em saber se o critério adotado pela administração tributária e vertido no despacho do senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de recurso ao índice de preços publicitado pela “Eurotax Glass” se mostra ou não conforme à lei.
Na sentença recorrida o tribunal “a quo” aderiu ao entendimento no sentido de que a expressão legal em causa não tinha aplicabilidade concreta, uma vez que não se encontrava estabelecido qualquer procedimento por parte das associações do setor automóvel na definição de um valor médio de mercado. E nessa medida não podia a AT, através de circular interna, definir qualquer tabela publicada por uma dessas associações como índice de preços a ter em consideração.
E afigura-se-nos ser esse o entendimento correto a extrair das normas citadas.
Com efeito, independentemente de os índices publicitados pela “Eurotax Glass” serem ou não utilizados por diversas entidades para definir os valores de veículos automóveis e de constituir uma base séria de trabalho, certo é que o legislador foi aparentemente bastante preciso ao exigir que o “valor médio de mercado”, que já por si é um conceito indeterminado e carecido de densificação, tivesse que ser definido pelas associações do setor automóvel. E essa exigência, quanto a nós, afasta a possibilidade de se optar por um guia duma dessas associações ou entidades do setor automóvel, como defende a Recorrente Fazenda Pública.
Tal interpretação estaria correta se o legislador tivesse adotado o recurso aos índices dessas entidades a título meramente indicativo ou exemplificativo para apurar o tal “valor médio de mercado”, mas não foi o que ficou plasmado no normativo em causa. E terá sido por se concluir pela sua inaplicabilidade que o critério foi entretanto substituído pelo legislador, com as alterações e aditamentos introduzidos pela Lei nº 32-B/2002, de 30 de Dezembro.»

*

Colhidos os vistos legais, compete conhecer e decidir.

*******

# II.


Na sentença, em sede de julgamento factual, expressou-se: «

1. O impugnante foi alvo de uma acção inspectiva, determinada pela Ordem de Serviço 01200504376, concluída em Março de 2006, a qual incidiu sobre o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares de 2002 - cf. relatório de acção inspectiva a fls. 11 e seguintes do apenso de Reclamação Graciosa;

2. Em resultado da inspecção identificada em 1, a Administração Fiscal considerou que o impugnante omitiu rendimentos da categoria A no valor de € 8 754. 81 - cf. relatório de acção inspectiva constante de fls. 11 e seguintes do apenso de Reclamação Graciosa;

3. Os rendimentos omitidos e que se identificam em 2., resultaram da compra à Companhia de Seguros ……….. SA, sua entidade patronal (para a qual disponibilizava o Impugnante a sua capacidade de trabalho), de um veículo automóvel da marca Volvo, modelo S40 1.6, com a matrícula …………, pelo valor de € 1.995.19, o qual integrava o seu activo imobilizado - cf. relatório de acção inspectiva constante de fls. 11 e seguintes do apenso de Reclamação Graciosa;

4. De acordo com o guia publicado pela “Eurotax Glass’s Group Company” o valor de mercado da viatura identificada em 3, era à data de aquisição pelo impugnante, de € 10 750.00 - cf. relatório de inspecção tributária constante de fls. 11 e seguintes do apenso de Reclamação Graciosa;

5. A Administração Tributária recorreu ao guia publicado pela “Eurotax Glass’s Group Company” para fixar o valor de mercado da viatura referia em 3 - facto quer também resulta da análise do relatório de inspecção tributária constante de fls. 11 e seguintes do apenso de Reclamação Graciosa;

6. A 09 de Novembro de 2002, foi proferido o Despacho n° 1478/2002-XW, pelo Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, sancionando o entendimento que “para os anos fiscais de 2001 e 2002, deverá ser adoptado o guia Eurotax” - cf. informação elaborada para efeitos de apreciação de Recurso Hierárquico a fls. 15 do apenso respectivo;

7. Em 14.06.2006 o Impugnante procedeu ao pagamento da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares emitida de acordo com as correcções realizadas, no montante de € 2 197,76 - cf. demonstração de acerto de contas constante de fls. 27 dos autos, numeração referente ao processo físico.»


***

Aqui chegados, impõe-se avaliar se a sentença recorrida errou (ou não), em julgar a presente impugnação judicial procedente, por ser ilegal a liquidação adicional, de IRS, respeitante ao ano de 2002 e dirigida ao impugnante, sob o pretexto de que este havia omitido rendimentos, da categoria A, referentes a compra, à sua entidade patronal, de veículo automóvel, integrante do seu ativo imobilizado.

