Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01142/03
Data do Acordão:03/16/2004
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:ALBERTO AUGUSTO OLIVEIRA
Descritores:AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA.
RAZÕES HUMANITÁRIAS.
Sumário:I - Produzidas alegações sem que tenha sido em cumprida a especificação exigida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 690.º do CPC, e tendo sido ordenada a notificação e notificada a recorrente para satisfazer essa exigência, sob pena de não conhecimento do recurso na parte afectada, não há que conhecer do mesmo no sector em que, na resposta a esse convite, continuou a verificar-se falta de cumprimento da exigência em causa, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, e tudo em conjugação com o § único do artigo 67.º do RSTA;
II - A concessão de autorização de residência por razões humanitárias, nos termos do n.º 1 do artigo 8.º, da Lei n.º 15/98, supõe grave insegurança, e não "mera insegurança", sistemática violação dos direitos da pessoa e não mera ou esporádica violação desses direitos;
III - Demonstrado nos autos que a requerente tem fundado receio de regressar ao seu país, por temer pela sua vida, em virtude de ser alvo de um grupo criminoso, que já matou o seu namorado, assassinato que presenciou e do qual conhece o autor material, e revelando-se ainda nos autos que no seu país, tanto à data da sua fuga como no momento da prolação do acto de indeferimento de autorização de residência, não havia condições normais de garantia do seu direito à vida, devem julgar-se verificados os requisitos do n.º 1 do artigo 8.º, ainda que a violação dos direitos da pessoa humana não seja atribuída a uma acção directa das autoridades, antes a uma impossibilidade de as autoridades protegerem os seus cidadãos, e, no caso, a requerente, de acções determinadas de grupos criminosos organizados.
Nº Convencional:JSTA00060794
Nº do Documento:SA12004031601142
Data de Entrada:06/18/2003
Recorrente:A...
Recorrido 1:SE DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC CONT.
Objecto:DESP SE DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA DE 2003/05/22.
Decisão:PROVIDO.
Área Temática 1:DIR ADM GER - AUTORIZAÇÃO DE RESIDENCIA.
Legislação Nacional:L 15/98 DE 1998/03/26 ART8 N1.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em subsecção, na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
1.
1.1. A..., de nacionalidade jugoslava, com os demais sinais dos autos, interpõe recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário de Estado da Administração Interna, de 22 de Maio de 2003, que indeferiu o seu pedido de asilo e também não concedeu autorização de residência por razões humanitárias.
1.2. Na resposta, a autoridade recorrida pronunciou-se pelo não provimento do recurso.
1.3. Foi cumprido o artigo 67.º do RSTA.
1.4. Em alegações, e após convite para superar a omissão de especificação, concluiu:
“I - O despacho recorrido, ao não apreciar convenientemente a situação de facto e de direito, viola o disposto no art° 8° da Lei n° 15/98, de 26 de Março.
II - O despacho recorrido é, também, ilegal, ao não declarar a nulidade das últimas declarações feitas pela recorrente no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, anulando o processado posterior a tais declarações, por falta de notificação do mandatário, que, por essa omissão, não esteve presente à diligência.
III - O despacho recorrido é, ainda, ilegal ao não declarar a nulidade resultante da falta de notificação, ao mandatário da recorrente, da proposta elaborada pela Senhora Comissária Nacional -Adjunta.
IV - O despacho recorrido enferma, assim, do vício de violação de lei.
V - O despacho recorrido, ao não apreciar convenientemente a situação sócio-política no actual Estado da Sérvia-Montenegro, está a cometer um erro de facto.
VI-O despacho recorrido, ao fazer uma errada qualificação jurídica dos factos, e ao não considerar reunidos os pressupostos contidos no art° 8° da L.A.R., está, também, a cometer um erro de direito.
VII - Deve, assim, ordenar-se a anulação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que conceda asilo à recorrente, ou, pelo menos, que lhe conceda autorização de residência por razões humanitárias, atendendo à situação de instabilidade social e de insegurança generalizada que se vive, presentemente, na República da Sérvia-Montenegro, especialmente em Belgrado, situação essa que desestabiliza a recorrente e a afecta em termos psicológicos, provocando-lhe um justificado receio de regressar ao seu país, por temer pela sua vida”.
1.5. A autoridade recorrida contra-alegou, mantendo integralmente a resposta que produzira, e alinhou, depois, na peça que apresentou nos termos do artigo 690.º, n.º 5, do CPC:
“1. A recorrente, convidada a corrigir as deficiências da sua alegação, uma vez que não tinha apresentado conclusões, vem apresentar nova alegação em manifesta violação do n.º 4 do artigo 690º do CPC, nos termos do qual lhe foi dada a possibilidade de suprir a falta, ou seja, de apresentar as conclusões, de forma sintética, com indicação dos fundamentos por que pede a anulação do acto recorrido.
Por conclusões entendem-se “as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação” (Alberto dos Reis, CPC Anotado, 5º, pág. 359).
2. Como se verifica da peça apresentada pela recorrente – nova alegação e respectivas conclusões -, não foi respeitada a disposição processual que determinou o convite e, não se verificando a possibilidade de ser mandada desentranhar a nova alegação, a consequência para o incumprimento da norma permissiva do convite é aquela que resulta do n.º 3 do mesmo normativo, ou seja, a de considerar o recurso deserto.
