Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0781/08
Data do Acordão:10/09/2008
Tribunal:1 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:RECURSO PER SALTUM
REVISTA
CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL
CONTRATO ADMINISTRATIVO
REGIME EXCEPCIONAL
CRITÉRIO DE ADJUDICAÇÃO
DIREITO DE AUDIÊNCIA
Sumário: I – Dada a conjunção dos critérios subjectivo e finalístico ou teleológico, tem natureza administrativa o contrato para o fornecimento de módulos de recolha de dados biométricos, necessários à concretização do projecto «Cartão do Cidadão».
II – A circunstância de, por despacho do ministro, ter sido excepcionada a sujeição do procedimento pré-contratual «ao disposto nos capítulos seguintes» àquele (o capítulo II) em que se incluía o art. 77º do DL n.º 197/99, não afastava a aplicabilidade do que se dispunha no capítulo I do mesmo diploma.
III – Assim, e sob pena de ilegalidade, o procedimento tinha de observar os princípios e preceitos acolhidos nesse capítulo I, designadamente os que, para garantia da imparcialidade, impunham que o júri atempadamente definisse e divulgasse os critérios de eleição da proposta vencedora.
IV – A violação do princípio da imparcialidade basta-se com o mero perigo ou risco de favorecimento.
V – Dado o disposto no art. 2º, n.º 6, do CPA, ofendeu o art. 100º do mesmo diploma o acto que, culminando aquele procedimento, adjudicou o fornecimento a um dos proponentes sem antes ouvir os interessados e sem que, à luz do art. 103º do CPA, tal audiência estivesse objectivamente excluída ou a sua preterição se mostrasse justificada.
Nº Convencional:JSTA00065216
Nº do Documento:SA1200810090781
Data de Entrada:09/22/2008
Recorrente:MJ
Recorrido 1:A... E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TAC LISBOA PER SALTUM
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM ECON - APROVISIONAMENTO BENS SERVIÇOS ADM.
DIR ADM CONT - CONTRATO / PRÉ-CONTRATUAL.
Legislação Nacional:CPA91 ART178 N1 N2 ART100 ART103.
CONST ART267 N5.
DL 197/99 DE 1999/06/08 ART77 ART78 ART94 ART8 ART11 ART55.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
O Instituto dos Registos e do Notariado, IP, que doravante designaremos por IRN, interpôs esta revista «per saltum» do acórdão do TAC de Lisboa que, julgando procedente a acção relativa a contencioso pré-contratual instaurada por A…, anulou o despacho de 16/8/2007 em que o Secretário de Estado da Justiça adjudicara a B…, o previsto fornecimento de módulos de recolha de dados biométricos interoperáveis com a solução S.I. do ciclo de vida do projecto «cartão do cidadão» para parte do território continental e Região Autónoma da Madeira.
O recorrente terminou a sua alegação de recurso com o oferecimento das conclusões seguintes:
1 - O presente recurso jurisdicional segue o regime da revista, verificando-se os pressupostos da respectiva admissão, previstos no artigo 151° do CPTA: (i) está em causa acção de valor superior a € 3,000.000 (três milhões de euros); (ii) apenas se pretende discutir questões de direito; (iii) o fundamento do recurso é a violação de lei substantiva; e, por fim, (iv) não está em causa questão de funcionalismo publico ou relacionada com forma pública ou privada de protecção social.
2 - Verificados os requisitos previstos na conclusão anterior, o STA, Secção de Contencioso Administrativo, é competente para a sua apreciação e decisão.
3 - Decidiu mal o tribunal «a quo» ao referir ou considerar que o contrato em causa nos presentes autos assumia natureza administrativa – se tiver sido essa a intenção daquele tribunal – na medida em que, por um lado, não se trata de um contrato administrativo por natureza, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 178°, n.º 2, do CPA, nem está em causa, por outro lado, uma situação enquadrável no n.º 1 do mesmo preceito.
4 - Em função do disposto na conclusão anterior, a decisão proferida pelo tribunal «a quo» violou o disposto no artigo 178°, ns.º 1 e 2, do referido CPA, assim como o regime que decorre da sua não aplicação ao caso concreto.
5 - Não estando em causa um contrato administrativo, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 181° do CPA, que apenas reclama a aplicação daquele código, na dimensão procedimental, à formação de contratos que assumam aquela natureza administrativa, o que não é o caso do contrato em causa nos presentes autos.
