Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0299/18
Data do Acordão:04/12/2018
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:RECURSO DE REVISTA
DISCIPLINAR
PRESCRIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P23169
Nº do Documento:SA1201804120299
Data de Entrada:03/16/2018
Recorrente:A...
Recorrido 1:MAI
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA FORMAÇÃO DE APRECIAÇÃO PRELIMINAR DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO
A…………… intentou, no TAF de Loulé, acção administrativa especial contra o Ministério da Administração Interna (MAI), pedindo a declaração de nulidade, ou a anulação, da pena disciplinar de demissão que lhe foi aplicada no âmbito do processo disciplinar que lhe foi instaurado, em 11 de Janeiro de 2017, e a condenação da entidade demandada a reconstituir-lhe a carreira que teria se aquela pena não tivesse sido aplicada.

O TAF julgou o pedido parcialmente procedente.

O MAI apelou para o TCA Sul e este, concedendo provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida e ordenou a baixa dos autos ao TAF para apreciação dos vícios que não haviam sido conhecidos.

É dessa decisão que vem a presente revista (art.º 150.º do CPTA).


II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o STA «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. Resulta dos autos que, em 31/07/2011, foi levantado, contra o Recorrente, auto de notícia por violência doméstica e que com base neste o Comandante do Comando Distrital de .….. determinou, em 31/08/2011, a instauração de processo disciplinar o qual veio a ser suspenso por decisão da mesma autoridade com fundamento na inexistência, naquele momento, de elementos de prova suficientes para deduzir acusação e por correr termos no processo crime pelos mesmos factos.
Em 13/04/2012 o Recorrente foi condenado no mencionado processo pelo crime de violência doméstica em 3 anos de prisão, cuja execução foi condicionalmente suspensa, condenação essa que foi junta ao processo disciplinar em 25/03/2013. Em 14/07/2014, foi deduzida a respectiva acusação a qual foi notificada ao Recorrente em 22/08/2014.
Todavia, só em 11/01/2017, é que a Sr.ª MAI aplicou ao Recorrente a pena de demissão – o acto impugnado.
Perante esta factualidade o TAF julgou prescrito o direito da entidade demandada a sancionar o Recorrente pela seguinte ordem de razões:
“Deve, pois, considerar-se que, quanto ao prazo limite de duração do procedimento após a sua instauração, por não existir no Regulamento Disciplinar nenhuma regra que regule o caso, se verifica uma situação de “falta ou omissão” que, caso, acabou por ser revelada pela própria criação da norma do artigo 6.°, n.º 6, do Estatuto Disciplinar (Onde se prescreve: “O procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final.”); e que esta “falta ou omissão” convoca a aplicação subsidiária da solução normativa estabelecida na lei geral.
E sendo assim, como julgamos, a norma (adjectiva) contida no n.º 6 do artigo 6.° do Estatuto Disciplinar, ao regular o prazo máximo de duração do “processo disciplinar” após a sua instauração - com o decurso do qual o arguido adquire o direito a não ser sancionado disciplinarmente ou a não cumprir a sanção que entretanto lhe tenha sido aplicada (mas não notificada) - é, na falta de uma norma que revele que é outra a vontade do legislador, subsidiariamente aplicável por remissão do artigo 66.° do Regulamento Disciplinar.

5. Sustenta a entidade demandada que, por força do disposto no artigo 55.°, n.º 2, do Regulamento Disciplinar, é aplicável ao procedimento disciplinar em causa o prazo de prescrição estabelecido na lei penal para o crime de violência doméstica, e concretamente o prazo prescricional de 15 anos (o prazo normal de 10 anos acrescido de metade), nos termos que resultam conjugadamente dos art.ºs 118.°, n.º 1, alínea b), 152.° e 121.°, n.º 3, do Código Penal, e não o prazo de 18 meses previsto no artigo 6.°, n.º 6, do Estatuto Disciplinar.
Porém, como julgamos, este prazo de 18 meses previsto no n.º 6 do artigo 6.° do Estatuto Disciplinar é autónomo e independente do prazo normal de prescrição que se encontra fixado, nesse mesmo Estatuto, nos n.ºs 1 e 3 do mesmo artigo 6.° e que, no Regulamento Disciplinar, corresponde aos n.ºs 1 e 2 do artigo 55.° (tal como é autónomo do prazo normal de prescrição o prazo de curta duração contado do conhecimento da falta pela entidade com competência disciplinar previsto no n.º 2 deste artigo 6.° ou no n.º 3 do artigo 55.° do Regulamento Disciplinar, o qual é igualmente aplicável mesmo quando a infracção seja qualificada também como infracção penal).
Deste modo, mesmo que a infracção disciplinar constitua ilícito penal, o procedimento disciplinar prescreverá por efeito do decurso de qualquer dos prazos de prescrição legalmente previstos – aquele que primeiramente ocorrer - contados a partir dos momentos que lhes estão pressupostos e que também eles são diferentes: (i) o prazo normal de prescrição de três anos ou, se superior, correspondente ao do procedimento criminal, contado da data em que a infracção foi cometida (artigo 55.°, n.ºs 1 e 2, do Regulamento Disciplinar), (ii) o prazo de três meses contado a partir do conhecimento da falta pela entidade com competência disciplinar (art.º 55.°, n.º 3, do Regulamento Disciplinar) e (iii) o prazo de 18 meses contado da data da instauração do procedimento (artigo 6.°, n.º 6, do Estatuto Disciplinar).
E sendo assim, o prazo normal de prescrição (que neste caso é alargado porque a infracção constitui também ilícito penal a ilicitude penal) que se conta da data em que a infracção foi cometida, não exclui, não consome, nem se sobrepõe ao prazo máximo de duração do procedimento que se inicia a partir da sua instauração, à contagem do qual é absolutamente indiferente a data em que os factos foram praticados.