3. A não se entender assim, então, a nova alegação não pode ser considerada, uma vez que se apresenta como alegação extemporânea, atendendo-se somente às conclusões (Ac. STJ, de 10.11.1989, BMJ n.º 391, pág. 390 e Trib. Just., 3º, pág.226).
4. Dado o que antecede, apenas nos pronunciaremos sobre as conclusões apresentadas.
5. Afirma a recorrente, nas suas conclusões I, IV, V e VI, que o despacho recorrido, ao não apreciar convenientemente a situação de facto e de direito, viola o disposto no artigo 8º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março, e que comete erro de direito ao fazer uma errada qualificação jurídica dos factos.
Tal conclusão, desacompanhada da indicação do caminho seguido para a ela chegar, não tem qualquer valor, devendo ser, desde logo, rejeitada.
Atente-se que na petição de recurso a recorrente apenas faz referência à sua discordância sobre a apreciação dos factos efectuada pela Senhora Comissária Nacional-Adjunta para os Refugiados, sem explicitar em que consiste essa discordância, pressupondo – erradamente – que deveria ser apresentada proposta diferente, ou seja, que não mantivesse o parecer no sentido do indeferimento da pretensão da requerente.
Sobre estas matérias a autoridade recorrida mantém o que levou às conclusões da sua alegação em que afirma:
«c., que a apreciação da situação sócio-política no actual Estado da Sérvia Montenegro foi feita pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras com base em documentos oficiais, cuja credibilidade não pode ser posta em causa;
d. não terem sido violados os artigos 1º e 8º, da Lei n.º 15/98, de 26 de Março;
f. que considera os factos correctamente qualificados.»
6. Relativamente às conclusões II e III, nas quais considera estar o acto recorrido afectado de nulidades, limitamo-nos a dar por reproduzido o que se disse nos nºs 12º a 16º da resposta oportunamente apresentada, repudiando a existência das referidas nulidades, como se levou à conclusão b., da alegação atempadamente apresentada.
7. A recorrente deixou cair – e muito bem – as alegadas violações dos artigos 1º e 13º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março.
8. Não se verifica a necessidade de a autoridade recorrida ampliar, como vimos, as conclusões da sua alegação, atempadamente apresentada.
Mantém-se, assim, o entendimento de que, por não se verificar qualquer dos vícios assinalados, deve o presente recurso de anulação ser julgado improcedente”.
1.6. O EMMP emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso, referindo, nomeadamente:
“Notificada nos termos e com a cominação previstos no artigo 690, n.º 4, do CPC, a recorrente veio, nas conclusões que apresentou, indicar como norma jurídica violada o artigo 8.º da Lei 15/98 de 26.03.
Em nosso entender, mostra-se assim satisfeito o ónus de alegar que lhe cumpria.
Já quanto ao mérito do recurso se nos afigura, todavia, que este não pode proceder, seja no que respeita à invocada irregularidade de natureza processual – que não ocorre porquanto ao advogado constituído apenas assistia o direito de representação da interessada nos termos gerais, seja no que respeita ao vício de violação de lei – na medida em que, pelas razões expostas pela entidade recorrida, que subscrevemos, o mesmo não pode ter-se por verificado”.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
2.
2.1. Considera-se toda a matéria documentada no processo instrutor (P.I.). Destaca-se, para melhor compreensão da decisão, o seguinte:
1 - Em 14 de Janeiro de 2002, foi registado no Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras um pedido de concessão de asilo e, subsidiariamente, um pedido de autorização de residência por razões humanitárias apresentado pela ora recorrente (fls. 1, P.I.);
2 – Em 23.01.2002, a requerente prestou declarações, no Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em que, no essencial, disse, quanto aos motivos que a levaram a abandonar a Jugoslávia e a pedir o asilo (fls. 29-35, PI):
a) Abandonou a Jugoslávia, em 01/01/02, devido ao crime, ao desemprego e à corrupção policial;
b) O ex presidente ... continua a manipular os criminosos e os polícias e o novo presidente ... ainda não conseguiu resolver os problemas;
c) Passou quase 3 anos fechada em casa com medo de ser apanhada na rua. Como a situação se mantinha o pai, que era comissário de bordo, lembrou-se de pedir ajuda a um casal português com o objectivo de a recolher;
c) Os marginais obrigavam as pessoas mais novas a prostituírem-se e a venderem droga. Caso recusassem eram levadas para os cemitérios a fim de serem agredidas, violadas e mortas;
d) O grupo de marginais, do qual fazia parte a própria polícia, foi constituído pelo ex Presidente ...;
e) O namorado foi várias vezes abordado na rua para ingressar nesse grupo e perante a sua recusa tentaram agredi-lo física e psicologicamente;
f) Por diversas vezes viu os seus amigos de infância serem maltratados, tendo alguns deles queimaduras nos braços e na barriga;
h) Foi várias vezes ameaçada pelos criminosos que faziam parte do grupo de marginais, tendo inclusivamente presenciado o assassinato do seu namorado por um elemento do grupo, que era amigo de ambos, mas que havia integrado esse grupo;
i) Quando viu o namorado morto fugiu para casa da mãe com medo que a matassem;
j) Correu a notícia que o namorado se tinha suicidado, e foi nesta altura que se apercebeu que tinha o telefone sob escuta;
k) Todos estes acontecimentos relatados se desenrolaram em Setembro de 1998;
l) Durante um ano andou escondida, a pensar para onde iria, até que decidiu, em 1999/2000, ir para casa de um amigo no Montenegro. Em determinado momento também aí viu um dos elementos do grupo de criminosos, e, com medo que a descobrissem, fechou-se em casa;
m) Decidiu vir para Portugal, por haver cá uma família que era conhecida do seu pai;
n) Se tiver de regressar, provavelmente será morta.