6 - De resto, idêntica conclusão se alcança pela circunstância de estar em causa actuação de gestão privada da administração, que sempre determinaria, apenas, a aplicação dos princípios gerais da actividade administrativa e normas que concretizem preceitos constitucionais, por via do disposto no artigo 2°, n.º 5, do CPA, razão pela qual, também com este fundamento, decidiu mal o tribunal «a quo».
7 - A decisão recorrida incorre em erro de direito, na medida em que, atento o facto de não se estar perante um contrato administrativo, o enquadramento e a tramitação do respectivo procedimento de formação contratual são regulados exclusivamente pelo DL n.º 197/99, de 8 de Junho, e não pelo disposto também na parte correspondente do CPA.
8 - A decisão recorrida incorre em erro de direito, na medida em que, atento o facto de o contrato ter sido excepcionado ao abrigo do disposto no artigo 77°, n.º 1, do DL n.º 197/99, de 8 de Junho, não tomou em consideração os respectivos efeitos jurídicos, designadamente a possibilidade real de a entidade adjudicante poder adoptar o procedimento pré-contratual que entendesse mais adequado – como seja o ajuste directo –, sem observância do disposto nos artigos 78° e seguintes.
9 - A decisão recorrida incorre em erro de direito, na medida em que, tendo presente o facto de o contrato ter sido excepcionado ao abrigo do disposto no artigo 77°, n.º 1, do DL n.º 197/99, de 8 de Junho, considerou que, no caso, foi adoptado um procedimento concurso ou um procedimento de consulta prévia - com flutuações terminológicas identificáveis -, quando, em rigor, foi adoptado um procedimento desformalizado, equivalente ao ajuste directo,
10 - A decisão recorrida incorre em erro de direito, na medida em que, tendo presente o facto de o contrato ter sido excepcionado ao abrigo do disposto no artigo 77°, n.º 1, do DL n.º 197/99, de 8 de Junho, a sua celebração não tinha que observar a tramitação específica prevista nos referidos artigos 78° e seguintes daquele diploma, e em especial nos artigos 151° e subsequentes.
11 - A decisão recorrida incorre em erro de direito ao ter anulado o despacho impugnado, na medida que o princípio da transparência e da publicidade, tal como resultam dos artigos 8° e 55° do DL n.º 197/ 99, de 8 de Junho, devem ser interpretados em função das circunstâncias do caso concreto, sendo que a adopção de um procedimento de contornos típicos do ajuste directo - como no caso sucede - implica a redução das exigências formais daqueles decorrentes.
12 - Dito de outro modo, a decisão recorrida incorre em erro de direito ao ter anulado o despacho impugnado, na medida que o princípio da transparência e da publicidade, tal como resultam dos artigos 8º e 55º do DL n.º 197/99, de 8/6, conjugados com as especificidades do procedimento em concreto adoptado pela entidade adjudicante e o regime decorrente do artigo 77°, n.º 1, daquele diploma, não obrigam à comunicação prévia e formal dos critérios ou elementos de avaliação em convites informais que sejam dirigidos a potenciais interessados.
13 - A decisão recorrida incorre em erro de direito ao ter anulado o despacho impugnado, na medida que não houve: no caso concreto, qualquer ofensa ao princípio da imparcialidade, tal como resulta do artigo 11º do referido DL n.º 197/99, de 8 de Junho.
14 - A decisão recorrida, incorre em erro de direito ao ter anulado o despacho impugnado com fundamento na preterição da formalidade de audiência prévia, na medida em que (i) não se impõe directamente a aplicação do artigo 100º do referido CPA ao caso concreto, por não estar em causa a formação de um contrato administrativo (cfr. artigo 181°) e (ii) não existe norma do DL n.° 197/99, de 8 de Junho, aplicado o regime do respectivo artigo 77°, n.° 1, que imponha a adopção dessa formalidade.
O Ministério da Justiça veio também recorrer do mencionado acórdão, fazendo-o por adesão ao recurso do IRN.
