Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02014/12.9BELRS 0507/17
Data do Acordão:05/12/2021
Tribunal:2 SECÇÂO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:PREÇOS DE TRANSFERÊNCIA
QUESTÃO DE FACTO
QUESTÃO DE DIREITO
INCOMPETÊNCIA
Sumário:I - No âmbito dos contratos celebrados entre empresas que estão entre si numa situação especial reconduzível ao disposto no artigo 58.º do CIRC (actualmente, artigo 63.º do CIRC – regime jurídico dos preços de transferência), a interpretação das cláusulas contratuais com base nas quais se definam regras que hão-de servir de base ao apuramento da matéria tributável é ainda um juízo sobre a matéria de facto.
II - Embora se aceite que a interpretação das cláusulas do contrato possa ser qualificada como uma questão mista (de facto e de direito), por envolver, por um lado, a interpretação da vontade das partes contratuais na determinação das contas que pretendiam utilizar no apuramento da matéria colectável para efeitos da tributação em Portugal (juízo de facto), e, por outro, a interpretação normativa das cláusulas contratuais e legais que definem o princípio da plena concorrência no âmbito dos negócios jurídicos entre pessoas que estão entre si numa relação especial (preços de transferência), a verdade é que basta que existam questões de facto para decidir, i. e., que o recurso não tenha como fundamento exclusivo matéria de direito, para que, consequentemente, a competência para o seu conhecimento seja do Tribunal Central Administrativo e não do Supremo Tribunal Administrativo.
Nº Convencional:JSTA000P27681
Nº do Documento:SA22021051202014/12
Data de Entrada:05/03/2017
Recorrente:Z.......... - SGPS, S.A.
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:


Z…………. - SGPS, S.A., Impugnante nos autos à margem referenciados, inconformada interpôs recurso da decisão do T.T. de Lisboa, datada de 20 de Janeiro de 2017 que que julgou improcedente a impugnação judicial que apresentara, mantendo os actos de liquidação de IRC e Juros Compensatórios referentes ao exercício de 2008, objecto daquela Impugnação.

Alegou, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1ª A toll fee terá de ser “calculada, faturada e liquidada de acordo com os termos e as condições apresentados no anexo B” (..) salvo expressa indicação em contrário, que por sua vez, expressa e terminantemente determina que “todos os cálculos e fixações em matéria de assuntos financeiros (...) serão realizados ou preparados em conformidade com os princípios de contabilidade previstos, aplicáveis na República Portuguesa e numa base consistente” (Cf. Ponto 17) da matéria de facto).
2ª No caso concreto, a legislação interna traduzia-se, à data dos factos controvertidos, nas normas do Plano Oficial de Contabilidade (POC).
3ª Os Anexos C e D que se traduzem em listas com as classificações contabilísticas dos Estado Unidos da América (comumente designadas por US GAAP) não traduzem qualquer excepção à regra geral, muito menos uma excepção contratualmente expressa.
4ª Assim, e ao contrário do que julgou a final o Tribunal recorrido, a ora Recorrente não violou em nenhuma medida o contrato de prestação de serviços de produção celebrado com a Z…………….S.A. (“Z…."), porquanto aplicou as normas do POC no cálculo do toll fee.
5ª Deste modo, forçoso é concluir que a correcção operada pela Autoridade Tributária e confirmada pelo Tribunal a quo e que se diz fundamentar exclusivamente na incorrecta interpretação do contrato por parte da Recorrente é ilegal por vício de violação de lei.
6ª Acresce que ainda que tal violação formal (por errónea interpretação) do contrato tivesse ocorrido - o que se considera sem admitir- o certo é que a Recorrente aplicou a substância e espírito do mesmo. Com efeito, a remuneração da Recorrente foi calculada com base naquela interpretação e aferindo a retribuição que se reputou como justa, de acordo com princípios de livre concorrência.
7ª Ao não aceitar o preço praticado entre a Recorrente e uma entidade consigo relacionada no contrato em causa, independentemente de alegar uma divergência de interpretação do mesmo, a Autoridade Tributária teria que se socorrer do regime previsto no artigo 58.° do Código do IRC para os “preços de transferência".
