Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0381/10
Data do Acordão:07/14/2010
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:FERNANDA XAVIER
Descritores:COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
HOSPITAL
CONTRATO ADMINISTRATIVO
AQUISIÇÃO DE BENS
Sumário:Os tribunais administrativos são incompetentes, em razão da matéria, para conhecer da validade de um acto de adjudicação, por um Hospital E.P.E., de um contrato de aquisição 18 carros para distribuição das refeições aos doentes, em que o valor estimado do contrato é inferior ao limiar comunitário para os contratos públicos desse tipo.
Nº Convencional:JSTA00066533
Nº do Documento:SA1201007140381
Data de Entrada:06/08/2010
Recorrente:B...
Recorrido 1:HOSPITAL DE C... E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC.
Objecto:AC TCA SUL.
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - PRÉ-CONTRATUAL.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
DIR COMUN.
Legislação Nacional:DL 197/99 DE 1999/06/08 ART2 N1 B ART3.
DL 558/99 DE 1999/02/17 ART3 N2 ART7 N1 N2 ART14 N1 N2 ART23 N1.
DL 233/2005 DE 2005/02/29 ART3 N1 ART5 N1 N2 ART13 N1 N2.
DL 93/2005 DE 2005/06/07 ART1 ART2.
DL 27/2002 DE 2002/11/08 ART48 E ANEXO.
CONST97 ART212 N3.
DL 559/99 DE 1999/12/17 NA REDACÇÃO DO DL 300/2007 DE 2007/08/23 ART23 N1.
ETAF02 ART1 N1 ART4 N1 E.
Legislação Comunitária:DIR CONS CEE 93/96/CEE DE 1996/06/14 NA REDACÇÃO DA DIR CONS CEE 97/52/CE ART5 B.
DIR CONS CEE 2004/18/CE DE 2004/03/31 ART9 N1.
Jurisprudência Nacional:AC STA DE 2009/12/16.; AC CONFLITOS PROC16/09 DE 2009/11/12.
Jurisprudência Internacional:AC TRIJ PROC C-44/96 DE 1998/01/15 IN COLECTÂNEA 1998 O PAG1-0073.
AC TRIJ PROC C-76/97 DE 1998/09/24 IN COLECTÂNEA 1998 PAG1-5388.
Referência a Doutrina:FREITAS DO AMARAL CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VI 2ED PAG137.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E OUTRO COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS ANOTADO 2ED PAG17 PAG149.
VIEIRA DE ANDRADE A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 4ED PAG55.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I- RELATÓRIO
B... SA, com os sinais dos autos, veio interpor recurso de revista excepcional, para este STA, ao abrigo do artº 150º do CPTA, do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido a fls. 409 e seguintes, que negou provimento ao recurso jurisdicional interposto do despacho saneador proferido pela Mma. Juíza do TAF de Leiria, a fls. 327 e segs., que declarou o tribunal incompetente materialmente para conhecer da presente acção de contencioso pré-contratual, que a ora recorrente instaurou contra o HOSPITAL DE C... E.P.E. e a contra-interessada D...Lda.
Termina as suas alegações de recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
I. Embora tenha, em sede de contencioso administrativo, natureza excepcional, o presente recurso de revista deverá ser admitido, uma vez que se encontram preenchidos os pressupostos da sua utilização previstos no artº 150º do CPTA.
II. Desde logo pela relevância social que a questão reveste, uma vez que está em causa o fornecimento de bens para um hospital integrado no Serviço Nacional de Saúde e a utilização de capitais públicos para adjudicação dos mesmos, mas igualmente pela sua relevância jurídica e tendo em vista a melhor aplicação do direito, uma vez que a questão jurídica subjacente aos presentes autos, determinabilidade da jurisdição competente, ser particularmente controvertida.
III. Estando preenchidos os pressupostos legais da sua verificação, deverá ser admitido o recurso de revista.
IV. Nos termos da alínea b) do nº1 do artº 4º do ETAF compete aos tribunais administrativos a “fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração”, sendo igualmente sua competência, nos termos da alínea e) do mesmo número, conhecer das “questões relativas à validade dos actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta ou que admita que sejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.
V. O anúncio do Concurso Público nº7005 A 08 previa a celebração de um contrato público, assim demonstrando que o mesmo se encontra submetido à jurisdição administrativa.
VI. O procedimento seleccionado para proceder à escolha do contratante, no Concurso Público nº7005 A 08, é também um procedimento de natureza pública.