A recorrida A… contra-alegou, concluindo do modo seguinte:
a) O douto acórdão recorrido não merece qualquer censura e, porque não viola a lei e espelha a justiça, não pode ser revogado.
b) Optando por interpor um recurso jurisdicional «per saltum» – quando os recorrentes ainda poderiam lançar mão de recurso para a segunda instância – permite concluir que os recorrentes reconhecem que o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura quanto ao julgamento da matéria de facto e, por consequência, admitem que a matéria de facto constante dos autos e considerada como provada na fundamentação do acórdão é inequívoca e aceite pelos recorrentes.
c) Ao longo das suas alegações, os recorrentes fazem por esquecer os factos verificados ao longo de todo o procedimento de adjudicação – os tais que se encontram provados nos autos –, para construírem, a partir de factos novos instituídos teoricamente, mas que não se verificaram, uma gigantesca edificação jurídica mas de muito frágeis alicerces.
d) O douto acórdão recorrido identifica variados vícios em todo o procedimento de adjudicação, senão vejamos: i) a necessidade imperativa de se aplicar os princípios da contratação publica, independentemente da decisão de excepcionar o contrato de aquisição da aplicação do RJCP; ii) a inexistência de publicitação do método de selecção/critério de adjudicação, pelo qual seria escolhida a proposta a contratar; iii) a ausência de audiência prévia, com fundamento na existência de razões de segurança; iv) análise dos vários critérios de ponderação dos critérios de adjudicação; v) insuficiência na notificação do despacho de adjudicação.
e) De todos estes vícios, alegados pela ora recorrida na sua impugnação judicial, o douto acórdão recorrido reconhece razão à recorrida, apenas improcedendo a impugnação i) da falta de consulta simultânea a todos os concorrentes e ii) da decisão de excepcionar o contrato em causa. No primeiro caso, por falta de prova e no segundo porque o douto acórdão entendeu que as razões de segurança que são inerentes à prestação de serviços de emissão do Cartão do Cidadão devem ser estendidas ao fornecimento dos equipamentos que permitirão essa emissão, extensão que no entender da recorrida é bastante abusiva e claramente violadora dos pressupostos de natureza excepcional que devem presidir a uma decisão daquela natureza.
f) Os recorrentes assentam toda a sua fundamentação em dois pressupostos: a) a natureza não administrativa do contrato em causa, e por consequência, a inaplicabilidade do CPA ao processo de adjudicação em causa; e b) atenta a decisão de excepcionar o contrato, o processo de adjudicação adoptado foi de natureza informal, assente em procedimento de ajuste directo, com a realização de negociações com diversos concorrentes, mas sem qualquer vinculação à observância das regras previstas para procedimentos concursais ou concorrenciais e, por consequência, sem sujeição aos mais elementares princípios e regras dispostas no DL 197/99 em matéria de protecção do interesse público e garantias das entidades potencialmente adjudicatárias e que foram convidadas a apresentar as suas propostas.
g) Essa fundamentação não pode desde logo proceder por não ser adequada às circunstâncias de facto que se verificaram ao longo de todo o processo de adjudicação e que foram posteriormente confirmadas na defesa deduzida pelos recorrentes no âmbito do presente processo judicial, e que se encontram tidas por provadas e assentes no douto acórdão ora recorrido, relativamente às quais – como visto «supra» – os recorrentes não deduziram qualquer recurso.
h) Quanto à invocada natureza não administrativa do contrato em causa e, por consequência, a conclusão alcançada pelos recorrentes nas suas alegações de que o CPA não é inaplicável ao processo de adjudicação em causa é obviamente uma análise teórica dos actuais mandatários dos recorrentes, que em nada reflecte as diversas menções dos próprios recorrentes à aplicabilidade do CPA, realizadas, directa ou indirectamente, ao longo do procedimento de adjudicação desenvolvido, quer - já após a impugnação judicial deduzida pela ora recorrida - em sede da contestação deduzida pelos recorrentes.
i) Ao longo, quer do procedimento de adjudicação, quer do presente processo judicial, em nenhuma circunstância os ora recorrentes se socorrem do argumento da inaplicabilidade do CPA ao presente processo de adjudicação, tendo em qualquer dos casos, e ao invés, contestado a alegada violação do CPA com o argumento de que todas as diligências desenvolvidas ao longo do procedimento de adjudicação estão conformes com o disposto no CPA, bem cientes de que o mesmo se aplica e sempre se aplicou ao procedimento de adjudicação em causa, tal como fez e bem o tribunal «a quo».
j) Os recorrentes, chegando ao ponto de alegar que o contrato não é administrativo, pois a sua natureza não consta identificada no elenco do n.º 2 do art. 178º do CPA, o qual no entanto apresenta inequívoca e manifestamente apenas uma enumeração exemplificativa de tipos de contrato administrativo, que a doutrina é unânime em não considerar exaustiva e em deixar ao desenvolvimento jurisprudencial e doutrinário o papel de definição mais exacta dos respectivos contornos jurídicos.
k) Mas os recorrentes não se ficam por aqui no seu exercício de retórica, e uma vez afastada a aplicabilidade do CPA ao procedimento de adjudicação, pretenderam também afastar a aplicabilidade das regras concursais e de procedimento constantes do DL 197/99, ou seja, libertavam desse modo o procedimento de adjudicação de quaisquer limites ou contornos procedimentais.