3 - Em 24.1.2002, foram ouvidas duas testemunhas, que são o casal que acolheu a requerente em Portugal, referindo que foram contactados telefonicamente nesse sentido pelo pai da requerente, pessoa que haviam conhecido vários anos antes (10-13 anos), por casualidade, num bar do Bairro Alto (fls. 37 e 38, P.I.);
4 - A requerente voltou a ser ouvida em 01.2.2002, dizendo, no essencial, que não recorrera a organizações de defesa dos direitos das mulheres na Jugoslávia dado entender que estas nada podiam fazer por ela (fls. 39, PI)
5 - Por decisão de 8 de Fevereiro de 2002, do Director-Geral Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no uso de delegação de competência, o pedido de asilo foi admitido nos termos do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.° 15/98, de 26 de Março, determinando-se o seguimento de instrução conforme os artigo 21.º e segts da mesma Lei (fls. 64, P.I.);
6 - Face a tal decisão, foi emitido à requerente a autorização de residência provisória (fls. 68);
7 - A requerente prestou novas declarações no Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, em 25.02.2002, declarações em que, no essencial, reitera o que declarara antes, precisando as circunstâncias da morte do seu namorado, em Zemun (Belgrado), a sua passagem pelo Montenegro e o porquê de não ter denunciado o caso às autoridades nem de a sua família ou a família do namorado o ter feito, tudo consubstanciado no medo de represálias (fls. 69-70);
8 - Em 7.5.02, a requerente fez juntar, entre outros documentos, fotocópia da certidão de óbito do companheiro, anúncios de jornal alusivos à morte do mesmo, fotografia dela e do companheiro (fls. 82 e segts, P.I.);
9 - A fls. 123 e segts., foi prestada a Informação n.º 356/GAR/02, pretendendo ilustrar a situação na Jugoslávia tendo os dados sido recolhidos do “Country Reports on Human Rights Practices 2001”, do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Nessa informação, os problemas de perseguição estão localizados em relação a etnias ou minorias étnicas ou religiosas. No que toca ao tráfico de pessoas relata-se que “A Sérvia é um país de trânsito e numa dimensão mais pequena um país de origem e destino de mulheres e raparigas para outras parte da Europa para serem exploradas sexualmente” (fls. 131).
10 - A fls. 133, foi junta a resposta dada por “ASTRA”, organização de defesa dos direitos das mulheres na Jugoslávia, face ao questionário colocado pelo GAR. É do seguinte teor:
“1a Questão: Têm conhecimento se existem organizações de criminosos espalhadas pelo país e que recrutam jovens para a prática da prostituição ou para actividades criminosas?
Resposta: A máfia de Zemun é muito conhecida na Sérvia e em Belgrado. Nunca ouvi falar de organizações criminais mas que criminosos se associam para recrutar jovens raparigas a fim de as forçarem à prostituição.
2a Questão: Considera que estas jovens raparigas conseguem obter algum tipo de ajuda das autoridades públicas ou privadas da Jugoslávia?
Resposta: Sim. As instituições estão a desenvolver mecanismos de prevenção e de protecção para estas situações.
3a Questão: Considera credíveis as queixas apresentadas pela requerente, quanto ao facto de as autoridades estarem envolvidas com os criminosos?
Resposta: Sempre, em todos os lugares há policia envolvida em actividades criminosas. A situação está a mudar mas muito lentamente. Alguns estão envolvidos, outros não. O Governo está a tentar controlar e a prevenir estas actividades.
4a Questão: Considera haver alguma autoridade para quem a requerente possa recorrer ou pedir ajuda?
Resposta: Uma coisa é certa, se ela já está envolvida no circulo, a máfía sabe onde vive e quem são os seus pais, etc. Não há instituição que a possa ajudar se os criminosos a quiserem encontrar”;
11 - Em 21.10.2002, o pai da requerente foi ouvido na chancelaria da secção consular da Embaixada de Portugal em Belgrado (fls 139). Essas declarações coincidem, nos pontos essenciais, com as declarações da requerente, referindo, entre o mais:
“que a sua filha (...) foi forçada a sair da Jugoslávia, após ter aqui vivido escondida sob constante terror, por ter presenciado o assassinato do seu namorado e reconhecido o assassino. (...)