VII. A este respeito já entendeu o Tribunal Central Administrativo Sul (Acórdão nº02511/07, de 14 de Junho de 2007) que se a entidade adjudicante de um concurso é uma pessoa colectiva de direito público e se do processo administrativo resultar que todo o procedimento se regeu por normas de direito público nos termos consagrados no Decreto-Lei nº197/99, de 8/6, os tribunais administrativos são os materialmente competentes para conhecer da validade dos actos e adjudicação e respectivos contratos nos termos do artº 4º, nº1, al. e) do ETAF.
VIII. O recorrido Hospital de C... E.P.E. é uma pessoa colectiva de direito público, à qual foram conferidos poderes de autoridade, praticando actos de gestão pública, integrando eles mesmos a realização de uma função pública da pessoa colectiva, independentemente de envolverem ou não o exercício de meios de coação.
IX. Regendo-se todo o processo de selecção de co-contratante por normas de direito público e sendo a entidade pública contratante uma pessoa colectiva pública, realizando actos de gestão pública, os tribunais administrativos são os materialmente competentes para apreciar o presente litígio, nos termos das alíneas b) e e) do nº1 do artº 4º do ETAF.
X. O douto acórdão recorrido ao ter declarado a incompetência material do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, violou o disposto nas alíneas b) e e) do nº1 do artº 4º do ETAF, uma vez que o presente litígio, por abranger uma relação jurídico-administrativa, deve ser submetido aquela jurisdição.
XI. Deve, pois, ser proferido douto acórdão que, revogando o douto acórdão recorrido, declare a competência do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria para apreciar o presente litígio, nos termos e com as legais consequências.
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Contra-alegou o recorrido HOSPITAL DE C... E.P.E., CONCLUINDO assim:
1ª. Não estão verificados os pressupostos de excepcionalidade previstos no artº 150, nº1 do CPTA, para que seja admissível a Revista, pelo que deve ser rejeitado o recurso.
2ª. Conforme demonstrado no corpo das alegações, por força do disposto no Dec. Lei nº297/2002, de 11 de Dez., no Dec. Lei. nº 93/2005, de 7 de Junho, no Dec. Lei nº558/99 de 17 de Dezembro, pelo seu artº7º, nº1 e no artº13º do Dec. Lei nº 233/2005, de 29 de Dezembro, a aquisição de bens e serviços pelos hospitais E.P.E. - como é o recorrido - rege-se pelas normas de direito privado.
3ª. Nesse quadro e por via do disposto no citado artº 13º, nº1 e 2 do Dec. Lei nº233/2005, à formação do contrato em análise nos presentes autos, para além das disposições do direito privado comum, aplica-se o regulamento interno do Hospital de C... E.P.E, de aquisição ou locação de bens, serviços e empreitadas de obras públicas.
4ª. No caso vertente, nem sequer têm aplicação quaisquer normas de âmbito comunitário e, por essa via, hipoteticamente qualquer norma de Direito Público, dado que o valor da aquisição dos bens em questão (na hipótese mais elevada, de 203.696,00€) é inferior ao limiar estabelecido no artº 7º al. b) da Directiva nº2004/18/CE (sucessivamente 249.000,00€, 211.129,00 – valor vigente à data relevante para o efeito no caso vertente, a da abertura do concurso, isto é, 3 Abril.2008 e 206.000,00€, posteriormente).
5ª. Neste quadro, afigura-se ao recorrido, por evidente, assistir aos tribunais comuns a competência para dirimir quaisquer litígios emergentes da formação do contrato em apreço, por aplicação quer do disposto no artº 18º, nº2 do Dec. Lei nº558/99, de 17 de Dezembro conjugado com o disposto no artº 66º do CPC, quer em sede de delimitação negativa, por força do estatuído no artº 4º, nº1 e) do ETAF.
6ª. Assim, bem decidiram as instâncias, ao não declararem como aplicável à formação da contratação em apreço, o regime do Dec. Lei nº 197/99, de 8 de Junho, isto é, um regime de contratação de direito público, e ao declarar a questão em litígio fora do âmbito da jurisdição administrativa.
7ª. Em reforço do antecedentemente exposto, sublinha-se que o concurso em apreço foi iniciado em 3 Abr.2008 por deliberação do Conselho de Administração do recorrido, manifestamente no domínio da vigência dos regimes atrás citados, designadamente do Dec. Lei nº233/2005.