Em síntese, na perspetiva adotada nessa peça, após efetuado o pertinente enquadramento legal (Que não merece qualquer tipo de reparo, por parte da rte.), em sede do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) - artigos (arts.) 1.º n.ºs 1 e 2, 2.º n.º 3 alínea b) 10) e 24.º n.º 6 - , defende-se que a norma (art. 24.º n.º 6 – redação em vigor no ano de 2002) « … desde logo levantou problemas de interpretação sobre o que o legislador entendia por associações do sector automóvel, facto que veio a provocar a alteração legislativa que alterou o conteúdo da referida norma para “no caso de aquisição de viatura pelo trabalhador ou membro de órgão social, o rendimento corresponde à diferença positiva entre o respectivo valor de mercado e o somatório dos rendimentos anuais tributados como rendimentos decorrentes da atribuição do uso com a importância paga a título de preço de aquisição”.

Ora, por despacho de 09 de Novembro de 2002, proferido pelo Sr. Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, foi sancionado o entendimento de que “exclusivamente para os anos de 2001 e 2002, deverá ser adoptado o guia Eurotax de forma a determinar correctamente a vantagem acessória tributável como rendimento da categoria A”.

Pela simples constatação da data em que foi proferido o despacho até ao “período” a que se destina o entendimento vertido no mencionado despacho, fácil e obrigatoriamente se conclui que a aplicação do mesmo é ilegal. A Administração Tributária não pode em 2002, “fixar” como deve interpretar rendimentos de 2001. A ser possível estaria a violar o princípio constitucional da não aplicação retroactiva da lei fiscal – através de um simples despacho determinativo de interpretação administrativo.

Mas mesmo que assim não se entenda, cumpre perguntar se a Euronext é o legislador, se é algum departamento estadual ao qual foi atribuída competência em matéria fiscal. Caberia sim, ao legislador ter definido que associação, constituída de que forma e funcionando de determinada maneira teria competência para fixar os valores dos diversos veículos à venda no mercado automóvel português, ou, pelo menos, referir que associação teria tal “tarefa”. No entanto, não o fez.

Ao não o fazer, criou-se um vazio legal.

Como refere Vasco Valdez, “No caso de aquisição de viatura pelo trabalhador ou membro de órgão social, o rendimento anual corresponde à diferença positiva entre o respectivo valor médio de mercado considerado pelas associações do sector automóvel e a importância paga a título de aquisição”. Evidentemente, que o primeiro ponto será a determinação do que será o valor de mercado considerado pelas associações do sector. Todos conhecemos a utilização de vários indicadores que servem para efeitos de companhias de seguros, de revistas da especialidade, etc. Não nos parece que sejam estes valores que agora interessam. Terão de ser aqueles que as associações venham a acordar entre si. A nosso ver, enquanto não houver tais valores e os mesmos não sejam publicitados para efeitos de eficácia externa, a norma não poderá ser aplicada na prática.»

Ora, associações automóveis há várias e revistas ou publicações do ramo automóvel com indicação de preços para veículos usados também as há em abundância.

Assim sendo, pergunta-se qual delas deveria o sujeito passivo utilizar? Onde está a segurança jurídica por parte do contribuinte? Como se respeita o princípio da legalidade tributária?

Mais do que analisar revistas da especialidade, tratando-se de uma viatura usada, importaria apurar a sua quilometragem e o estado geral da mesma, no que ao seu uso, intenso ou não, respeita, só assim se podendo concluir por um correcto valor de mercado, pelo que se mostra, pois, a liquidação impugnada, ferida de ilegalidade, sendo certo que a Administração Tributária, na sua actividade, está sujeita ao princípio da legalidade estabelecido no artigo 55º, da Lei Geral Tributária.

(…).»