8ª Com efeito, nesta sede não é suficiente dizer que “o preço de mercado não é o que resulta desta interpretação do contrato; é o que resulta daquela” considerando os princípios e preocupações de justiça fiscal (interna e internacional) que norteiam os regimes de preços de transferência.
9ª Aliás, a fundamentação da Autoridade Tributária para a correcção operada - na qual se baseia igualmente a Sentença recorrida - invoca expressamente a violação do regime de preços de transferência, sem porém, proceder à correcção de acordo com o mesmo regime.
10ª Assim, a Sentença recorrida é ainda incongruente (o que constitui erro de julgamento), pois por um lado se refere que o tema decidendum não é de preços de transferência - sem prejuízo de se basear totalmente no entendimento da Administração Tributária - mas sim de violação expressa do contrato e, por outro, invoca que a violação do contrato determina o desrespeito do “princípio da livre concorrência” (questão central de preços de transferência).
11ª A douta decisão recorrida é, pois, ilegal por manter na ordem jurídica actos de liquidação resultantes da violação do princípio da Plena Concorrência, da prevalência da substância sobre a forma na determinação da matéria coletável e, consequentemente, do Princípios da Capacidade Contributiva e da Legalidade Tributária.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, com a consequente revogação da douta sentença recorrida e consequente substituição por uma decisão de anulação parcial da liquidação operada, tudo nos termos alegados no presente recurso.

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público notificado pronunciou-se no sentido de “convidar a recorrente a apresentar novas conclusões”.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto levada ao probatório da sentença recorrida.

Há que conhecer do recurso que nos vem dirigido.
O recurso que nos vem dirigido é em tudo idêntico ao recurso n.º 03112/12.4BELRS, ressalvando as especificidades próprias de cada um dos processos, que já correu termos neste Supremo Tribunal e em que se concluiu pela incompetência em razão da hierarquia deste mesmo Supremo Tribunal uma vez que é posta em causa, no essencial, a matéria de facto relevada na sentença recorrida, sendo certo que na sentença que naquele processo era recorrida já se faz referência expressa ao decidido nestes autos.
Assim, porque não se vê razão para agora decidir de modo diferente, seguir-se-á de perto o que ali se decidiu:
2. Questão a decidir
Saber se: i) o Tribunal Tributário de Lisboa incorreu em erro de julgamento (erro nos pressupostos de facto e de direito) na interpretação e aplicação dos contratos de prestação de serviços de produção que estão na base da fixação da matéria colectável da Impugnante, designadamente no que respeita ao cálculo da toll fee (i. e. a importância que a empresa impugnante há-de cobrar ao investidor – empresa com a qual mantém uma relação de grupo – a título de remuneração); e ii) saber se, a admitir-se que a correcção realizada pela AT é válida, a mesma não teria que ter sido efectuada de acordo com o regime legal dos preço de transferência, estipulado no artigo 58.º do CIRC (hoje 63.º do CIRC) e na Portaria n.º 1446-C/2001, de 21 de Dezembro.
3 – Do direito
A Recorrente é uma sociedade dominante de um grupo de sociedades da qual faz parte a sociedade dominada C……… SA e a liquidação impugnada nos autos é uma liquidação adicional de IRC e juros compensatórios, respeitante ao exercício de 2009, no valor de €1.395.039, 79, correspondendo o presente recurso apenas à parte do valor daquela liquidação que resulta de correcções relativas ao cálculo da toll fee.
A toll fee é a designação dada no contrato de Manufactoring Services Agreement à remuneração auferida pela C……….. (a Toller na designação contratual) como contraprestação pelos serviços de fabrico de cigarros e outros produtos de tabaco, prestados no âmbito do contrato. Já o Manufactoring Services Agreement é o contrato celebrado entre a C……… e a B……………., SA, duas empresas que estão entre si em situação de “relações especiais” nos termos e para os efeitos do regime de preços de transferência do artigo 58.º do CIRC, na redacção em vigor à data dos factos (pressuposto fáctico-normativo aceite pelas partes (As relações jurídico-empresariais que estão na base dos actos subjacentes à liquidação impugnada resultam de um contrato celebrado entre entidades que são detidas indirectamente por uma entidade comum (pontos G a N da matéria de facto dada como provada), pelo que, à luz do disposto na al. b) do n.º 4 do artigo 58.º do CIRC (redacção em 2009) se têm de considerar entidades que estão entre si numa situação de “relação especial”. )).