8ª. E o próprio Dec. Lei nº 197/99, de 8 de Junho, delimita negativamente a sua aplicação às empresas públicas e ao recorrente, por força do que estabelece nos seus artº 2º, b) e 3º, nº1 (este, a contrario).
9ª. É, pois, claro que o H C..., no que concerne à aquisição de bens e serviços, deixou de estar sujeito ao regime do Dec. Lei nº197/99 de 8 de Junho, a partir da entrada em vigor do Dec. Lei nº 297/2002, de 12 Dez.2002.
10ª. Mais uma vez se verifica que, independentemente da natureza pública do recorrido, inexistem elementos de conexão com relações de direito administrativo quanto à materialidade em apreço, pelo que se reitera que o litígio em apreço, está fora do âmbito da jurisdição administrativa, por força do que estabelece o artº 4º, nº1 al. e) do ETAF.
11ª. Um último aspecto de apreciação: A alusão no formulário de publicitação do concurso a que o procedimento visa a formação de um contrato público, não confere natureza administrativa à contratação em apreço. Nem ao contrato, nem muito menos ao procedimento que visa a sua formação, que é o que está em causa no presente litígio.
12ª. Esta terminologia significa tão-somente, que o concurso é dirigido à generalidade dos interessados a contratar; a mesma consta do regulamento interno do recorrente já citado e este é um complexo normativo regulador de uma contratação de direito privado, sendo que a aplicação deste instrumento ao processo de selecção do fornecedor, consta do artº 28º do Programa do referido Concurso.
13ª. Nem o anúncio, nem o programa de concurso, evocam a aplicação de qualquer complexo normativo de direito administrativo; antes pelo contrário, como se viu, remetem para a aplicação do regulamento interno de aquisições do Hospital, cuja natureza privatística já se evidenciou.
14ª. Estando sempre em causa, como é o caso, a aplicação de normas substantivas de direito privado é, pois, aos tribunais comuns que compete conhecer dos litígios relativos à formação da contratação em apreço, como decorre das disposições conjugadas dos artº 18º, nº2 do Dec. Lei nº558/99, de 17 de Dezembro e 66º do CPC.
15ª. E também por força do artº 18º, nº1 do Dec. Lei nº 558/99, de 17 de Dezembro se conclui que só quando está em causa a actuação da entidade pública empresarial tomada no quadro da tipologia consagrada no artº 14º que o antecede, é que a competência para julgamento de litígios à mesma atinentes é cometido aos tribunais administrativos, o que não é o caso.
16ª. Daí e justamente, o artº 14º das cláusulas jurídicas do caderno de Encargos (cf. fls. 27 do PA), estabelecer como foro competente para dirimir quaisquer questões emergentes da contratação em análise, o do Tribunal Judicial da comarca de Leiria. Isto é, um tribunal comum que dirime conflitos de direito privado. Como é o caso em apreciação.
17ª. A douta decisão recorrida fez, assim, correcta e justa aplicação do Direito.
*
Por acórdão interlocutório da formação de juízes deste STA, a que se alude no artº 150º, nº5 do CPTA, proferido a fls. 425 e segs., foi a revista admitida.
Sem vistos, vêm agora os autos à conferência, para decisão.
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II - OS FACTOS
O acórdão recorrido considerou provados e com interesse para a decisão, os seguintes itens, transcritos da factualidade assente no despacho saneador ali sob recurso e que transcreveu no respectivo probatório:
1. O Hospital de C... (…) foi transformado em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com a designação de Hospital de C... SA.
2. O Decreto-Lei nº233/2005, de 29 de Dezembro criou o Hospital de C..., como uma Entidade Pública Empresarial (E.P.E.)
(…).
4. Através do Anúncio datado de 7 de Abril de 2008 foi aberto concurso público da aquisição de 18 carros mistos para distribuição das refeições aos doentes com 640 tabuleiros, concurso este aberto através da deliberação do Conselho de Administração do Hospital de C... E.P.E., de 3 de Abril de 2008, com o Caderno de Encargos e Programa do Concurso, conforme resulta da documentação de fls. 000019 a 000057 do PA (Pasta1/3), que aqui se dá por inteiramente reproduzida.
5. A A. candidatou-se e foi ao concurso em causa, apresentando a proposta respectiva, conforme documentos de fls. 000376 a 000423 do PA (Pasta 2/3), que aqui se dá como inteiramente reproduzida.”