A primeira nota que emerge destes fundamentos, utilizados em 1.ª instância, é a de estarmos colocados, no essencial, perante dissenso envolvendo o preenchimento do conteúdo normativo/interpretação do segmento frásico “valor de mercado considerado pelas associações do sector automóvel” (Na redação aplicável aos rendimentos percebidos no ano de 2002, estatuía o art. 24.º n.º 6 do CIRS: « 6 - No caso de aquisição de viatura pelo trabalhador ou membro de órgão social, o rendimento corresponde à diferença positiva entre o respectivo valor de mercado considerado pelas associações do sector automóvel e o somatório dos rendimentos anuais tributados como rendimentos decorrentes da atribuição do uso com a importância paga a título de preço de aquisição. »
O rendimento em causa (da categoria A) correspondia, nos termos do art. 2.º n.º 3 alínea b) 10): « 3 - Consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente: (…); b) As remunerações acessórias, nelas se compreendendo todos os direitos, benefícios ou regalias não incluídos na remuneração principal que sejam auferidos devido à prestação de trabalho ou em conexão com esta e constituam para o respectivo beneficiário uma vantagem económica, designadamente: (…);10) A aquisição pelo trabalhador ou membro de órgão social, por preço inferior ao valor de mercado, de qualquer viatura que tenha originado encargos para a entidade patronal; ».), inscrito no art. 24.º n.º 6 CIRS (redação em vigor para o ano de 2002). E, ainda, mais especificamente, avaliar da (i)legalidade de o mesmo ser interpretado e operado com o alcance do entendimento veiculado, pelo Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (SEAF), no seu despacho n.º 1478/2002-XV de 9 de novembro (Segundo a conclusão G (que corresponde ao texto do despacho): “(...) exclusivamente para os exercícios de 2001 e 2002, deverá ser adoptado o guia EUROTAX, o qual teria efeitos de referência e de fundamento dos desvios de valor entre o preço declarado e o preço de cotação de venda, por forma a determinar correctamente a vantagem acessória tributável como rendimento de categoria A”.).

Feita esta delimitação do objeto deste recurso, primeiramente, devemos clarificar que, sem prejuízo de algumas parecenças, in casu, não iremos tratar de, típicos, conceitos indeterminados (como, por exemplo, “razões económicas válidas” ou “… estratégia de redimensionamento e desenvolvimento empresarial de médio ou longo prazo, com efeitos positivos na estrutura produtiva”) e, por isso, fica arredada a hipótese de podermos vir a discorrer sobre matéria de discricionariedade técnica (por contraposição a atividade vinculada), em que existe uma longa margem de livre apreciação da autoridade tributária e aduaneira (AT), podendo originar soluções diferentes, consoante o interesse que esta privilegie. Pelas palavras do Prof. Freitas do Amaral, “(p)orque não se lhe pede um trabalho de subsunção, uma tarefa declarativa de coincidência com um esquema dado, mas se exige uma tensão criadora do direito no caso concreto, deve naturalmente entender-se que esta actividade que, por desejo do legislador, sofre um influxo autónomo da vontade do agente administrativo, deve escapar ao controlo do juiz, embora este tenha o dever de verificar se a solução encontrada obedeceu às exigências externas postas pela ordem jurídica” (Curso de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 107.), ou seja, o juízo (da AT) não pode ser fiscalizado pelos tribunais, salvo nos casos em que ocorram erro grosseiro ou manifesta desadequação ao desiderato da legislação aplicável. Efetivamente, no presente apelo, do que se trata é de, noutro registo, no pressuposto de, por lei, a AT, na sua atuação com os contribuintes, estar vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza emitidas sobre a interpretação das normas tributárias que estiverem em vigor no momento do facto tributário (Cf., em 2002, o art. 68.º n.º 4 alínea b) da Lei Geral Tributária (LGT) e, na atualidade, o art. 68.º-A n.º 1 do mesmo diploma, aqui, com o acréscimo da obrigação de publicação, no prazo de 30 dias (antes, 6 meses), das orientações genéricas sobre a interpretação e aplicação das normas tributárias – art. 59.º n.º 3 alínea b) da LGT.), saber se tais comandos (internos), também, vinculam, enformam, o(s) comportamento(s) que os contribuintes têm de assumir para com a AT, em especial, quando divergem do entendimento assumido (obrigatoriamente) por esta.