Segundo o ponto 6 do contrato transcrito no ponto Q da matéria facto dada como provada, a remuneração da C……… (a toll fee) é calculada, facturada e liquidada de acordo com os termos e as condições apresentadas no Anexo B do mencionado contrato, correspondendo o seu valor i) aos custos de produção da Toller acrescidos de ii) uma rendibilidade do capital investido pela Toller relativamente à produção dos produtos.
No âmbito da inspecção tributária que deu lugar à prática do acto de liquidação adicional, impugnado nos autos, considerou a Administração Tributária: i) ser de corrigir o valor dos custos de produção do ano de 2009, no valor correspondente à dedução dos proveitos com o “Write Off “de vários saldos credores de terceiros sobre a empresa, uma vez que essas deduções não se encontravam previstas no contrato; ii) ser de corrigir o valor da rendibilidade do capital investido [que no contrato e também na sentença aparece designado pela sigla ROCE] por não terem sido respeitadas as regras do contrato para a sua determinação, o que se traduziu numa remuneração inferior por parte da C………. e numa economia de custos pela sua contraparte contratual, levando a um resultado que não é compatível com as escolhas de uma entidade independente em contexto semelhante – traduzindo-se esse desrespeito na violação do princípio da plena concorrência, previsto no já mencionado n.º 1 do artigo 58.º do CIRC [ver relatório da inspecção tributária transcrito no ponto Z da matéria de facto].
Na impugnação do acto de liquidação que interpôs no Tribunal Tributário de Lisboa, a agora Recorrente alegou que a Administração Tributária, no seguimento da solução apontada pelo relatório da inspecção tributária, incorreu em erro sobre os pressupostos, uma vez que procedeu à correcção do cálculo do valor da rendibilidade do capital investido com base em regras diversas das que, na sua interpretação, resultam do contrato. A impugnante havia efectuado os cálculos de acordo com as contas estatutárias (contas POC), em cumprimento do disposto no anexo B do contrato, e a Administração Tributária decidiu corrigir aqueles valores aplicando os valores que constam dos anexos C e D (classificações contabilísticas dos EUA, denominadas US GAAP), que, segundo a Recorrente, têm apenas uma função de “permitir um reporte uniformizado intragrupo, de cariz essencialmente, de gestão”.
Na decisão desta questão, o Tribunal a quo concluiu que na inspecção tributária realizada e que serviu depois de fundamento à prática do acto de liquidação, a AT nunca pôs em causa que as regras contratuais violassem o princípio da plena concorrência, apenas concluiu pela violação em concreto daquelas regras contratuais por parte da empresa, por considerar que não tinha sido cumprido o que havia sido contratualizado. E sobre a correcta ou incorrecta interpretação das regras do contrato afirmou-se o seguinte na sentença recorrida:

“(…) quanto às correcções ao ROCE, no valor de €2.965.761,08, alega a impugnante que, ao terem sido desconsideradas as contas POC e consideradas as contas US GAAP, a Administração Tributária seguiu um entendimento que não se revela correcto e que se distancia do previsto nos acordos celebrados.
Vejamos, então.
Considerando o Anexo B dos acordos mencionados em Q) dos factos provados supra, verifica-se que as partes em causa definiram que seriam tidos em conta os princípios contabilísticos nacionais do toller, ou seja, da C.........., “salvo expresso em contrário”.
Por outro lado, o ROCE é calculado partindo do “Capital Investido”, que, por seu turno, nos termos do ponto 1.c) dos acordos mencionados em Q) dos factos provados supra, “refere-se aos Activos Operacionais líquidos dos Passivos, tal como definido no Anexo D”, sendo que os “Activos Operacionais”, de acordo com o ponto 1.j) dos mesmos acordos, são os Activos definidos no Anexo C.