Considerou ainda provado que:
6. O artigo 28º do Programa do Concurso (fls. 00042 do PA) estabelece que o concurso em 4. se regula nos termos do Regulamento de Aquisição ou Locação de Bens e Serviços e Empreitadas de Obras Públicas do Hospital de C... E.P.E.
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III - O DIREITO
1. A autora B..., SA, ora recorrente, instaurou a presente acção de contencioso pré-contratual, ao abrigo dos artº 100º e segs. do CPTA, contra o HOSPITAL DE C... E.P.E. e a contra-interessada D... Lda., com vista a obter a anulação do acto de adjudicação praticado no âmbito do Concurso Público nº7500 A/08, pelo qual a 1ª Ré adjudicou à segunda a «aquisição de 18 carros mistos para distribuição das refeições aos doentes, com 640 tabuleiros», com fundamento em alegadas ilegalidades ocorridas no procedimento e na apreciação das propostas. Pediu ainda a anulação do subsequente contrato de fornecimento que, eventualmente, já se encontre celebrado entre as Rés.
Mais alegou a Autora que o concurso foi aberto pela 1ª Ré, através do anúncio datado de 07.04.2008, onde se mencionava a celebração de um contrato público e foi sujeito pela 1ª Ré ao regime previsto para os procedimentos de contratação pública, à época o DL 197/99 de 08.06.
A 1ª Ré excepcionou a incompetência dos tribunais administrativos para conhecerem do objecto do presente litígio, porque se rege, na sua actividade, em princípio, pelo direito privado (artº 7º, nº2 ex vi artº 23, nº1 do DL 558/99), o contrato objecto do concurso em causa, embora denominado contrato público, é um contrato de direito privado, sujeito ao procedimento previsto no regulamento interno da 1ª Ré para aquele tipo de contratação, o qual tem natureza privada (cf. artº 13º, nº1 e 2 do DL 233/2005 e doc. nº1 junto com a contestação e artº 28º do programa do concurso), não lhe sendo aplicável o DL 197/99 de 08.06, porque o valor do contrato, que é de 195.196,00 € (ou de 203.696,00€, se se entender não se deduzir o valor da retoma de equipamentos identificados no caderno de encargos), não atingia o limiar para aplicação das normas comunitárias de contratação pública, então em vigor, que era de 211.129,00€ e a partir de 3 de Agosto de 2008, de 206.000,00€ (cf. Despacho 19545/2006 do Ministro das Finanças e alínea d) do artigo único da Portaria 701-C/2008, de 29.07).
Sendo a contratação em apreço regulada exclusivamente pelas normas de direito privado e tendo sido estabelecido o foro do Tribunal Judicial da comarca de Leiria para dirimir quaisquer questões emergentes do contrato (cf. artº 14º do caderno de encargos), é esse o tribunal competente.
2. As instâncias, acolhendo os fundamentos aduzidos pela 1ª Ré, julgaram procedente a excepção de incompetência material do TAF de Leiria.
Para assim decidir, o acórdão sob recurso considerou, em síntese, que o contrato objecto do concurso em causa é um contrato que se rege pelo direito privado e não pelo direito administrativo, como decorre do artº 7º do DL 558/99, de 17.12, que dispõe que as empresas públicas regem-se pelo direito privado, salvo no que estiver disposto no presente diploma e nos diplomas que tenham aprovado os respectivos Estatutos e do 13º, nº1 do DL 233/2005, de 29.12, diploma que aprovou os Estatutos da 1ª Ré e à data dos factos dispunha que «a aquisição de bens e serviços e a contratação de empreitadas pelos hospitais E.P.E. regem-se pelas normas de direito privado, sem prejuízo da aplicação do regime comunitário relativo à contratação pública.». Referiu ainda que o mesmo resulta do nº2 deste preceito, ao remeter para regulamento interno dos hospitais E.P.E, a criação da disciplina privatística a que se há-de submeter aquele tipo de contratação, sendo que a 1ª Ré juntou aos autos, com a contestação (doc. nº1), o referido regulamento interno, aprovado na sequência do Dec. Lei nº 297/2002, de 11.12, por deliberação do seu Conselho de Administração de 12.06.2003.