1) Ao longo do desenvolvimento das suas alegações, os recorrentes esqueceram-se da existência de factos concretos, bem patentes em todos os elementos do procedimento de adjudicação, que são inequívocos quanto à existência de um procedimento concursal, por oposição ao ora alegado procedimento de ajuste directo que apenas se socorre de um convite informal para recolha do mercado relevante dos dados disponíveis em termos de fornecimento e de condições de fornecimento.
m) Os Recorrentes partem do facto assente A, relativo ao despacho que reconhece o fornecimento em causa como tratando-se de um contrato excepcionado - situação em que o tribunal «a quo» entendeu negar provimento à ilegalidade invocada pela ora recorrida -, para concluir que “a adjudicação em causa, a partir do momento em que o despacho é proferido, deixa de estar condicionada, do ponto de vista procedimental, das regras de escolha e de identificação correspondentes, o que confere à entidade adjudicante plena liberdade para esse efeito”.
n) Quanto ao reconhecimento como contrato excepcionado, é entendimento da recorrida que o tribunal «a quo» errou, o que a leva aqui a reafirmar a sua posição por entender que aquele reconhecimento da excepção é uma extensão incorrecta da natureza excepcional que a prestação do serviço de emissão de Cartão do Cidadão tem, transpondo-a para os fornecimentos dos equipamentos inerentes aquela emissão, situação que no entanto a recorrida não entende essencial à defesa da aplicabilidade das regras procedimentais previstas no DL 197/99 ao procedimento de adjudicação em causa.
o) Assim, sem conceder, ainda que se admita que o despacho de reconhecimento de um regime de excepção ao contrato seja válido – o que só por facilidade de exposição ora se admite – a análise quanto à sua validade perde importância face às disposições instituídas pelo recorrente IRN no próprio ofício convite constante do processo de consulta.
p) E foi neste contexto que a própria entidade adjudicante, o recorrente IRN, determinou no art. 8° do ofício convite dirigido aos interessados, e sob a epígrafe “legislação aplicável”, que “em tudo o não especificado no presente convite aplicam-se, subsidiariamente, as disposições constantes do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de Junho, bem como as disposições legislativas e regulamentares aplicáveis, de acordo com a natureza do procedimento a contratar”.
q) Ora, ao invés do que defendem os recorrentes nas suas alegações, o presente procedimento de adjudicação reveste claramente um procedimento de natureza concursal, no qual foi dirigido um convite às empresas concorrentes para apresentarem a sua proposta.
r) Mas não se trata de uma proposta qualquer, apresentada nos termos e condições que cada um dos intervenientes no mercado entender por mais conveniente para convencer o cliente a proceder à adjudicação. O ofício convite era bem explicito e referenciava os requisitos formais das propostas a apresentar, incluindo um modelo de proposta, e a identificação de todo um conjunto de elementos informativos relativamente à forma como deve ser apresentado o preço, ao modo de execução do fornecimento, ao cumprimento do exigido no caderno de encargos e ao cumprimento dos requisitos técnicos e funcionais exigidos no processo de consulta, os quais visam permitir a realização da respectiva análise comparativa das propostas. No ofício convite acresce ainda o facto de se encontrar estipulado um prazo único para a entrega de todas as propostas, o que não seria essencial no caso de se proceder a uma consulta para fins de proceder a um ajuste directo. Por último, não se pode aqui deixar de mencionar o facto de os recorrentes identificarem os interessados como concorrentes, designação perfeitamente indiciadora da natureza concursal do convite para apresentar a concurso.
s) De igual modo revelador da natureza concursal do processo de adjudicação em causa, é a existência de um relatório de avaliação comparativa das propostas, suportado na definição de critérios de análise das propostas apresentadas, bem como o facto de, ao longo da fase judicial, quer em sede da contestação deduzida, quer da defesa apresentada relativamente aos vícios na aplicação dos critérios de adjudicação, os recorrentes deduzirem a respectiva argumentação no sentido de que a aplicação dos procedimentos estatuídos no DL 197/99 foram respeitados e cumpridos, nunca invocando que os mesmos não se aplicavam ao presente caso em concreto.