Referiu a existência de casos semelhantes em Zemun, nunca esclarecidos, por imposição e vontade da polícia local. (...). referiu que apresentara queixa no Outono de 1998, e que a mesma apenas se revestiu de forma verbal, por exigência policial”;
12 - Em 9.12.2002, a requerente foi ouvida novamente (fls. 150-152, P.I.), reiterando, no essencial, as circunstâncias da sua vida, após a morte do namorado, como se foi escondendo em Belgrado, porque foi para o Montenegro - “pensava que lá poderia encontrar mais segurança”, e ainda:
“No Verão de 1999, alguém foi a minha casa, identificou-se como sendo da polícia, revistaram a casa, levaram os meus documentos, fotografias e agendas onde eu tinha número de telefone. Não me levaram porque nessa altura eu já estava no Montenegro. Depois disto o meu nome apareceu nos jornais como tendo sido responsável pela morte de um dos indivíduos do grupo que matou o meu namorado, que entretanto fora morto por alguém.
Isto aconteceu porque eles nunca me conseguiram apanhar, por isso, recorreram a mais esse esquema para me tentar culpar e apanhar”.
Acrescentou que pensava que essas notícias haviam sido publicadas no jornais “BLIC” e NOVOSTI, no final de Julho de 1999. Mas, questionada sobre se alguma vez tinha lido tais notícias disse que não, que o pai é que lhe tinha dito ter lido;
13 - A 8 de Janeiro de 2003 (fls. 153, P.I.), foi novamente ouvida, tendo dito que não via possibilidades de documentar as ditas notícias;
14 - Em 25.3.03, foi junto ao processo instrutor ofício da secção consular da embaixada de Portugal em Belgrado, informando que nos jornais BLIC e NOVOSTI não haviam sido encontradas notícias alusivas à requerente (fls. 165);
15 - Em 31 de Março de 2003, a Comissária Nacional Adjunta para os Refugiados elaborou um projecto de proposta, ao abrigo do artigo 23.º, n.º 1, da Lei n.º 15/98 (fls. 170 a 197 do PI), que termina do seguinte modo:
“- Por não se encontrarem preenchidos os pressupostos do art. 1.º da LAR – Lei n.º 15/98 de 26 de Março, propõe-se o indeferimento do pedido de asilo.
- Por não se verificarem os pressupostos contidos no art. 8.º da LAR – Lei n.º 15/98 de 26 de Março, propõe-se que não seja concedida à cidadã (...) autorização de residência por razões humanitárias”;
16 - Notificada, a requerente pronunciou-se, em 29.4.03 (fls. 200 a 212 do PI), juntando uma série de documentos jornalísticos, na maioria relativos ao assassinato, em 13 de Março de 2003, do primeiro-ministro ... (fls. 213-236), e concluindo:
“Nestes termos, e para finalizar, requere-se a V. Exa se digne reapreciar o projecto de proposta elaborado nos autos, apresentando a sua Exa. o Sr. Ministro uma proposta fundamentada no sentido de:
a) Ser decretada a nulidade das últimas declarações da requerente, sendo as mesmas desentranhadas dos autos, por não ter sido devidamente notificado o mandatário constituído, por carta registada, nos termos legais aplicáveis, para comparecer à diligência;
b) Ser anulado todo o processado posterior a tais declarações, aproveitando-se, no entanto, eventuais actos que possam não ter sido afectados pela nulidade invocada;
c) ser concedido á requerente o direito de asilo, nos termos peticionados, ou, se assim não for entendido, ser-lhe concedida a autorização de residência por razões humanitárias, com todas as legais consequências, como é de justiça”.
17 - A 5 de Maio de 2003, a Comissária Nacional Adjunta para os Refugiados elaborou a proposta prevista no artigo 23.º, n.º 4, da Lei n.º 15/98 (fls. 238 a 242 do PI), do seguinte teor:
“Questão Prévia
Nas alegações apresentadas a fls. 200 e segs., entre outras questões suscitadas, requer-se que «(...) seja declarada a nulidade do procedimento administrativo, com a consequente anulação do processado posterior às últimas declarações da requerente com todas as legais consequências, nomeadamente a repetição dos actos feridos de irregularidade», uma vez que, (...) «As últimas declarações da requerente foram prestadas sem o conhecimento do seu mandatário, que, por essa razão, não esteve presente à diligência», (...) «As aludidas declarações foram, prestadas à completa revelia do advogado constituído nos autos, o que afecta irremediavelmente a validade do depoimento prestado»", citamos.
No caso sub judice, não se vislumbra a existência de quaisquer nulidades, conforme se alega.
Com efeito, os particulares se assim o entenderem conveniente, podem constituir mandatário, para os representar no procedimento administrativo, porém tal não significa que a presença do mandatário seja obrigatória, neste procedimento.
Aliás, veja-se o artigo 52° do C.P.A que refere, e passamos a citar «Todos os particulares têm o direito de intervir pessoalmente no procedimento administrativo ou de nele se fazer representar ou assistir, designadamente através de advogado ou solicitador».
No caso em análise, verifica-se que a requerente A... prestou declarações no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, por diversas vezes, liberta de qualquer compressão e no uso pleno da sua vontade, não manifestando qualquer desejo de só o fazer na presença de um advogado, designadamente no referido dia 9 de Dezembro de 2002, não havendo por isso quaisquer nulidades a apontar no âmbito do processo.