Por outro lado e segundo o acórdão recorrido, no caso sub judice não há lugar à aplicação de quaisquer normas do âmbito do direito comunitário e, por essa via, de qualquer norma de direito público, pois não há lei específica que sujeite o contrato, objecto do concurso em causa, ao DL 197/99, sendo que, de qualquer modo, o valor da aquisição é inferior ao limiar estabelecido no artº 7º, b) da Directiva nº2004/18/CE, pelo que tal regime também não teria, por isso, aplicação.
Conclui, pois, que não tem aqui aplicação a norma do artº 4º, nº1 e) do ETAF, como pretende a recorrente, pois existe até lei específica que afasta a sujeição a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público (o citado artº 13º do DL 233/2005), além de que o valor da adjudicação é inferior ao limiar fixado pelo artº 7º, b) da Directiva nº 2004/18/CE, sendo ainda irrelevante o facto de se ter publicitado que o procedimento concursal visava a formação de um contrato público, uma vez que o PC (artº 28º) e o CE mandam aplicar o regulamento interno, além de se ter estabelecido no artº 14º das cláusulas do caderno de encargos, como foro competente, o Tribunal Judicial da comarca de Leiria.
3. A recorrente não se conforma com o decidido pelas instâncias, continuando a sustentar que o tribunal materialmente competente para conhecer da presente acção é o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, já que a 1ª Ré é uma pessoa colectiva de direito público, o processo de selecção do co-contratante rege-se por normas de direito público, o DL 197/99, de 08.06 e o contrato objecto do concurso é um contrato público, pelo que considera que o acórdão recorrido violou o disposto nas alíneas b) e e) do nº1 do artº 4º do ETAF.
Vejamos:
Nos termos do artº 212º, nº3 da CRP e do artº 1º, nº1 do ETAF, «compete aos tribunais administrativos … o julgamento das acções…. que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas».
Não estando o conceito de relação jurídica administrativa definido na lei, a definição deste conceito para delimitação do âmbito da jurisdição administrativa tem sido elaborada pela doutrina e pela jurisprudência, segundo um critério objectivo, entendendo-se, como tal, as relações jurídicas que sejam reguladas por normas de direito administrativo, ou seja, normas que atribuem prorrogativas de autoridade ou impõem deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito das relações de natureza jurídico-privada. Cf. neste sentido, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 2ª ed., 1994, p.137-13, Mário Aroso de Almeida e Carlos e Fernandes Cadilha, CPTA anotado, 2ª edição revista, 2007, Introdução, p.17 e 8 e 149, Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 4ªed., p.55. e, por exemplo, o ac. STA de 16.12.09, rec. 15/e do T. Conflitos de 12.11.09, P.16/09.
Logo, estão excluídas, por regra, da jurisdição administrativa as relações jurídicas em que a Administração age segundo o direito privado, embora, excepcionalmente, o legislador possa estender o âmbito da jurisdição a outras relações jurídicas, ou até restringi-lo, atribuindo a outra jurisdição o conhecimento de determinadas relações jurídicas administrativas.
O artº 1º do actual ETAF veio reiterar o referido preceito constitucional e o artº 4º do mesmo diploma veio delimitar o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, densificando o conceito de relação jurídica administrativa constante daquele artº 1º e, simultaneamente, ampliando ou restringindo o âmbito dessa jurisdição.
Assim e, por exemplo, a mesma abrange hoje algumas realidades que dela estariam, em princípio, excluídas, como é o caso da apreciação, excepcionalmente é certo, de contratos de direito privado, pelos tribunais administrativos, nos termos previstos nas alíneas b) e e) (últimos segmentos), do nº1 do artº 4º (a citada alínea e) em conjugação ainda com o artº 100º, nº3 do mesmo diploma).
4. Está em causa nos autos a validade de um acto pré-contratual, um acto de adjudicação de um contrato de aquisição de carros mistos para distribuição de refeições a doentes, alegadamente ilegal, praticado pelo Hospital de C... E.P.E., ora recorrido, no âmbito de um concurso público, por si aberto em 07.04.2008.
O Hospital de C... EPE é uma entidade pública empresarial (E.P.E.) e, portanto, uma pessoa colectiva de direito público, integrada no Serviço Nacional de Saúde (SNS). (cf. artº 1º e 2º do DL 93/2005, de 07.06, artº 1º, nº 3 e artº 5º, nº1 do DL 233/2005, de 29.12, art 18º do anexo da Lei nº27/2002 de 08.11 e também o artº 23º, nº1 do DL 559/99, de 17.12, alterado pelo DL 300/2007, de 23.08).