t) Pelo que, perante a enorme e inequívoca dissonância entre os factos ocorridos e considerados provados nos presentes autos e os pressupostos da construção jurídica constantes das alegações deduzidas pelos recorrentes no presente recurso, não pode a respectiva argumentação jurídica deixar de cair por terra, tamanha é a dissociação entre os factos provados e os argumentos ora apresentados.
u) Ora, assentando a construção jurídica constantes das alegações deduzidas pelos recorrentes no âmbito do presente recurso, por dissociação face aos factos provados, será pois desnecessário aqui deduzir contra-argumentação quanto às razões de direito invocadas pelos recorrentes, encontrando-se as mesmas sem qualquer suporte factual no presente caso.
v) Pelo que, face ao exposto, não pode proceder a invocação pelos recorrentes do argumento da inaplicabilidade do CPA e das normas dos procedimentos constantes do DL 197/99, dado que a própria entidade adjudicante actuou ao longo de todo o procedimento de adjudicação, invocando a respectiva aplicabilidade e exercendo o cumprimento das mesmas, «maxime» quando no art. 8° do oficio convite dirigido aos interessados, e sob a epígrafe “legislação aplicável”, estatui que “em tudo o não especificado no presente convite aplicam-se, subsidiariamente, as disposições constantes do Decreto-Lei n.º 197/99”.
w) Analisadas as alegações de recurso, concluímos pela respectiva improcedência, mantendo-se todos vícios identificados pelo tribunal «a quo», pelo que deve o presente recurso improceder e o douto acórdão do tribunal «a quo» ser integralmente mantido.
A matéria de facto pertinente é a considerada provada no acórdão «sub judicio», atento o que se dispõe nos arts. 150º, n.º 4, e 151º, n.º 1, do CPTA.
Passemos ao direito.
Nos presentes autos de contencioso pré-contratual, a autora, ora recorrida, impugnou o acto de adjudicação de um certo fornecimento, referente ao projecto «Cartão do Cidadão», atribuindo-lhe diversos vícios, quase todos procedimentais. E, embora julgasse improcedentes alguns dos vícios arguidos, o acórdão «sub censura» veio a concluir pela ilegalidade do acto porque o «iter» procedimental seguido não garantira a definição e a divulgação atempadas dos critérios «rectores» da adjudicação e, ainda, porque fora preterida da audiência prévia dos interessados.
A primeira crítica que os recorrentes dirigem ao acórdão prende-se com a índole do contrato em vista. Assim, eles recusam-lhe uma natureza administrativa (conclusões 3.ª e 4.ª), donde derivaria a inaplicabilidade do CPA ao procedimento em causa (conclusões 5.ª e 6.ª) e a necessidade de os trâmites anteriores ao acto exclusivamente se regularem pelo disposto no DL n.º 197/99, de 8/6 (conclusão 7.ª). Mas estes ataques, para além de errados, só afrontam a decisão «sub judicio» muito de viés.
Desde logo, é insofismável a natureza administrativa do contrato em questão. Embora o «fornecimento dos módulos de recolha de dados biométricos», a que o negócio tendia, não pareça incluir-se em qualquer das espécies tipicamente previstas nas als. g) e h) do n.º 2 do art. 178º do CPA (e, «a fortiori», tal fornecimento não caiba nas demais alínea desse número), é de considerar o contrato como administrativo à luz da noção geral inclusa no n.º 1 do artigo. Para tanto, avulta a concorrência de dois fundamentais critérios: o subjectivo, pois temos a Administração a contratar, e o finalístico ou teleológico, pois o objecto do fornecimento, enquanto inclinado à concretização do sobredito «Cartão do Cidadão», serve exclusiva e imediatamente o interesse público prosseguido por tal projecto.
Portanto, é temerária a ideia de que o almejado fornecimento, apesar de evidentemente tender à satisfação de necessidades colectivas, se reconduziria, afinal, a uma gestão privada repugnante à natureza administrativa do negócio. Mas, mesmo que assim fosse, duas objecções se colocariam ainda à tese dos recorrentes: «primo», era possível sujeitar às regras do direito administrativo (ou seja, ao CPA) o procedimento tendente à escolha do contratante de direito privado; e, por isso, os recorrentes claudicam quando supõem que a eventual natureza civil do contrato excluiria «ea ipsa» uma aplicabilidade do CPA. «Secundo», e salvo quando à preterição da audiência, o acórdão recorrido não necessitou de invocar o CPA para emitir a sua pronúncia; pois todos os outros vícios que entreviu no acto, relacionados com a enunciação e a comunicação dos critérios ponderáveis pelo júri, fundaram-se em preceitos diversos do DL n.º 197/99, de 8/6 – diploma que, aliás, os recorrentes admitem ser aplicável «in casu». E percebe-se agora por que motivo dissemos que as conclusões 3.ª a 7.ª da alegação de recurso só muito ao de leve tocam a decisão, que deixam essencialmente incólume.