I - Relatório
As alegações apresentadas pela requerente A..., a fls. 200 e segs. não carrearam para o processo quaisquer novos elementos que pudessem pôr em crise a proposta formulada.
Assim sendo, entendemos manter a proposta nos seus precisos termos:
- Por não se encontrarem preenchidos os pressupostos do art. 1.º da LAR – Lei n.º 15/98 de 26 de Março, propõe-se o indeferimento do pedido de asilo.
- Por não se verificarem os pressupostos contidos no art. 8.º da LAR – Lei n.º 15/98 de 26 de Março, propõe-se que não seja concedida à cidadã A... autorização de residência por razões humanitárias”;
18 - Em 22 de Maio de 2003, o Secretário de Estado da Administração Interna produziu o acto impugnado, do seguinte teor (fls. 251, P.I.):
“No uso da competência que me foi delegada por Despacho (...), com base na Proposta do Comissariado Nacional para os Refugiados e nos termos do art. 23.º, n.º 5, da Lei n.º 15/98 de 26 de Março, não é concedido asilo à cidadã A... de nacionalidade jugoslava por não se encontrarem preenchidos os pressupostos do art. 1.º da mesma Lei.
Com base na mesma proposta, e por não se verificarem os pressupostos contidos no art.º 8.º da supra mencionada Lei, não é concedida Autorização de Residência por razões humanitárias à cidadã acima identificada.
Nos termos do artigo 25.º da mesma Lei, a cidadã pode permanecer em território nacional durante um período de 30 dias, findo o qual fica sujeito à legislação sobre estrangeiros”.
2.2.
2.2.1. Delimitação do âmbito do recurso.
2.2.1.1. A recorrente, notificada para alegações, apresentou uma peça do seguinte teor:
“A... , recorrente nos autos à margem referenciados vem dar como reproduzidas as alegações constantes do seu requerimento de interposição de recurso, mantendo as respectivas conclusões, nos precisos termos em que foram elaboradas” (fls. 40).
Face a esta peça, foi proferido o despacho de fls. 45v., do seguinte teor:
“No requerimento de fls. 40 o recorrente vem dar como reproduzidas, como alegações, o constante do requerimento de interposição de recurso e suas conclusões. Porém, estas conclusões, para o efeito de ser consideradas conclusões de alegações não preenchem os requisitos de especificação exigidos pelo n.º 2 do artigo 690.º do C.P. Civil.
Assim, como promovido, convida-se a recorrente a suprir a omissão, sob pena de não conhecimento do recurso, conforme o n.º 4 do mesmo artigo 690.º”.
Em resposta a este convite, a recorrente não se limitou a apresentar conclusões, antes, apresentou uma peça completa.
Ora, o corpo dessa peça não poderá ser considerado, pois já se havia admitido como alegações o requerimento de fls. 40, o qual, por sua vez, remetera para o articulado do requerimento de interposição de recurso contencioso. Aliás, se assim se não tivesse entendido, o recurso teria sido julgado deserto por falta de alegações (artigo 690.º, n.º 3 do CPC).
Em consequência, apenas se haverá de considerar a nova peça na sua parte conclusiva.
2.2.1.2. Quanto às conclusões.
2.2.1.2.a) No que toca à matéria das conclusões II, III e IV, alegação de vício de violação de lei por falta de notificação do mandatário para as declarações da requerente e por falta de notificação do mandatário da proposta elaborada pela comissária nacional adjunta, não vem indicada qualquer norma jurídica violada.
Não foi, assim, cumprida a especificação exigida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 690.º do CPC, pelo que, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, e tudo em conjugação com o citado § único do artigo 67.º do RSTA, não se conhece do recurso nessa parte.
2.2.1.2.b) No respeitante às conclusões I, V, VII e VII, a recorrente parece querer atacar o despacho impugnado tanto no segmento em que não concede asilo como no segmento em que não concede autorização de residência por razões humanitárias.
Ora, recorde-se o que respeita ao primeiro segmento:
“No uso da competência que me foi delegada por Despacho (...), com base na Proposta do Comissariado Nacional para os Refugiados e nos termos do art. 23.º, n.º 5, da Lei n.º 15/98 de 26 de Março, não é concedido asilo à cidadã A... de nacionalidade jugoslava por não se encontrarem preenchidos os pressupostos do art. 1.º da mesma Lei”.
O acto funda-se, pois, no artigo 1.º da Lei n.º 15/98.
A recorrente não indica nas conclusões nem a violação desta norma, nem que esta norma devesse ter sido interpretada e aplicada de modo diverso, nem erro na determinação da norma aplicável.
Assim, não cumpriu, também nesta parte as especificações exigidas no n.º 2 do artigo 690.º do CPC, pelo que, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, e tudo em conjugação com o citado § único do artigo 67.º do RSTA, não se conhece do recurso nessa parte.
Resta, pois, considerar o recurso no que toca ao 2.º segmento do acto, cujo teor se recorda:
“No uso da competência que me foi delegada por Despacho (...), com base na Proposta do Comissariado Nacional para os Refugiados e nos termos do art. 23.º, n.º 5, da Lei n.º 15/98 de 26 de Março, (...)