Atentando nos Anexos C e D referidos, verifica-se que os elementos aí discriminados se encontram identificados por referência às contas US GAAP, não havendo ali qualquer correspondência com as contas POC, nem a indicação de se tratar de listagem meramente indicativa.
Como tal, acompanha-se o entendimento da Administração Tributária, no sentido de os Anexos C e D configurarem uma excepção à regra prevista no ponto 1 do Anexo B, no sentido de, para aquele cálculo em específico, serem consideradas as contas US GAAP.
Sublinhe-se que esta aplicação simultânea de regras POC e US GAAP não se revela, de per si, contraditória.
Desde logo, trata-se do cumprimento de um acordo celebrado entre duas sociedades, acordo esse que não é posto em causa e que nada tem a ver com o cumprimento de normativos contabilísticos por qualquer uma das partes. Tem apenas a ver, no que ao caso dos autos interessa, com a determinação dos termos do cálculo do valor a pagar pela B……M à C……...
Por outro lado, como já referido, o próprio Anexo B, no seu ponto 1, admite a aplicação dos “princípios de contabilidade previstos, aplicáveis na República Portuguesa e numa base consistente, salvo expresso em contrário”. Ou seja, do próprio acordo entre as duas sociedades resulta desde logo a admissibilidade de haver excepções à regra aí definida, prevendo, pois, a possibilidade de serem considerados, em simultâneo com os princípios POC, outros princípios contabilísticos.
Ou seja, no caso do cálculo do ROCE, atento o disposto nos Anexos C e D dos acordos mencionados em Q) dos factos provados supra, resulta que a impugnante deveria ter considerado as contas US GAAP ali discriminadas e não fazer uma adaptação das mesmas às contas POC, uma vez que do acordo resulta que nos casos excepcionados não são seguidos os princípios POC.
Nesta matéria, aderimos, assim, sem reservas, ao doutamente decidido no Processo nº 2014/12.9BELRS, deste tribunal, em caso similar ao dos presentes autos.
Pelo exposto, como decorre do relatório de inspecção tributária, a impugnante não efectuou os cálculos nos termos acordados com a B…..M, para efeitos de respeito pelo princípio da livre concorrência, motivo pelo qual não lhe assiste razão, improcedendo, por isso, o por si alegado, quanto a esta concreta correcção (…)».

No recurso que interpõe para Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, a Recorrente considera que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao ter decidido desta forma e invoca dois fundamentos, que estão entre si numa relação de subsidiariedade: i) primeiro, considera que o Tribunal a quo cometeu um erro na interpretação das regras do contrato a partir da matéria de facto que deu como provada; ii) segundo, que se entendia que o método de cálculo teria de ser outro (envolvendo assim uma modificação das regras do contrato), então a correcção a efectuar à matéria colectável teria que obedecer ao regime legal dos preços de transferência (artigo 58.º do CIRC e Portaria n.º 1446-C/2001).
Vejamos se assiste razão à Recorrente, começando por salientar que tudo o que vem questionado se reconduz ao problema da interpretação das cláusulas do contrato, pelo que importa começar por verificar se a questão colocada perante este tribunal é uma verdadeira questão de direito e se é só uma questão de direito.
Ao alegar que existiu erro na interpretação das cláusulas contratuais, i. e., que a solução proposta pela inspecção tributária e acolhida pela AT como fundamento do acto de liquidação adicional, no sentido de promover o (re)cálculo da rendibilidade do capital investido a partir dos valores inscritos nas contas dos anexos C e D (contas US GAAP), em vez de utilizar os valores do anexo B (das contas POC), a Recorrente está a solicitar a este Tribunal que decida se a interpretação das cláusulas contratuais se reconduz ao sentido que delas retirou a Recorrente ou, ao invés, ao sentido que veio a ser fixado pela AT.
