Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0357/18.7BEVIS
Data do Acordão:02/17/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P27179
Nº do Documento:SA2202102170357/18
Data de Entrada:10/15/2020
Recorrente:A………. E OUTROS
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -


1 – A…………….. e mulher, B…………, ambos com os sinais dos autos, vêm, ao abrigo do artigo 285.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) interpor para este Supremo Tribunal recurso de revista excecional do acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 21 de maio de 2020, que negou provimento ao recurso por eles interposto da sentença do TAF de Viseu que julgara improcedente a impugnação judicial por eles deduzida da liquidação de IRS relativa ao ano de 2013 e respectivos juros compensatórios derivada da correcção relativa à transmissão de acções detidas pelo recorrente marido no Banco C………..

Os recorrentes terminam as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

A. A presente revista excecional vem interposta da decisão proferida pelo TCAN, em 21 de maio de 2020, que negou provimento ao recurso oportunamente interposto pelos Recorrentes e manteve a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu nos autos de impugnação judicial com o n.º 357/18.7BEVIS, relativos à impugnação judicial da liquidação adicional de IRS n.º 2018 5000890205, referente ao ano de 2013, inerente liquidação de juros compensatórios n.º 2018 00006845527 e respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2018 00002730605, com o saldo global a pagar de EUR 17.239.354,48.

Da admissibilidade da revista excecional no caso concreto

B. À luz da doutrina e jurisprudência, o recurso de revista excecional é admissível no contencioso tributário, desde que verificados os requisitos de que depende o uso deste meio excecional de recurso, que, até à entrada em vigor da Lei n.º 118/2019 e respetiva redação dada ao n.º 1 do artigo 285.º do CPPT, mostram-se aferidos por remissão para o artigo 150.º do CPTA.

C. A questão relativamente à qual se entende que se verifica o pressuposto de excecionalidade e que se pretende ver reapreciada é a relativa à suscetibilidade de aplicação do artigo 52.º do Código do IRS às situações, como a dos autos, em que se apura que a mais-valia foi realizada por uma outra entidade que não o sujeito passivo deste imposto, ainda que direta e indiretamente por si detida, e respetiva compatibilidade com o princípio da capacidade contributiva; ou seja, a suscetibilidade de aplicação do artigo 52.º do Código do IRS, quando a correção do valor declarado (na transmissão das ações por entrada em espécie) é feita com o objetivo de tributar um suposto aumento de capacidade contributiva assente na consequente valorização da participação social que o alienante, pessoa singular, detém/passou a deter na sociedade que, por sua vez e por um valor superior, revendeu as ações por este primitivamente transmitidas e que realizou, enquanto entidade distinta, uma mais-valia, ou numa suposta poupança fiscal daí decorrente.

D. Estamos perante uma questão que, prendendo-se com o âmbito de aplicação de uma disposição do Código do IRS, assume dimensão substantiva transversal, potencialmente aplicável a qualquer sujeito passivo deste imposto, sabendo-se, ademais, que a transmissão de ações ou a realização de entradas em espécie em sociedades são operações frequentes, assim como proliferam no comércio jurídico os atos constitutivos de sociedades e a celebração de negócios entre partes relacionadas entre diferentes territórios.

E. A questão reveste-se, em face de inexistência de jurisprudência anterior conhecida ou especial doutrina sobre a matéria e âmbito de aplicação do artigo 52.º do Código do IRS – tal como revela a já aludida falta de invocação de doutrina ou especial jurisprudência no Acórdão recorrido ou em 1.ª instância – de ineditismo ou novidade, e revela especial capacidade de controvérsia relativamente a futuros casos do mesmo tipo, relativos a transmissão de ações.

F. Por se tratar de uma disposição legal de que a AT poderá passar a lançar mão para tributar situações semelhantes em que ocorre uma transmissão de ações de uma pessoa singular para uma pessoa coletiva e, ulteriormente, a realização da mais-valia da alienação dessas ações na esfera dessa pessoa coletiva, urge definir o que decorre, com clareza, da lei – i.e., do disposto no artigo 52.º do Código do IRS –, mostrando-se necessário conjugar, para o efeito, tal disposição com outros regimes legais potencialmente aplicáveis, respetivos pressupostos, garantias dos contribuintes que visam acautelar e, bem assim, com as regras constitucionais a este respeito, não sendo, pois, simples a respetiva apreciação e assumindo, por isso, a questão levantada significativa relevância jurídica.

G. É inegável a premência da intervenção do STA, enquanto órgão de cúpula da justiça administrativa e fiscal, para dissipar dúvidas e alcançar a melhor aplicação das normas jurídicas sobre a questão subjacente aos presentes autos, referente à aplicação do disposto no artigo 52º do Código do IRS, para uma melhor aplicação do direito.