Como entidade pública empresarial integra o sector público empresarial do Estado, sendo qualificada como empresa pública (artº 3º, nº2 do DL 558/99, de 17.12).
Defende a recorrente nos autos que o presente litígio é da competência dos tribunais administrativos e não judiciais, como se decidiu, porque o anúncio do concurso em causa, previa a celebração de um contrato público, pelo que estaríamos perante um litígio versando uma relação jurídica administrativa e, portanto, da competência dos tribunais administrativos, nos termos do artº 4º, nº1, b) do ETAF.
Contrato público é um contrato em que, pelo menos uma das partes, é um «organismo de direito público» (conceito comunitário que veio substituir o tradicional conceito formal de Administração Pública, assente na personalidade jurídica de direito público, por um conceito mais abrangente, de cariz substancial e funcional, onde se incluem também as chamadas entidades privadas de «mão pública» Nos termos do do artº 1º, nº9 da Directiva nº204/18/CE do PE e do Conselho, de 31.03.2004, «por organismo de direito público entende-se qualquer organismo, a) criado para satisfazer especificamente necessidades de interesse geral com carácter não industrial ou comercial, b) dotado de personalidade jurídica, c) cuja actividade seja financiada maioritariamente pelo Estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público; ou cuja gestão esteja sujeita a controlo por parte deste último; ou em cujos órgãos de administração, direcção ou fiscalização mais de metade dos membros sejam designados pelo estado, pelas autarquias locais ou regionais ou por outros organismos de direito público), independentemente da designação e natureza desse contrato (vide hoje a definição de contrato público constante do nº2 do artº 1º do novo Código dos Contratos Públicos, aprovado pela Lei 18/2008, de 29.01).
Portanto, um contrato público pode ser um contrato administrativo, se versar sobre uma relação jurídica regulada por normas de direito público, ou um contrato de direito privado, se versar sobre uma relação jurídica regulada por normas de direito privado, denominando-se público, apenas porque uma das partes contratantes é um ente público, na já referida acepção.
Ora, como se verá de seguida, o contrato de aquisição de bens objecto do concurso aqui em causa não se rege por normas de direito público, mas sim por normas de direito privado.
5. Com efeito, nos termos do artº 5º, nº2 do DL 233/2005, que transformou a 1ª Ré numa E.P.E. «os hospitais E.P.E. regem-se pelo regime jurídico aplicável às entidades públicas empresariais, com as especificidades previstas no presente decreto lei e nos seus Estatutos constantes dos anexos I e II, bem como nos respectivos regulamentos internos e nas normas em vigor para o Serviço Nacional de Saúde que não contrariem as normas aqui previstas
E nos termos do artº 13º do referido DL 233/2005, preceito ainda em vigor à data da abertura do concurso (posteriormente revogado pelo artº 14º do DL 18/2008, de 29.01, que aprovou o Código dos Contratos Públicos):
«1. A aquisição de bens e serviços e a contratação de empreitadas pelos hospitais E.P.E. regem-se pelas normas de direito privado, sem prejuízo da aplicação do regime de direito comunitário relativo à contratação pública.
2. Devem os regulamentos internos dos hospitais E.P.E. garantir o disposto no número anterior, bem como, em qualquer caso, o cumprimento dos princípios gerais de livre concorrência, transparência e boa gestão, designadamente a fundamentação das decisões tomadas». (negritos nossos)
Por sua vez, o regulamento interno do ora recorrente, relativo à aquisição ou locação de bens, serviços e empreitadas de obras públicas, aprovado por deliberação do seu conselho de administração de 12.06.2003 e junto como documento nº1 com a contestação, que segundo o recorrido ainda se mantinha em vigor à data da abertura do concurso em causa, dispõe no ponto 1 das Normas Gerais, que «A contratação da locação ou aquisição de bens e serviços rege-se pelas normas de direito privado, sem prejuízo da aplicação das directivas comunitárias e do Acordo sobre Mercados Públicos, celebrado no âmbito da Organização Mundial de Comércio.»
Finalmente, nos termos do artº 7º, nº1, aplicável subsidiariamente às E.P.E. ex vi artº 23º, nº1 do DL 558/99, aquelas regem-se pelo direito privado, salvo no que estiver disposto neste diploma e nos diplomas que aprovaram os respectivos estatutos.
Não restam, pois, quaisquer dúvidas de que o contrato objecto do concurso aqui em causa, se rege por normas de direito privado e não por normas de direito público, pelo que as relações dele decorrentes são relações jurídico-privadas e não relações jurídicas administrativas.