Pelo exposto, e em suma, a conclusão 3.ª improcede porque, tal e qual a 1.ª instância afirmou, o contrato tinha deveras natureza administrativa. E daí que improcedam também as conclusões 4.ª a 7.ª, inclusive, já que todas elas se suportam no antecedente de que não seria essa a natureza do negócio.
Nas duas conclusões seguintes, os recorrentes partem do pormenor de «o contrato ter sido excepcionado ao abrigo do disposto no art. 77º, n.º 1, do DL n.º 197/99» para afirmarem que o procedimento seguido fora, afinal, o do ajuste directo, ademais «desformalizado» – em vez do «concurso» que o acórdão referiu. E, desse pormenor fáctico e jurídico, os recorrentes inferem a desnecessidade de o procedimento cumprir as regras que a 1.ª instância considerou violadas.
É seguro que o procedimento fora antecedido de um despacho ministerial que, nos termos do art. 77º, n.º 2, do DL n.º 197/99, incluíra o contrato na excepção prevista na al. i) do n.º 1 do mesmo artigo. Ficou assim definido que, por razões de reserva ou de segurança, tal contrato não seria um dos «sujeitos ao disposto nos capítulos seguintes» àquele (o capítulo II) em que se incluía o art. 77º, isto é, que o procedimento não teria de seguir os «tipos» previstos no capítulo III nem quaisquer das regras previstas nesse capítulo e nos subsequentes. Não há dúvida que aquele despacho legitimou um desenho fluido, criativo ou livre do procedimento a adoptar – o que explica as hesitações quanto à designação que lhe será mais apropriada. Mas a controvérsia acerca do nome que melhor o caracterizará – concurso, negociação, consulta ou ajuste – é ociosa. Com efeito, o que verdadeiramente importa reter é que, por via do aludido despacho e do preceituado naquele art. 77º, o contrato deixou de estar sujeito «ao disposto nos capítulos seguintes». Mas esta fórmula legal, ao permitir ressalvar determinados contratos do que o DL n.º 197/99 dispunha «nos capítulos seguintes», não permitia subtraí-los também ao restante regime do diploma – pelo que esses contratos excepcionados permaneceriam sujeitos a tudo o que o DL n.º 197/99 preceituava no antecedente capítulo I. Ora, e no essencial, esse capítulo anterior constituíu o «situs» onde o acórdão «sub censura» divisou as normas gerais que considerou violadas pelo procedimento seguido. E tudo isto logo denota que é superficial e descentrada a maneira como as conclusões 8.ª e 9.ª acometem o acórdão.
Com efeito, a simples ideia de que o havido procedimento tendia a um ajuste directo – «rectius», a uma realidade «sui generis» que a isso se assemelhava – não afecta a existência dos vícios assinalados no acórdão e referentes à enunciação e divulgação de critérios. É que o «nomen juris» do contrato só se mostraria decisivo se ao «ajuste directo» se não aplicassem as regras tidas por violadas; mas, nem os recorrentes o afirmaram, nem essa solução seria certa (como vimos decorrer do art. 77º, n.º 1, «a contrario») – salvo no que toca a uma hipotética violação do art. 94º, n.º 2, do DL n.º 197/99, realmente alheio a esse tipo procedimental.
A impotência originária das conclusões 8.ª e 9.ª mostra-se parcialmente corrigida na conclusão 10.ª, em que os recorrentes, partindo ainda da premissa de que o contrato dos autos fora excepcionado pelo despacho do ministro, concluem que o procedimento «não tinha que observar a tramitação prevista» nos arts. 78º e ss. do DL n.º 197/99 e, «em especial, nos arts. 151º e subsequentes» do mesmo diploma. Esta última alusão é inútil e gera perplexidade: na medida em que o acórdão nada disse sobre esses arts. 151º e ss., nem se lobriga uma razão séria para os recorrentes referirem tais preceitos, nem essa sua referência é apta a afrontar o decidido. Mas, no demais, a conclusão 10.ª tem o préstimo de contrariar o segmento do acórdão em que este aludiu à ofensa, pelo acto, do art. 94º, n.º 2, do diploma, restando ver se tal ataque tem a devida contundência.