H. Igualmente, tratando-se, como se apontou, de uma questão de especial relevo jurídico, que requer um estudo aprofundado e um especial esforço interpretativo de articulação de diferentes disposições legais e constitucionais, cuja apreciação pelo STA se reveste de importância fundamental, atenta a suscetibilidade de repetição em casos futuros relativos a outros sujeitos passivos de IRS a quem a AT pretenda aplicar a citada disposição, nas frequentes situações de – nas palavras da decisão proferida em 1.ª instância nos autos – “intermediação envolvendo incrementos patrimoniais” relativos à transmissão de ações, a utilidade da decisão a proferir extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas neste litígio, mostrando-se igualmente preenchido o requisito previsto na primeira parte do n.º 1 do artigo 285.º do CPPT, equivalente ao previstos na primeira parte do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, para a admissão, a título excecional, da presente revista, o que se requer.

Da revista propriamente dita

I. O Acórdão recorrido sufragou a tese de que a aplicação do disposto no n.º 1 e na alínea b) do n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRS, na situação em discussão em juízo, não viola o princípio da capacidade contributiva, o qual é corolário do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da CRP, na medida em que “(…) não é possível afirmar que a tributação incide sobre uma riqueza que não existe ou que não está de acordo com a sua “capacidade de gastar”, pois os Recorrentes têm o incremento patrimonial que decorre da consequente valorização das ações que detêm naquelas sociedades” (Cf. página 35 do Acórdão Recorrido) e que “o facto de as mais valias apuradas na transmissão das ações não terem sido objeto de tributação, de todo em todo (ocorrendo, nas palavras da AT, uma «dupla não tributação»), permitiu aos Recorrentes uma poupança fiscal que se traduz numa evidente maior capacidade contributiva” .

J. Decorre das palavras supracitadas do próprio Tribunal Recorrido, que o valor de alienação de EUR 55.525.600 (USD 76.000.000) presumidamente fixado pela AT no ato tributário em causa visou não tributar o valor da contraprestação direta do aqui Recorrente marido com a transmissão das ações por si detidas no C……….., mas sim: (i) tributar um aumento da capacidade contributiva decorrente da consequente valorização das participações sociais que este detém, direta e indiretamente, na sociedade (i.e., D…………..) que, por sua vez e por um valor superior, revendeu as ações por este primitivamente transmitidas; e (ii) imputar, de algum modo, a mais-valia realizada pela sociedade que revendeu as referidas ações e que não terá sido objeto de tributação, à esfera individual do Recorrente marido (Cf. página 36 do Acórdão Recorrido).

K. No IRS, a incidência supõe a realização da mais-valia. Não é o simples aumento do valor dos ativos em que se materializam que constitui o facto gerador (Cf. JOSÉ GUILHERME XAVIER DE BASTO, “IRS: Incidência Real e Determinação dos Rendimentos Líquidos”, Coimbra Editora, 2007, página 397).

L. A revenda das ações do C……….., primitivamente transmitidas pelo Recorrente marido, produziu um acréscimo patrimonial efetivo/realizado na esfera jurídica da D……….., cujas participações sociais são direta e indiretamente detidas pelo Recorrente, e consequentemente, o valor das mesmas foi valorizado.

M. No entanto, o aumento da capacidade contributiva, na esfera do Recorrente marido, decorrente dessa consequente valorização das participações sociais que este detém, direta e indiretamente, na D……… é apenas meramente potencial/latente; ou seja, o simples aumento do valor das suprarreferidas participações sociais não implicou a sua alienação onerosa ou a realização de qualquer operação equiparada, que constitui pressuposto e critério de tributação das mais-valias, em sede de IRS; nem implicou uma qualquer entrada na sua esfera individual do valor correspondente – que, ocorrendo, é objeto de tributação própria em sede de IRS.

N. A tributação do acréscimo da capacidade contributiva decorrente da valorização das participações da D……….., sem que se tenha verificado qualquer “evento de realização” das mesmas, viola o princípio da capacidade contributiva e o princípio da realização, expressão prática da teoria do “rendimento-acréscimo” subjacente ao IRS.

O. O princípio da capacidade contributiva, enquanto princípio geral da tributação e corolário do princípio da igualdade no domínio tributário, como pressuposto, limite e critério da tributação, exige que o legislador fiscal configure as obrigações dos contribuintes a partir de factos tributários que fundem a capacidade de suportar o encargo correspondente, implica “a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto” – Cf. Ac. TC n.º 348/97.