Aliás, a actuação das empresas públicas, incluindo as E.P.E., segundo normas de direito público administrativo é excepcional e só se verifica quando «actuam no exercício de poderes de autoridade, atribuídos por diploma legal, em situações excepcionais e na medida do estritamente necessário à prossecução do interesse público» (cf. artº 14º, nº2 do citado DL), o que não é o caso.
Portanto, não é pelo facto de o contrato objecto do concurso em causa ser um contrato público, que o acto de adjudicação impugnado tem natureza administrativa e que a jurisdição administrativa é competente para dele conhecer, nos termos da alínea b) do nº1 do artº 4º do ETAF, como parece pretender o recorrente.
Não ocorre, pois, violação deste preceito pelo acórdão recorrido.
6. Mas, versando o presente litígio sobre questões relativas à validade de um acto pré-contratual, ele será da competência da jurisdição administrativa, independentemente da natureza do contrato, se existir lei específica que o submeta ou admita que seja submetido, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.
Com efeito, dispõe o artº 4º, nº1, e) do ETAF, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto «Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.»
Este preceito suscita sérias e, aliás, reconhecidas dificuldades interpretativas, designadamente quando se refere a «lei específica que os submeta ou admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público
Esta exigência compreende-se sobretudo para os contratos de direito privado, já que os contratos administrativos estão, naturalmente, sujeitos a um procedimento administrativo pré-contratual.
Ora, embora o já citado artº 13º, nº1 do DL 233/2005 imponha que os Hospitais E.P.E., como é o caso da 1ª Ré, actuem segundo o direito privado, no que respeita à aquisição de bens necessários ao desenvolvimento da sua actividade, acrescenta, contudo, «sem prejuízo da aplicação do regime do direito comunitário relativo à contratação pública».
Ressalva esta que, ao tempo, se afigurava, além do mais, conveniente, já que o DL 197/99, de 08.06, que transpôs para o nosso ordenamento jurídico as directivas comunitárias em matéria de contratação pública relativa à locação e aquisição de bens móveis e de serviços, vigente à data da abertura do concurso aqui em causa, (Directivas nº93/96/CEE de 14 de Junho e 92/50/CEE, de 18 de Junho), excluía expressamente do âmbito pessoal da sua aplicação as empresas públicas (cf. seu artº 2º, nº1 b e artº 3º, a contrario), embora aquelas directivas prevaleçam, face ao primado do direito comunitário e ao efeito directo das mesmas nesta matéria Como é sabido e tem sido reafirmado pela doutrina, o conceito de «organismo de direito público» adoptado pelo DL 197/99, de 08.06 não corresponde ao conceito comunitário adoptado pelas directivas comunitárias, nem à interpretação desse conceito efectuada pelo Tribunal de Justiça (cf. o acórdão Mannesmann, de 15.01.1998, P. nºC-44/96, Colect.1998,0.I-0073), que é mais amplo que o que decorre do artº 2º e 3º daquele diploma legal, o que não invalida que o conceito comunitário prevaleça, dado o primado do direito comunitário e o efeito directo das normas relativas ao âmbito pessoal e material das directivas transpostas pelo DL 197/99, reconhecido, designadamente, pelo acórdão Togel, de 24.09.1998, P. nº C-76/97, Colect., 1998, p.I-5388. .
Assim e pese embora a referida restrição, operada pelo citado DL 197/99, no âmbito subjectivo de aplicação do regime de contratação pública comunitário, à data da abertura do concurso aqui em causa, o citado artº 13º, nº1, último segmento, do DL 233/2005, aquele regime comunitário aplicava-se às aquisições de bens efectuadas pelos Hospitais E.P.E. e, portanto, pela 1ª Ré.
Sendo tal regime aplicável aos Hospitais E.P.E., por força da lei, é irrelevante, face ao princípio da hierarquia das normas, o que a esse respeito dispunham os regulamentos internos dos Hospitais E.P.E., sendo certo que o nº2 do citado artº 13º do DL 233/2005 determina que «devem os regulamentos internos dos hospitais E.P.E. garantir o disposto no número anterior, bem como, em qualquer caso, o cumprimento dos princípios gerais de livre concorrência, transparência e boa gestão, designadamente a fundamentação das decisões tomadas.»