Com efeito, o que resulta do excerto da sentença do Tribunal a quo antes transcrita e das alegações apresentadas pela Recorrente quanto a este ponto – erro na interpretação das cláusulas contratuais – é uma divergência da Recorrente quanto às conclusões a que o Tribunal a quo chegou relativamente à matéria de facto dada como provada. E o que a Recorrente pretende com este recurso é que o Tribunal verifique se as operações de determinação da matéria colectável efectuadas estavam ou não em conformidade com o disposto no contrato, contrariamente ao que concluiu o Relatório da inspecção tributária. Por isso, nas suas alegações, conclui que a inspecção tributária errou na interpretação do contrato e que o Tribunal a quo errou ao ter aderido a essa interpretação das cláusulas contratuais.
Ora, este pedido não consubstancia uma “questão de direito” enquadrável no âmbito da competência deste Supremo Tribunal Administrativo.
Tal como resulta da al. b) do artigo 26.º e da al. a) do artigo 38.º do ETAF e do n.º 1 do artigo 280.° do CPPT, a competência do Supremo Tribunal Administrativo para a apreciação dos recursos jurisdicionais interpostos de decisões dos Tribunais Tributários restringe-se, exclusivamente, a matéria de direito, constituindo, assim, uma excepção à competência generalizada do Tribunal Central Administrativo, ao qual compete (cfr. al. a) do artigo 38.º do ETAF) conhecer «dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.°»( Com a nova redacção da al. b do artigo 26.º do ETAF, introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, o recurso para o Supremo Tribunal Administrativo ficou também restringido às “decisões de mérito dos tribunais tributários”, o que não relevância no âmbito do presente recurso.).
Em consonância, o n.º 1 do artigo 280.º do CPPT prescreve que das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (Em consonância com a referida alteração da al. b do artigo 26.º do ETAF, também o n.º 1 do artigo 280.º do CPPT foi modificado, no caso, pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, passando a prever-se que “Das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância cabe recurso, a interpor pelo impugnante, recorrente, executado, oponente ou embargante, pelo Ministério Público, pelo representante da Fazenda Pública e por qualquer outro interveniente que no processo fique vencido, para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a decisão proferida for de mérito e o recurso se fundamente exclusivamente em matéria de direito, caso em que cabe recurso para a Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo”. Alteração legislativa que, igualmente, não tem relevância no âmbito do presente recurso.).
Reserva-se, portanto, ao Supremo Tribunal Administrativo, o papel de tribunal de revista, com intervenção apenas nos casos em que a matéria de facto controvertida no processo esteja estabilizada e apenas o direito se mantenha em discussão.
Para aferir da competência do STA em razão da hierarquia há-que atentar, em princípio, apenas no teor das conclusões das alegações de recurso (pois por aquelas se define o objecto e se delimita o âmbito deste - cfr. artigo 635.º do CPC) e verificar se, perante tais conclusões, as questões controvertidas se resolvem mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou se, pelo contrário, a sua apreciação implica a necessidade de dirimir questões de facto (ou porque o recorrente defende que os factos dados como provados na sentença não estão provados, ou porque diverge das ilações de facto que deles se devam retirar, ou, ainda, porque invoca factos que não vêm dados como provados e que não são, em abstracto, indiferentes para o julgamento da causa). Mas não só, pode ser ainda necessário confrontar as conclusões com a própria substância das alegações do recurso, nomeadamente, para verificar se nelas se afronta expressamente a factualidade que suporta a decisão.
E se o recorrente suscitar qualquer questão de facto, o recurso já não terá por fundamento exclusivamente matéria de direito, ficando, desde logo, definida a competência do Tribunal Central Administrativo, independentemente da eventualidade de, por fim, este Tribunal vir a concluir que a discordância sobre a matéria fáctica é irrelevante para a decisão do recurso.