E nessa medida, este prazo de 18 meses que o legislador entendeu ser o razoável e o adequado para os serviços concluírem o procedimento administrativo de natureza sancionatória depois de o mesmo ser instaurado - salvaguardando o tempo de suspensão em que, por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar - não deve convocar nenhuma valoração ou ponderação sobre a natureza criminal dos factos em discussão: ele é aplicável, como prazo de natureza adjectiva, independentemente da gravidade e da censura que possa merecer a infracção, e é igualmente independente da sanção penal a que o arguido foi ou possa vir a ser sujeito pela prática dos mesmos factos (cfr. art.º 37.° do Regulamento Disciplinar).
Este prazo previsto no artigo 6.°, n.º 6, do Estatuto Disciplinar é, pois, aplicável, sem distinções ou restrições, independentemente de a infracção disciplinar constituir simultaneamente ou não ilícito penal (cfr. acórdão do TCA Sul, de 16.03.2017, no processo n.º 999/16.5BESNT, o qual, debruçando-se sobre um caso com contornos idênticos ao presente, embora com fundamentação não coincidente, afastou o entendimento também nestes autos propugnado pela entidade demandada no sentido de que o prazo máximo de duração do procedimento disciplinar era de 15 anos).

6. No caso em concreto, este prazo de 18 meses previsto no artigo 6.°, n.º 6, do Estatuto Disciplinar - que, como acima concluímos, é subsidiariamente aplicável por força do artigo 66.° do Regulamento Disciplinar - (i) começou a correr a partir do dia 31 de Agosto de 2011, (ii) suspendeu-se no dia 7 de Fevereiro de 2012, a partir do qual a marcha do procedimento não pôde ter lugar, para apreciação jurisdicional no processo criminal dos factos imputados pelo arguido (artigo 6.°, n.º 7), (iii) e voltou a correr do dia 25 de Março de 2013, quando cessou a causa da suspensão (artigo 6.°, n.º 8).
E sendo assim, em 11 de Janeiro de 2017, quando foi proferida a decisão final de aplicação da pena disciplinar pela Ministra da Administração Interna (e por maioria de razão, em 10 de Fevereiro, quando o autor dela foi notificado), o procedimento disciplinar já se encontrava prescrito, por ter sido excedido o referido prazo de 18 meses.
Devia, pois, a entidade titular do poder punitivo ter declarado extinta a responsabilidade disciplinar, por efeito da prescrição do procedimento disciplinar [art.º 54.°, al.ª a), do Regulamento Disciplinar].
E porque a pena disciplinar de demissão foi aplicada ao autor quando o procedimento já estava prescrito, o acto administrativo impugnado (e suspendendo) padece de erro sobre os pressupostos e é, como tal, anulável, uma vez que foi praticado com ofensa das normas jurídicas aplicáveis, nos termos previstos no artigo 163.° do CPA (aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 7/01).
Deve, pois, sem necessidade de mais indagações, julgar-se procedente a pretensão anulatória do autor, por ter ocorrido a prescrição do procedimento disciplinar, sem que subsista interesse existe na apreciação dos demais vícios de que o acto praticado possa padecer, uma vez que a entidade demandada não pode continuar a perseguir disciplinarmente o autor - que adquiriu já o “direito” à não aplicação (e cumprimento) de pena disciplinar neste procedimento — e não pode, como tal, renovar ou substituir a decisão final punitiva.”