Aliás, o regulamento interno da 1ª Ré relativo à aquisição ou locação de bens e serviços e empreitadas de obras públicas, junto aos autos como doc. nº1 com a sua contestação e que, como resulta do ponto 6 do probatório do acórdão recorrido, se aplica ao presente concurso, por força do artº 28º do respectivo Programa de Concurso, embora fosse anterior ao DL. 233/2005, já dispunha no nº1 das «I - Normas Gerais», que «a contratação da locação ou aquisição de bens e serviços rege-se pelas normas de direito privado, sem prejuízo das directivas comunitárias…» e no nº2 das «III- Formalidades do concurso público e do concurso limitado», que «quando o concurso público envolver um valor estimado, sem imposto de valor acrescentado (IVA), igual ou superior a 249.681€ ou 162.293€, respectivamente a serviços ou bens, é obrigatório o cumprimento das Directivas 93/96/CEE, 92/50/CEE, 93/97/CEE, alteradas pela Directiva 97/52/CE.».
Portanto, não restam dúvidas que o regime de contratação pública comunitária transposto pelo DL 197/99, à data em vigor, era aplicável às aquisições de bens efectuadas pela 1ª Ré para satisfação das necessidades relacionadas com a sua actividade, ainda que regidas segundo o direito privado, não só por força do efeito directo das directivas comunitárias transpostas pelo referido diploma legal para o nosso ordenamento jurídico, mas também por força do citado artº 13º, nº1, último segmento, que admitia a sua aplicação aos Hospitais E.P.E, naquele tipo de contratação.
7. Resta, a última questão, que se prende com o âmbito objectivo de aplicação do regime de contratação pública comunitária.
Na verdade, as directivas comunitárias em matéria de contratação pública, além de um âmbito pessoal ou subjectivo de aplicação, têm também um âmbito objectivo de aplicação, ou seja, não se aplicam a todos os contratos objecto dos tipos de contratação nelas previstos, desde logo não se aplicam aos contratos nelas expressamente excluídos e àqueles cujo valor estimado pela entidade adjudicante, sem IVA, seja inferior aos limiares nelas previstos para a sua aplicação, sucessivamente revistos (artº 5º, alínea b) da Directiva 93/36/CEE, na redacção da Directiva 97/52/CE e 7º b) e 9º, da Directiva 2004/18/CE).
Portanto, há que verificar se o contrato público objecto do concurso aqui em causa está abrangido no âmbito objectivo de aplicação das referidas directivas, ou seja, se não é expressamente excluído do âmbito da sua aplicação, designadamente face ao seu valor, pois se o próprio regime comunitário excluir o contrato em causa da sua aplicação, excluída ficará também, a nosso ver, a competência da jurisdição administrativa, porque então não há lei específica que o submeta ou admita que ele seja submetido a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, como exige o citado artº 4º, nº1 e) do ETAF.
Ora, foi considerado pelo acórdão recorrido, aqui sem qualquer contestação, que o valor estimado do contrato de aquisição em causa é de 195.196,00€ ou de 203.696,00€ (consoante se considere ou não o valor da retoma que foi deduzida), pelo que é inferior ao limiar estabelecido para os contratos públicos no artº 7º b) da Directiva nº2004/18/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31.03.2004 (de 211.129,00 €, à data da abertura do contrato aqui em causa, em 03.04.2008 e de 206.000,00€, posteriormente).
Mas, assim sendo, embora se entenda, pelas razões expostas no ponto 6 supra, que a 1ª Ré está inequivocamente abrangida pelo âmbito pessoal de aplicação desse regime de contratação pública comunitária, não há, no caso concreto, lugar à aplicação desse regime, porque o contrato em causa, face ao seu valor, está efectivamente excluído, do âmbito objectivo da sua aplicação.
É que o artº 13º, nº1 do DL 233/2005, ao determinar, na parte final, a aplicação aos Hospitais E.P.E., do regime de contratação pública comunitária, no que respeita à aquisição de bens, não operou qualquer alteração nesse regime, pelo que o mesmo só será aplicável, a nosso ver, se o contrato em causa cair no âmbito dessa aplicação, o que, como vimos não é o caso.
Não ocorre, pois, também violação pelo acórdão recorrido do artº 4º, nº1 e) do ETAF, pelo que o mesmo é de manter.
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IV - DECISÃO
Termos em que acordam os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 14 de Julho de 2010. – Fernanda Martins Xavier e Nunes (relatora) – Maria Angelina Domingues – Alberto Augusto Andrade de Oliveira.