Com base na mesma proposta, e por não se verificarem os pressupostos contidos no art.º 8.º da supra mencionada Lei, não é concedida Autorização de Residência por razões humanitárias à cidadã acima identificada”.
2.2.2. Vem cominada ao acto a violação do artigo 8.º da Lei n° 15/98, de 26 de Março, e só do n.º 1 do mesmo se pode tratar, pois, os números 2, 3 e 4 cuidam já da modalidade e formalismo da autorização, concedida que seja.
Dispõe o n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 15/98:
“1 – É concedida autorização de residência por razões humanitárias aos estrangeiros e apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 1.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, por motivo de grave insegurança devida a conflitos armados ou à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifiquem”.
Dois dos elementos da previsão desta norma podem, desde já, considerar-se não violados pelo acto impugnado. Trata-se do impedimento de regresso e da existência de conflitos armados. Na verdade, não foi invocada pela requerente, ora recorrente, como fundamento do seu pedido, nem o impedimento de regresso nem a existência de conflitos armados.
Por isso, impõe-se observar, apenas, se houve violação da norma pelo acto, na parte em que entendeu não verificado o sentimento de impossibilidade de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, por motivo de grave insegurança devida à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifiquem.
Registe-se que não basta, para a autorização de residência por razões humanitárias, que o interessado se sinta impossibilitado de regressar ao seu país devido a “mera” insegurança. Exige-se que tal sentimento resulte de “grave” insegurança”;
Também não basta a “mera” violação dos direitos humanos, antes é necessário o registo de “sistemática” violação desses direitos.
Trata-se, portanto, e nuclearmente, de um problema de avaliação da situação.
2.2.2.1. O acto recorrido fundamentou-se na avaliação constante do projecto de proposta elaborado em 31 de Março de 2003, pela Comissária Nacional Adjunta para os Refugiados pela Comissária, reiterada na proposta final, proposta prevista no artigo 23.º, n.º 4, da Lei n.º 15/98.
Alicerçou-se o projecto, nomeadamente, em que:
“(...)
Em nosso entender, não se vislumbram razões subjectivas bastantes que justifiquem a concessão da autorização de residência por razões humanitárias, à cidadã A....
Assim sendo, e tendo ainda em conta os contornos individuais do caso em análise, já descritos, consideramos que a requerente não apresenta fundamentos válidos que demonstrem que a sua esfera pessoal poderá de facto vir a ser afectada por uma situação violadora dos seus direitos fundamentais, de modo a impossibilitá-la de regressar ao seu país de origem e, por outro lado, devemos considerar que não existe uma situação de conflito ou de violação sistemática dos direitos humanos, na Jugoslávia.
Na verdade, não pode concluir-se pela existência de factos objectivos suficientemente graves, para pôr em perigo a vida, a integridade física, ou a liberdade pessoal da requerente.
Na verdade, não se pode falar da existência de um clima de grave insegurança a ponto de justificar, por parte da requerente um fundado receio ou uma impossibilidade de regresso à Jugoslávia.
Assim, atenta a falta de credibilidade do relato apresentado pela requerente, a situação no país, podemos concluir que não existem elementos que demonstrem que a esfera pessoal da requerente poderia vir a ser afectada, de modo a impossibilitá-la de regressar a esse país e a ponto de justificar o enquadramento do caso no regime previsto no art°.8°. da lei 15/98 de 26 de Março.
Na verdade a situação da requerente não é susceptível de enquadramento na disposição prevista no artigo 8° da Lei n.° 15/98 de 26 de Março.
Registe-se mais uma vez, que face às circunstâncias, em que viajou para Portugal, - repare-se que a requerente saiu normalmente da Jugoslávia, sem qualquer reparo por parte das autoridades, não se mostra plausível que a esfera pessoal da requerente possa já ser afectada por uma situação violadora dos direitos fundamentais, de modo a impossibilitá-la a regressar.
Por outro lado, atenta a situação de pacificação a que se assiste actualmente na Jugoslávia, não se encontram fundamentos válidos, que demonstrem que a sua esfera pessoal poderá vir a ser afectada por um conflito armado generalizado ou pela prática generalizada de violações dos direitos fundamentais, de modo a impossibilitá-la de regressar ao seu país. Com efeito, de acordo com a Jurisprudência do STA, o sentimento de insegurança previsto no artigo 8° tem de assentar em factos objectivos, suficientemente graves para pôr em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade pessoal do interessado. Além disso, têm de ser factos que digam respeito à sua pessoa, avaliados pelos padrões de um homem médio e não nos termos subjectivos da requerente”.
Após este projecto de decisão, a requerente, na sua pronúncia nos termos do n.º 3 do artigo 23.º da Lei 15/98, veio juntar novos documentos, tendentes a revelar a situação de insegurança existente em Belgrado, e expôs, entre o mais:
“43º) Todas as notícias (que oferecem toda a credibilidade) referem uma ligação directa entre o crime organizado e o antigo poder político.
44º) Os relatos jornalísticos dão-nos conta de uma herança verdadeiramente insustentável deixada pelo antigo regime. As máfias de leste continuam a actuar em todo o território (...)