O MAI apelou para o TCA Sul e este concedeu provimento ao recurso e, revogando a decisão recorrida, ordenou a baixa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância para que se conhecessem dos vícios alegados que não foram apreciados. Para tanto ponderou:
No essencial, o ora recorrido, para fundamentar a invalidade do acto impugnado, veio alegar as seguintes causas de ilegalidade:
- a pena disciplinar foi-lhe aplicada quando o procedimento disciplinar já se encontrava prescrito;
- foi violado o princípio da presunção da inocência consagrado no artigo 32.° da CRP, porquanto não existiam … elementos de prova suficientes para deduzir acusação contra o arguido sem que essa realidade se tenha alterado, uma vez que, apesar de ter sido entretanto proferida decisão judicial condenatória, apenas se pode provar no processo disciplinar que essa decisão foi proferida, sendo certo que não competia ao Autor provar os factos pelos quais foi acusado;
- os factos que lhe foram imputados não inviabilizam necessariamente a manutenção da relação funcional, como erradamente se pressupôs no procedimento disciplinar ….;
- o acto impugnado padece de vício de fundamentação por ineficácia e contradição;
- o Autor não praticou os factos pelos quais foi punido disciplinarmente, existindo erro na apreciação da prova produzida;
- a pena disciplinar que lhe foi aplicada injusta e desproporcionada.
….
Da prescrição do procedimento disciplinar
O artigo 121.°, n.º 3 do Código Penal, alusivo ao prazo de prescrição criminal dispõe que “(...) a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade(…)”
Como decorre do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República n° 160/2003, …. o principio fixado no Código Penal é aplicável ao procedimento disciplinar da PSP.
Contudo, importa ressalvar que o artigo 3.° do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas (EDTQEFP) exclui do âmbito da sua aplicação os trabalhadores que possuam estatuto disciplinar especial, como sucede in casu, o mesmo se verificando com o n° 2, do artigo 2.° da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP) aprovada pela Lei n° 35/2014, de 20 de Junho, que dispõe: “A presente Lei não é aplicável aos militares das forças armadas, aos militares da Guarda Nacional Republicana e ao pessoal com funções policiais da Policia de Segurança Pública (...)”
….
Aplicando o princípio ao RDPSP, temos que o artigo 55.°, n° 1 prevê um prazo normal de prescrição da infracção disciplinar de três anos, pelo que necessariamente o prazo de prescrição do procedimento será de quatro anos e meio, valor que corresponde a uma vez e meia do valor do prazo normal de prescrição.
Importa ao caso considerar ainda o disposto no n° 2 do artigo 55.° do RDPSP, nos termos do qual as infracções constituam ilícito penal “só prescrevem, nos termos e nos prazos estabelecidos na lei penal, se os prazos de prescrição do procedimento criminal forem superiores a três anos”:
Na situação em apreço, os factos que determinaram a instauração do procedimento disciplinar e fundamentaram a acusação constituem, além de infracção disciplinar, ilícito penal, em concreto o crime de violência doméstica, o qual é punível com pena de prisão até 5 anos, correspondendo-lhe o prazo prescricional de 10 anos, nos termos das disposições conjugadas da al. b) do n° 1, do artigo 118.° do Código Penal com as al.ªs a), c) e d) do n° 1 e n°2 do artigo 152.° do mesmo diploma.
Considerando ainda que no caso sub judice houve procedimento instaurado pela prática do crime de violência doméstica, o prazo prescricional é de 15 anos, como resulta da conjugação e aplicação dos artigos 66.°, n.° 2 e 55.°, ambos da RDPSP, da al. b) do n° 1 do artigo 118.° n.º 3 do artigo 121.°, al.ªs a), c) e d) do n° 1 e n° 2 do artigo 152.º todos do Código Penal.
Assim, tendo o procedimento disciplinar sido instaurado em 31 de Agosto de 2011, de acordo com o explanado, não ocorreu a prescrição do presente processo disciplinar.
….
Em conformidade, porque …. julgada procedente a pretensão do ora Recorrido na acção principal com fundamento no alegado vício de prescrição, ora julgado improcedente, forçosamente deverão os autos baixar ao TAF de Loulé a fim de aí serem apreciados os demais vícios invocados pelo Recorrido, tanto mais que a condenação do demandado no pedido de reconstituição da carreira não pode por ora proceder enquanto tais vícios não vierem a ser apreciados.

3. A pena de demissão é a mais grave na escala das sanções disciplinares pelo que se pode afirmar estarmos em presença de caso com relevância social superior ao comum. O que aconselha a admissão desta revista já que esta Formação tem entendido que, em princípio, nos casos respeitantes à aplicação da pena de demissão se deve admitir a revista para que o STA reaprecie as questões nelas suscitadas, atento o particular impacto social que, usualmente, está ligado à aplicação das penas expulsivas. - Vide, a título de ex., os Acórdãos deste STA, de 27-02-08, P. 0145/08; de 15-10-2008, P. 0817/08 e de 01-07-2010, P. 0516/10.

Todavia, este princípio geral não funciona quando é manifesta a bondade da decisão recorrida pelo que, apesar da sua relevância jurídica e social, não é de admitir o recurso nesses casos.
Ora, não é essa a situação que se nos apresenta.
Com efeito, as instâncias divergiram na apreciação de uma questão cuja relevância jurídica é significativa sobretudo quando a sua resolução passa pela identificação da lei aplicável e tal obriga a realizar operações de alguma complexidade jurídica. E a verdade é que o fizeram justificando com desenvolvimento e plausibilidade os entendimentos que subscreveram e invocando jurisprudência em defesa dos mesmos.
Depois, partiram de diferentes concepções da prescrição que se aplicaria no caso concreto.
Daí que tudo aconselhe a que se admita o recurso.

DECISÃO.

Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Custas pelo Recorrente.
Lisboa, 12 de Abril de 2018. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.