Esta temática há muito que ocupa a doutrina e os tribunais da jurisdição fiscal. No primeiro caso, a conclusão mais sufragada e difundida, aponta no sentido de que a interpretação da lei, realizada pela AT, através de circulares…, não tem força de lei, nem possui o caráter de vinculação próprio das normas legais, bem como, não constitui interpretação autêntica e, por isso, a sua legalidade pode ser sempre questionada, destacadamente, pela via contenciosa. Nas palavras, escritas, do Prof. J. L. Saldanha Sanches (Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, pág. 123 a 128.), “(…). Estas orientações administrativas, sob a forma de circulares ou sob outras formas, são uma interpretação da lei fiscal e um instrumento unificador das decisões (necessariamente descentralizada) da Administração. Têm a sua função específica no processo de massa que constitui o processo fiscal, (…). Com a estrutura formal da norma jurídica - uma vez que não são a aplicação do Direito a um caso concreto, mas têm antes um carácter geral e abstracto -, as circulares valem o que valer a interpretação que fazem da lei. (…). No entanto, estas orientações (administrativas) terão de ser sempre sujeitos a um juízo de legalidade. Esse juízo de legalidade, a realizar em relação a qualquer orientação, vai ter como objecto a sua maior ou menor capacidade para traduzir correctamente um princípio que tem como fonte constitutiva a norma jurídica (...). É ao hipotético sujeito passivo da obrigação por elas formulada que cabe decidir entre o seu acatamento, o que o porá ao abrigo de consequências negativas mesmo se a doutrina for contra legem, e a não aceitação da posição administrativa. Caso opte pela segunda via, cumpre aos tribunais a resolução do litígio e o juízo definitivo sobre a legalidade ou ilegalidade da orientação administrativa.”.

Numa formulação próxima (Ver, acórdão (do Tribunal Constitucional) n.º 583/2009, de 18 de novembro.), «Esses actos, em que avultam as “circulares”, emanam … do poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens genéricas de serviço e é por isso e só no respectivo âmbito subjectivo (da relação hierárquica) que têm observância assegurada. Incorporam directrizes de acção futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços. Embora indirectamente possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os tribunais.
A circunstância de a Administração Tributária ficar vinculada (n.º 1 do artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária) às orientações genéricas constante de circulares que estiverem em vigor no momento do facto tributário e de ter o dever de proceder à conversão das informações vinculativas ou de outro tipo de entendimento prestado aos contribuintes em circulares administrativas, em determinadas circunstâncias (n.º 3 do artigo 68.º da LGT), não altera esta perspectiva porque não transforma esse conteúdo em norma com eficácia externa. É certo que o administrado pode invocar, no confronto com a administração, o conteúdo da orientação administrativa publicitada e, se for o caso, fazê-lo valer perante os tribunais, mesmo com sacrifício do princípio da legalidade (cfr. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária, comentada e anotada, 3.ª ed., pág. 344). Mas é ao abrigo do princípio da boa fé e da segurança jurídica, não pelo seu valor normativo, que o conteúdo das circulares prevalece. O administrado só as acata se e enquanto lhe convier, pelas mesmas razões que justificam que possa invocar informações individuais vinculativas que o favoreçam (artigo 59.º, n.º 3, alínea e) e artigo 68.º da LGT).
Consequentemente, faltando-lhes força vinculativa heterónoma para os particulares e não se impondo ao juiz senão pelo valor doutrinário que porventura possuam, (…).»

Na jurisprudência, em particular, do STA, descortinam-se decisões afirmativas desta forma de entender a versada problemática, desde o acórdão de 12 de julho de 2007 (01003/05) ao aresto de 21 de junho de 2017 (0364/14).

Expostos estes fios condutores, na situação que nos ocupa, é claro, perante um segmento normativo necessitado de interpretação, no sentido de preenchimento, concretização/precisão, que o SEAF se viu (na sequência de dúvidas colocadas pelos serviços operacionais da AT) obrigado a, mediante despacho, difundido internamente, estabelecer, como obrigatório, uniforme, o entendimento de que, para os anos de 2001 e 2002, tinha de ser adotado o guia “EUROTAX”, para determinar, corretamente, a vantagem acessória tributável, como rendimento de categoria A, do IRS, nos termos e para os efeitos do art. 24.º n.º 6, conjugado com os arts. 1.º n.ºs 1 e 2, 2.º n.º 3 alínea b) 10), todos do CIRS (redação em vigor para o ano de 2002), particularmente, quando o primeiro aponta para a utilização de valores considerados pelas “associações do sector automóvel”. Não havendo dúvidas sobre a obrigação dos serviços da AT, tutelados por aquele membro do Governo, seguirem a orientação acabada de identificar, porque o contribuinte (aqui, rdo) não se conformou, no tratamento do seu caso específico, com o recurso e imposição dos valores inscritos no guia publicado pela “Eurotax Glass’s Group Company”, impõe-se, na sequência do supra exposto, que, agora, formulemos um juízo definitivo sobre a legalidade ou ilegalidade da orientação administrativa em apreço.