45º) Os grupos mafiosos actuam de forma concertada tanto em Belgrado como em Zagreb, explorando o narcotráfico, redes de prostituição e negócios de vendas de armas. É pois, natural que a requerente tenha receio de voltar ao seu país, uma vez que já teve problemas como esses grupos do crime organizado, aquando da morte do seu namorado (...).
46°) Foram precisamente estes grupos de crime organizado, com especial referência ao grupo ou clã de Zemun (onde nasceu e viveu a requerente) que assassinaram o primeiro-ministro ... e ameaçaram de morte o primeiro-ministro croata ..., como forma de impedir que continue o combate ao crime, que tem sido posto em prática pelo actual governo sérvio-montenegrino. Estes e outros atentados não têm propriamente conotação política, verificando-se, antes, um aproveitamento político de uma situação que pertence ao foro criminal. A promiscuidade é, de facto, grande e não se torna fácil estabelecer a fronteira dos crimes de delito comum e dos crimes de natureza política, na opinião dos analistas. A imprensa refere que qualquer actuação política no sentido de combater as aludidas máfias tem forte oposição destas e desencadeia uma onda de actos criminosos, que passa pela execução de homicídios de governantes, se necessário for, como foi o caso de ....
47°) Alguns relatos fazem também referência a colaboradores do aludido "clã ou grupo de Zemun" dentro da polícia servia e na própria magistratura (Cfr. Doc. 18)
48°) Também tem sido referenciado que a morte do primeiro-ministro ... teve por finalidade provocar o caos e dificultar o combate à criminalidade, o que demonstra o verdadeiro poder que estes grupos ainda têm. (Cfr. doc. 5)
49°) Ora, quando estamos perante o crime organizado, que tem como principais "chefes" figuras ligadas à polícia, ao antigo governo e à magistratura, encontrando-se, ainda, muitos deles em funções, estamos perante uma sociedade ainda não democrática, com graves problemas de instabilidade social e sem perspectivas de poder, a curto prazo, ser considerada uma sociedade segura.
50°) Não podem, também, restar dúvidas de que as actuações criminosas, quando não são eficazmente controladas e reprimidas pelo poder político, muito embora se façam esforços nesse sentido, representam uma ameaça aos mais elementares direitos dos cidadãos e constituem uma manifesta violação de direitos humanos.
51°) É a esta sociedade, ou a este país, que a requerente tem receio de regressar, por já ter tido problemas com os grupos mafiosos (de que fazem parte elementos da polícia ainda não afastados) que lá operam.
52°) Por isso, qualquer decisão de um estado ocidental que dê origem, ou possibilite, o retorno de um cidadão requerente de protecção internacional ao seu país de origem, nesta situação, deve ser muito ponderada e cautelosa, devendo dar-se ao referido cidadão o benefício da dúvida, por forma a evitar que o mesmo possa vir a ser morto, quer seja por um regime político, quer seja por uma máfia criminosa, tendo em consideração a importância que é dada, nos países democráticos europeus, ao direito à vida.
53°) Não podemos, assim, concordar com a ilação constante do projecto de proposta constante dos autos, ao entender que «atenta a situação de pacificação a que se assiste actualmente na Jugoslávia, não se encontram fundamentos válidos que demonstrem que a sua esfera pessoal (da requerente) poderá vir a ser afectada ...pela prática generalizada de violações de direitos fundamentais, de modo a impossibilitá-la de regressar ao seu país» (sic).
54°) Em abono da nossa tese, refira-se o facto que tem sido divulgado pela imprensa jugoslava, de que, após a morte do primeiro-ministro ..., foi decretado o estado de emergência no país (Cfr. doc. nº 1 e 10) o que demonstra não se encontrar aquela região completamente pacificada...
55°) Estas notícias vêm, agora, confirmar as declarações prestadas nos autos, pela requerente, quando solicitou o seu pedido de asilo ao S.E.F. ao dizer que os grupos do crime organizado actuavam em Belgrado, junto da população e especialmente dos jovens, sendo tais grupos constituídos por elementos da própria polícia, factos esses que não eram, ainda, de conhecimento público, à data em que esse pedido foi formulado (11/01/2002), mas que hoje se tornaram públicos e notórios, por ter sido reconhecida a sua veracidade pelo próprio governo sérvio-montenegrino.”
Como se viu, a proposta final, sobre a qual assenta, imediatamente, o acto, limitou-se a observar:
“As alegações apresentadas pela requerente A..., a fls. 200 e segs. não carrearam para o processo quaisquer novos elementos que pudessem pôr em crise a proposta formulada.
Assim sendo, entendemos manter a proposta nos seus precisos termos”.
2.2.2.2. Diversamente da avaliação realizada no projecto e proposta, e assumida pelo acto impugnado, entende-se que do relato da situação efectuado pela requerente não custa a crer que a mesma se sinta efectivamente insegura e tema pela sua vida, na eventualidade de regresso ao seu país.
Todos os factos que enunciou não só não foram desmentidos como se patenteiam com foros de credibilidade.