Ora, o problema, in casu, da correcta interpretação das cláusulas contratuais com base nas quais se definem as contas (o sistema contabilístico) que hão-de servir de base ao apuramento da matéria tributável é ainda um juízo sobre a matéria de facto. Embora se aceite que possa ser qualificado como uma questão mista (de facto e de direito), por envolver, por um lado, a interpretação da vontade das partes contratuais na determinação das contas que pretendiam utilizar no apuramento da matéria colectável para efeitos da tributação em Portugal da C……… (juízo de facto), e, por outro, a interpretação normativa das cláusulas contratuais e legais que definem o princípio da plena concorrência no âmbito dos negócios jurídicos entre pessoas que estão entre si numa relação especial (preços de transferência), a verdade é que basta que existam questões de facto para decidir, i. e., que o recurso não tenha como fundamento exclusivo matéria de direito, para que, consequentemente, a competência para o seu conhecimento seja do Tribunal Central Administrativo e não deste Supremo Tribunal.
E é o que sucede neste caso, pois o que a Recorrente efectivamente solicita é que seja analisado se ela interpretou e aplicou ou não correctamente as cláusulas do contrato no cálculo que fez do montante da base tributável para efeitos de apuramento e liquidação do IRC devido no exercício de 2009 (ver 6.ª conclusão das alegações) e tal pedido não pode deixar de implicar um juízo interpretativo e valorativo sobre uma questão de facto (a vontade das partes expressa nas cláusulas contratuais).
Consequentemente, também a resposta à questão que vem formulada de modo subsidiário e que, fundamentalmente, se reconduz à impossibilidade de a AT modificar as regras contratuais em matéria de preços de transferência sem, para o efeito, seguir o procedimento estipulado no então artigo 58.º do CIRC e nos artigo 17.º e ss da Portaria n.º 1446-C/2001, depende da resposta a questão que envolve um juízo de facto. Com efeito, previamente a analisar-se a questão de saber se o procedimento para correcção de preços de transferência foi ou não observado e se teria de o ser no caso concreto, importa verificar se o que está em causa é ou não uma efectiva modificação dos termos de cálculo dos preços intragrupo fixados pelas partes através do contrato de prestação de serviços [como, de resto, a Recorrente afirma no ponto 40 das suas alegações através da referência a um facto novo, que é a necessidade sentida pelo Grupo de (após este caso) clarificar o texto do contrato]. Assim, resulta evidente que estamos ante uma questão (a da necessidade de observância ou não das regras legais em matéria de alteração de preços de transferência) que fica prejudicada pela prévia determinação do sentido interpretativo que há-de ser atribuído às cláusulas contratuais e que, como já explicámos, implica um juízo sobre a matéria de facto.

Conclusões
Assim, podemos concluir, relativamente à questão em apreço, que:
- no âmbito dos contratos celebrados entre empresas que estão entre si numa situação especial reconduzível ao disposto no artigo 58.º do CIRC (actualmente, artigo 63.º do CIRC – regime jurídico dos preços de transferência), a interpretação das cláusulas contratuais com base nas quais se definam regras que hão-de servir de base ao apuramento da matéria tributável é ainda um juízo sobre a matéria de facto.
- embora se aceite que a interpretação das cláusulas do contrato possa ser qualificada como uma questão mista (de facto e de direito), por envolver, por um lado, a interpretação da vontade das partes contratuais na determinação das contas que pretendiam utilizar no apuramento da matéria colectável para efeitos da tributação em Portugal (juízo de facto), e, por outro, a interpretação normativa das cláusulas contratuais e legais que definem o princípio da plena concorrência no âmbito dos negócios jurídicos entre pessoas que estão entre si numa relação especial (preços de transferência), a verdade é que basta que existam questões de facto para decidir, i. e., que o recurso não tenha como fundamento exclusivo matéria de direito, para que, consequentemente, a competência para o seu conhecimento seja do Tribunal Central Administrativo e não do Supremo Tribunal Administrativo.
Como ali, também agora se conclui do mesmo modo.

Em face do exposto, julga-se este Supremo Tribunal Administrativo incompetente em razão da hierarquia para conhecer do recurso interposto nestes autos e ordena-se a remessa oficiosa do processo para o Tribunal Central Administrativo Sul (Secção do Contencioso Tributário), por via electrónica, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 18.º do CPPT.
Custas pela Recorrente, fixando-se em 1 UC (uma unidade de conta) a taxa de justiça.
D.n.
Lisboa, 12 de Maio de 2021. - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia (relator) - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - Gustavo André Simões Lopes Courinha.