Desde logo, na tarefa que se seguirá, é determinante ter em conta estarmos a lidar com aspetos sensíveis da relação jurídico-tributária, dado o litígio se situar em torno de questão respeitante à incidência real, e, necessária, determinação do rendimento coletável de um imposto, concretamente, do IRS, matérias, regra geral, sujeitas ao princípio da legalidade tributária e, consequentemente, obrigadas a respeitar, em primeira linha, os ditames dos arts. 103.º n.ºs 2 e 3, 165.º n.º 1 al. i) da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Para concluir pela ilegalidade da liquidação impugnada, na sentença recorrida, sustentou-se, em síntese, que: «

(…).
Caberia sim, ao legislador ter definido que associação, constituída de que forma e funcionando de determinada maneira teria competência para fixar os valores dos diversos veículos à venda no mercado automóvel português, ou, pelo menos, referir que associação teria tal “tarefa”. No entanto, não o fez.
Ao não o fazer, criou-se um vazio legal.
(…).
Ora, associações automóveis há várias e revistas ou publicações do ramo automóvel com indicação de preços para veículos usados também as há em abundância.
Assim sendo, pergunta-se qual delas deveria o sujeito passivo utilizar? Onde está a segurança jurídica por parte do contribuinte? Como se respeita o princípio da legalidade tributária?
Mais do que analisar revistas da especialidade, tratando-se de uma viatura usada, importaria apurar a sua quilometragem e o estado geral da mesma, no que ao seu uso, intenso ou não, respeita, só assim se podendo concluir por um correcto valor de mercado, pelo que se mostra, pois, a liquidação impugnada, ferida de ilegalidade, (…). »

A rte, fundamentalmente, confronta este julgamento apontando: «

No caso dos presentes autos, foi efetuada a utilização do valor de mercado definido pela “EUROTAX GLASS”, por ser esta uma revista elaborada com o apoio do ACP (associação nacionalmente reconhecida com especialidade no setor automóvel) e que serve de base a todo o setor comercial automóvel, para determinação do valor de mercado para fins de compra e venda de viaturas usadas e novas, e a que recorrem as companhias de seguro para efeitos de determinação dos valores de perdas totais no âmbito da responsabilidade civil, bem como a ACAP - Associação de Comércio Automóvel de Portugal, e a ANECRA - Associação Nacional do Ramo Automóvel.

O legislador ao indicar no n° 6 do artigo 24° do CIRS “o valor médio de mercado considerado pelas associações do sector automóvel” deu a possibilidade de opção por uma das diversas associações do setor automóvel no que respeita ao apuramento do valor médio de mercado.

Contrariamente ao vertido na douta sentença, a AT cumpriu o vertido na lei, ou seja, utilizou o valor de mercado considerado por uma das “associações do setor automóvel” ou seja o guia Eurotax.»

Ponderada esta crítica e inerentes argumentos a favor da legalidade do ato tributário, desde logo, por confronto com o conteúdo integral do despacho, do SEAF, n.º 1478/2002-XV de 9 de novembro, se verifica que este omitiu qualquer justificação, expressa e inequívoca, (pelo que a avançada pela rte é criação própria, diga-se, construída com o apelo a nomes de peso) para legitimar a escolha do identificado “Eurotax Glass” (O despacho em apreço, cujo conteúdo integral é “Transmita-se”, recaiu sobre uma informação, despoletada por consulta de uma sociedade que, além do mais, pediu esclarecimentos sobre a interpretação do nº 6 do art. 24º do CIRS, afirmando ter feito consultas às entidades ACAP…, ANECRA… e ARAN…, as quais a informaram que “a informação obtida sobre o valor médio de mercado tem por base Guias de Cotações publicados pela empresa EUROTAX Portuguesa, Lda.”.
Aliás, surpreende-se na informação subjacente ao despacho referenciado o seguinte: « … O Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, proferiu em 2002.05.20, o despacho nº 245/2002/XV: “Dado o facto de a EUROTAX ser dificilmente disponibilizável determino à DGCI que ouça… no sentido de o critério ser aquele que se utiliza para efeitos da desvalorização das viaturas no sector segurador.”. »).