Já sabemos que o despacho ministerial exceptuara o procedimento das regras insertas nos «capítulos seguintes» àquele em que se localizava o art. 77º. Assim sendo, pareceria que o acórdão errou ao censurar o acto com base no art. 94º, n.º 2, que, afinal, traduz uma dessas regras. E, no entanto, esse erro não existe. Uma adequada interpretação do acórdão mostra que ele não defendeu a aplicabilidade «tout court» do art. 94º, n.º 2, mas antes reclamou que – aliás «pelos mesmos fundamentos» que atrás indicara e que se reconduziam aos arts. 8º, 11º e 55º, n.º 2, do DL n.º 197/99 – ao caso se aplicasse «uma actuação conforme» a essa norma, aliás logo reconhecida como «formalmente» inaplicável. Ao determinar que a definição dos critérios deve ser fornecida aos concorrentes que a solicitem, esse art. 94º, n.º 2, constitui uma aplicação particular de regras gerais (como as dos arts. 8º e 55º, n.º 2) que já sabemos regerem o procedimento dos autos e que, no seu essencial, consistem na ideia de que os critérios que presidirão à avaliação das propostas e à escolha do vencedor devem ser estabelecidos e divulgados num tempo que garanta a utilidade do seu conhecimento e a imparcialidade do júri. E, sendo este, e apenas este, o sentido desse passo do acórdão, mostra-se irrelevante a referência aí feita ao art. 94º, n.º 2 – motivo por que a censura dos recorrentes, que vagamente atingiria o uso desse artigo, é inteiramente vã.
Pelo exposto, as conclusões 8.ª e 9.ª, ao apontarem inconsequentemente para o nome do contrato, escolheram o alvo errado e deixaram indemne o acórdão. Algo de semelhante sucede com o segmento da conclusão 10.ª em que se alude aos «artigos 151º e subsequentes». E, no que respeita à parte sobrante desta última conclusão, a utilidade que de bom grado lhe poderíamos reconhecer – relacionada com a referência do acórdão ao art. 94º, n.º 2 – esvai-se ante a obtida certeza de que a alusão não passa disso, pois subjaz-lhe como única e verdadeira pronúncia a afirmação de que os critérios não terão sido oportunamente divulgados, fosse «motu proprio», fosse a pedido dos proponentes (pois o art. 94º, n.º 2, refere-se a pedidos do género). Donde a improcedência das três conclusões ultimamente em apreço.
Nas conclusões 11.ª e 12.ª, os recorrentes atacam finalmente o acórdão «in nuce», ao sustentarem que o procedimento dos autos, devido à sua excepcional configuração, não estava sujeito às exigências constantes dos arts. 8º e 55º do DL n.º 197/99. Estabelece-se nestas normas que «o critério de adjudicação», por razões de transparência e de publicidade, deve estar definido previamente à abertura do procedimento e ser dado a conhecer aos interessados a partir da data daquela abertura (art. 8º); e que tal critério deve ser indicado nos documentos que sirvam de base ao procedimento (art. 55º, n.º 2). Ora, e como já vimos, o TAC entendeu que a tramitação seguida tinha de cumprir essas regras e, porque o não fez, o acto é ilegal.
E também aqui o acórdão se mostra irrepreensível. Conforme assinalámos «supra», a circunstância de o despacho ministerial ter excluído a sujeição do procedimento aos capítulos seguintes àquele em que se integra o art. 77º não afastava a sujeição às regras consagradas no anterior capítulo I. Portanto, e apesar do despacho, a liberdade de conformação dos trâmites procedimentais a adoptar não era absoluta, subsistindo toda uma panóplia de princípios e de regras jurídicas gerais que vinculavam a feitura do procedimento e cuja ausência seria «contra legem» e traria indeterminação e contingência, senão mesmo arbítrio, aos passos preparatórios do acto. Ora, tais regras e princípios constavam do capítulo I do DL n.º 197/99, aplicável ao procedimento em causa. E, dentre elas, sobressaíam as relativas à definição e à divulgação oportuna dos critérios a utilizar, sem o que a Administração escolheria «ad libitum» e sem a mínima possibilidade de controle a proposta vencedora, assim transformando o procedimento administrativo no exercício auto-suficiente de uma vontade incontestável e opaca. Não é de mais sublinhar a inadmissibilidade de uma tal solução, incompatível com a ideia mestra de que, num Estado de Direito, a Administração deve justificar legalmente todos os seus passos, e «maxime» os fundamentais, assim actuando com a transparência e a motivação racional que permitam aquilatar das suas boa fé, proporcionalidade, imparcialidade e outras exigências similares. Como o acórdão impugnado perfeitamente apontou, o silêncio havido acerca dos critérios permitiria tudo e sem hipóteses de fiscalização, em flagrante contraste com o que, com constância e de há muito, a jurisprudência administrativa define como sendo o «modus operandi» irrecusável em todos os procedimentos que se inclinem à escolha de propostas ou de pessoas.