É de relevo verificar que, logo nas primeiras declarações, a requerente atribuiu o núcleo da sua insegurança aos grupo de marginais de Zemun (Belgrado), medo que se acentuou com a morte do seu companheiro por um dos elementos do grupo, assassinato que presenciou, tendo, ademais, reconhecido o homicida.
A requerente demonstrou documentalmente a morte do seu namorado.
Na resposta a questionário elaborado pelo Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a organização “...” confirmou a existência da mafia de Zemun e à questão, “Considera haver alguma autoridade para quem a requerente possa recorrer ou pedir ajuda?”, respondeu:
“Uma coisa é certa, se ela já está envolvida no circulo, a máfía sabe onde vive e quem são os seus pais, etc. Não há instituição que a possa ajudar se os criminosos a quiserem encontrar”.
Em 21.10.2002, o pai da requerente reiterou a existência do grupo de criminosos em Zemun (periferia de Belgrado), dispondo de cobertura policial, tendo também sido ameaçado, sentindo necessidade de ir para o Montenegro.
Das declarações da requerente só não se confirmou ter vindo nos jornais a indicação do seu nome como sendo a responsável pela morte de um dos elemento do grupo de Zemun. Mas deve acentuar-se que nunca a requerente disse que tinha lido essa notícia, antes que o seu pai lhe dissera ter lido.
Ora, o assassinato do primeiro-ministro ..., em 13 de Março de 2003, atribuído, nos termos dos relatos jornalísticos documentados pela requerente em sede de audiência prévia, precisamente, “ao grupo de criminosos Zemun” (fls. 217), organização “acusada de uma série de atentados e sequestros nos últimos anos” (fls. 218), grupo de criminosos que “tinham colaborado com a polícia” (fls. 221), sendo principal suspeito “um exsubcomandante de uma unidade de elite da polícia” (fls. 224), “Em 25 de Março, a polícia informou que havia detido ..., sub-comandante da unidade de comandos da polícia conhecida como «boinas vermelhas», como suspeito de assassinar ... com um tiro de fuzil com mira telescópica. Junto com ele foram detidos também um membro de sua unidade, por suposta participação directa no atentado, e o comandante da unidade, ..., por vínculos com o clã de Zemun” (fls. 235), entre outros dados, veio corroborar, melhor dizendo, consolidar a verosimilhança, a probabilidade de estar certa, a fiabilidade da realidade e da visão da realidade apresentadas pela requerente.
Uma realidade de insegurança, de grave insegurança, para quem possa ser alvo dos grupos que desde o princípio mencionou como responsáveis pela morte do seu companheiro e das ameaças contra ela.
Os factos relatados ao longo do procedimento administrativo, até à audiência prévia, e depois, com esta audiência, os que, em particular, se reportam à morte do primeiro-ministro jugoslavo, atribuída, exactamente, às cumplicidades entre grupos de criminosos e sectores policiais, cumplicidades de que desde sempre falou a requerente, conjugam-se na ilustração da razoabilidade do sentimento de indefesa e do sentimento de impossibilidade de recorrer à polícia por parte da requerente.
Está-se numa situação que não é do tipo normalmente relatado e apresentado para a dedução do pedido de autorização de residência por razões humanitárias.
A requerente não descreve uma violação dos direitos da pessoa humana orquestrada, directamente, pelas autoridades, mas expõe uma situação de violação frequente de direitos em virtude da impossibilidade de as autoridades a ela porem cobro.
A requerente, ora recorrente, não se sente ameaçada directamente pelas autoridades, mas sente-se ameaçada por grupos criminosos, e não tem possibilidade de protecção no seu país.
Afigura-se que também estas situações estão cobertas pela previsão do artigo 8.º, não podendo ser estranho à sua interpretação o facto de toda a legislação nacional ter de ser vista à luz da protecção da dignidade da pessoa humana, e da inviolabilidade da vida humana - artigos 1.º e 24.º da Constituição da República.
À data do acto impugnado, pouco mais de dois meses depois do assassinato do primeiro-ministro jugoslavo, não se podia afirmar que todas as condições de insegurança, de falta de protecção policial, de conivência entre sectores importantes das forças policiais e o grupo de criminosos que atemoriza a recorrente, se tivessem esvanecido.
Antes, aquele evento, considerando a análise que sobre ele foi generalizadamente produzida, confirmou a bondade e adequação do sentimento de medo da interessada à situação objectiva do país do qual sofreu a necessidade de fugir e para o qual sente receio sério de regressar.
É de entender, pois, que os factos devem ser apreciados no sentido de configurarem uma situação subjectiva de grave receio, aliada a uma situação objectiva que impõe esse grave receio e que esse receio se configura como receio de morte, o que tanto basta para que a pretensão da requerente se subsuma à previsão do n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março.
Houve, pois, erro na apreciação e subsunção dos factos à lei, com violação do disposto no n.º 1 do artigo 8.º da Lei n.º 15/98, de 26 de Março.
3. Nos termos expostos, concede-se provimento ao recurso, e anula-se o acto no segmento em que não concedeu autorização de residência por razões humanitárias.
Sem custas.
Lisboa, 16 de Março de 2004
Alberto Augusto Oliveira – Relator – Políbio Henriques – Rosendo José