Num segundo ponto, não podemos acolher a pronúncia, da rte, no sentido de que o legislador, na construção e formulação do n.º 6 do art. 24.º do CIRS (redação aplicável), “deu a possibilidade de opção por uma das diversas associações do setor automóvel no que respeita ao apuramento do valor médio de mercado”. Em primeiro lugar, nada, na estrita redação, nos termos concretos, do aludido normativo, aponta para tal caminho; ao invés, não se olvidando estarmos a tratar de aspeto sensível (a incidência de um imposto), direcionam o intérprete e aplicador da lei para (todas) as associações do setor automóvel, entenda-se, parece, mais, postular uma solução consensual e publicitada, senão pela totalidade (o desejável), pela maioria esmagadora dessas entidades, entre as quais, obviamente, as representativas do maior número de associados, sobre a variável “valor médio de mercado”. Decididamente, o legislador não quis o recurso a uma de várias revistas/guias da especialidade (automóvel) disponíveis no mercado da informação jornalística, ainda que, especializada (nota-se que na posição assumida pela rte, graça a confusão entre associações e revista/guia, elaborada com o apoio daquelas).

Finalmente e num apontamento que reputamos mais decisivo, a evolução legislativa, em torno do normativo em análise, denota, clarifica, que a solução preconizada, pelo SEAF, não tinha o conforto do acerto e muito menos, da legalidade.

Na verdade, a redação (supra transcrita) do art. 24.º n.º 6 do CIRS (Na altura, era o art. 23.º, com a epígrafe “Rendimentos em espécie”, matéria que, por posterior renumeração, transitou para o atual art. 24.º.), objeto de dissídio, foi introduzida pelo art. 1.º da Lei n.º 30-B/2000 de 29 de dezembro e entrou em vigor a 1 de janeiro de 2001, sendo que, tal normativo, logo a partir de 1 de janeiro de 2003, passou a dispor, na redação conferida pelo art. 26.º da Lei n.º 32-B/2002 de 30 de dezembro (OE para 2003), « 6 - No caso de aquisição de viatura pelo trabalhador ou membro de órgão social, o rendimento corresponde à diferença positiva entre o respectivo valor de mercado e o somatório dos rendimentos anuais tributados como rendimentos decorrentes da atribuição do uso com a importância paga a título de preço de aquisição. » E, com muito interesse e relevo, para a compreensão dos desígnios do legislador, o mesmo art. 26.º aditou ao art. 24.º do CIRS o seguinte: «7 - Para efeito do disposto no número anterior, considera-se valor de mercado o que corresponder à diferença entre o valor de aquisição e o produto desse valor pelo coeficiente de desvalorização constante de tabela a aprovar por portaria do Ministro das Finanças.»

Ora, em suma, sem prejuízo da AT dever obediência ao entendimento imposto pelo SEAF, desse ponto de vista se legitimando (internamente) a emissão da liquidação impugnada, não podemos atribuir-lhe a chancela de que estava em conformidade com a lei, à data, ano de 2002, vigente, porquanto o critério utilizado para determinar o, legalmente relevante, “valor de mercado considerado pelas associações do sector automóvel” não satisfaz a ideia, do legislador, de ser alcançado e operado um valor fixado, com unanimidade ou muito amplo consenso, pelas entidades representativas, em especial as com maior número de associados, do setor automóvel, acrescido da circunstância de, facilmente, poder ser disponibilizado para conhecimento da generalidade ou maioria dos contribuintes/sujeitos passivos de IRS.

Antes de encerrar este quadro fundamentador, restam duas breves referências:
- não faz sentido e nem tem qualquer conforto legal, a posição, em desespero de causa, assumida pela rte, na conclusão M, dado que ao sujeito passivo/impugnante nenhum ónus probatório, com a amplitude defendida, se mostrava imposto à data dos factos tributários;
- quanto à matéria das conclusões S e T (condenação no pagamento de juros indemnizatórios) é evidente que a AT/FP (através, aliás, da intervenção de um dos seus máximos dirigentes) produziu a liquidação de um tributo que, como acabamos de ver (e, já, em 1.ª instância), se mostra sofredora de ilegalidade, porque, por erro exclusivamente seu/dos seus serviços, entendidos como um corpo único, interpretando mal e operando com violação da lei aplicável, obrigou o sujeito passivo/impugnante a pagar um montante não devido.

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# III.


Destarte, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, acordamos negar provimento ao recurso.

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Custas a cargo da recorrente, porque totalmente vencida.

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[Texto redigido em meio informático e revisto, com versos em branco]


Lisboa, 16 de setembro de 2020. – Aníbal Ferraz (relator) – Francisco Rothes – Aragão Seia.