É agora clara a improcedência das conclusões 11.ª e 12.ª. E daqui decorre também o naufrágio da conclusão 13.ª, em que os recorrentes acometem o acórdão porque não teria havido, «in concreto», uma efectiva violação do princípio da imparcialidade. Com efeito, o problema não reside em saber se, na escolha do contratante privado, se insinuou deveras algum laivo de favorecimento ou parcialidade. Aliás, ignorando-se se os critérios realmente usados seriam os mesmos se as suas definição e divulgação fossem atempadas, é impossível garantir «ex post» a completa isenção da conduta administrativa, isto é, que os critérios não foram afeiçoados à proposta vencedora. O que sobretudo importa sublinhar é que todas estas questões relacionadas com a parcialidade põem-se, desde logo, ao nível do seu perigo ou risco – pelo que se prendem com a respectiva prevenção. Por isso é que a imparcialidade constitui uma garantia, ou seja, as coisas devem processar-se de modo a afastar, na medida do possível, as hipóteses de favorecimento; e, se assim não suceder, imediatamente surgirá uma ofensa ao princípio da imparcialidade, já que a mera possibilidade abstracta de os trâmites seguidos permitirem uma conduta parcial é motivo bastante para inquinar as subsequentes pronúncias administrativas.
Portanto, os recorrentes clamam debalde pela imparcialidade da decisão tomada, pois o mero perigo de haver sucedido o contrário – risco que no caso ocorria devido à sombra que envolveu os critérios – obriga «recte» a dizer que o «iter» adoptado feriu o correspondente princípio. Donde a improcedência da conclusão 13.ª. Na 14.ª, e última, conclusão, os recorrentes asseveram que o acto não podia ter violado o disposto no art. 100º do CPA porque, tanto a natureza do contrato, como o regime do DL n.º 197/99 excluíam o uso dessa formalidade. Mas também esta crítica soçobra, merecendo o acórdão inteiro aplauso. Com efeito, já constatámos ser administrativo o contrato em vista; e esta singela certeza destrói o primeiro antecedente donde os recorrentes pretendem concluir – o que envolve a necessária destruição do respectivo raciocínio. Tendo em conta a índole do negócio e a disciplina legal dos trâmites que a ele tendiam, é inegável que o procedimento em causa era administrativo. Sendo-o, devia ajustar-se ao princípio constitucional em que se preconiza «a participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito» (art. 267º, n.º 5, da CRP), isto é, haveria de no procedimento se proceder à audiência dos interessados, nos termos dos arts. 100º e ss. do CPA – a não ser que o DL n.º 197/99 a excluísse de modo frontal (o que, aliás, exigiria que o respectivo fim se atingisse por outro meio) ou que a situação coubesse no art. 103º do CPA.
Ora, o DL n.º 197/99 não afasta «de plano» o direito de audiência, cujo cumprimento se deve ter por exigível nos procedimentos especiais previstos no diploma, «ex vi» do art. 2º, n.º 6, do CPA. E, nem a formalidade foi dispensada, nem se detectam razões objectivas – aliás não enunciadas – donde se devesse concluir pela sua inexistência «in casu». Assim, e não se mostrando também operatória a solução excepcional do art. 103º do CPA, recai-se na regra da exigibilidade do sobredito art. 100º. Nesta forçosa linha de raciocínio, e ante a preterição da audiência prévia, bem andou o acórdão «sub censura» ao julgar que o acto também pecara por haver incorrido no correspondente vício de forma.
Improcede, deste modo, a 14.ª conclusão da alegação de recurso. E resta assinalar a irrelevância actual das duas primeiras conclusões, simplesmente dirigidas à admissibilidade da revista.
Em conformidade com o exposto, acordam em negar a presente revista e em confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes, fixando-se:
Taxa de justiça: 5 UC.
Procuradoria: 1/6.
Lisboa, 9 de Outubro de 2008. – Madeira dos Santos (relator) - Pais BorgesRui Botelho.