P. O pressuposto económico ou a capacidade de gastar assente nesta correção é a mais-valia potencial/latente subjacente à valorização das participações sociais que o Recorrente marido detém na sociedade a quem este primitivamente transmitiu as ações em relevo nos autos (i.e., D…………) e que, posteriormente, as revendeu por um valor superior, e que não terá sido tributada, ao invés do valor da entrada em espécie na D……….. com as ações do C…………...

Q. Por outra via, o Acórdão recorrido, ao entender que, em cumprimento da capacidade contributiva, é passível de justificar a correção do valor declarado da primeira transmissão das referidas ações, nos termos do n.º 1 e da alínea b) do n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRS, “o facto de as mais valias apuradas na transmissão das ações não terem sido objeto de tributação, de todo em todo (…), permitiu aos Recorrentes uma poupança fiscal que se traduz numa evidente maior capacidade contributiva”( Cf. página 36 do Acórdão Recorrido), está a imputar à esfera pessoal do Recorrente marido a mais-valia realizada pela D……….. que revendeu as referidas ações primitivamente transmitidas por este e que não terá sido objeto de tributação nos Países Baixos.

R. A D………. representa um ente distinto e autónomo dos seus sócios, possui personalidade jurídica e, em especial, personalidade tributária autónoma, consistindo esta no facto de a D………. ser titular de “um centro de imputação de deveres e direitos de natureza tributária” ( Cf. PEDRO SOARES MARTINEZ, “Da Personalidade Tributária”, 2.ª Edição, Lisboa, 1969. Nos termos do artigo 15º da LGT: “A personalidade tributária consiste na suscetibilidade de ser sujeito de relações jurídicas tributárias.”), dispondo de capacidade contributiva própria.

S. Com a operação de revenda das citadas ações verificou-se uma “evidente maior capacidade contributiva”, mas esta surgiu na esfera empresarial da D………., jurídica e tributariamente, distinta dos aqui Recorrentes.

T. No nosso ordenamento jurídico existem normas e institutos jurídicos que demonstram que o legislador opta por desconsiderar a personalidade jurídica das sociedades na estatuição normativa, especialmente quando, através da personalização tributária, se pretende, exclusivamente, elidir uma obrigação fiscal, ou se pretende determinar o rendimento efetivo dos contribuintes (e.g., o instituto da transparência fiscal, cláusula geral anti-abuso, casos os respetivos pressupostos se encontrem preenchidos, entre outras).

U. No entanto, o véu da personalidade coletiva nunca poderá ser, ainda que de forma indireta, levantado à luz do disposto no n.os 1 e 2 do artigo 52.º do Código do IRS, visto que, o que literal e textualmente decorre do referido n.º 1 do artigo 52.º do Código do IRS, é que este é apenas aplicável às situações em que existam os denominados “pagamentos por fora” ou em que seja declarado pelos sujeitos passivos um preço inferior (ou superior) à contraprestação realmente por si recebida enquanto alienantes, e não como forma de imputar à pessoa singular a realização de uma mais-valia, calculada de forma presumida, que se conhece ter sido realizada na esfera de uma outra entidade,

V. Nas situações a que se aplica o artigo 52.º do Código do IRS (as referidas situações de “pagamentos por fora” ou recebimento de contraprestações superiores àquelas que o sujeito passivo de IRS declara), vislumbra-se o respeito pelo princípio da capacidade contributiva, na medida em que a AT apura, nessas situações, fundados indícios de que o valor recebido foi superior ao declarado, e que, como tal, apura fortes indícios de que houve um aumento de capacidade contributiva direta na esfera do alienante (os tais “pagamentos por fora” ou recebimento superior ao declarado).

W. Na aplicação do artigo 52.º do Código do IRS subjacente à situação dos autos, o que AT apura é que o valor de mercado seria muito superior ao valor que foi praticado na transmissão das ações (entrada em espécie) entre a pessoa singular e uma sociedade consigo relacionada, tendo por base, para tanto, o valor praticado na alienação que, pouco tempo depois, foi realizada por essa sociedade a um terceiro.

X. E assim, a AT utiliza o mecanismo previsto no artigo 52.º do Código do IRS para procurar tributar em sede daquele imposto um valor presumido dessa transmissão de ações determinado com base no último balanço, quando apura que ocorreu o acréscimo patrimonial efetivo e que não terá sido tributado com a revenda das mesmas ações, na esfera jurídica da pessoa coletiva D…………, direta e indiretamente detida pelo Recorrente alienante, pessoa singular.

Y. Não é sustentável, por não se mostrar compatível com o princípio da capacidade contributiva do sujeito passivo de IRS, na dimensão assinalada, nem com teoria de rendimento-acréscimo e princípio da realização subjacentes ao IRS, que o disposto no artigo 52.º do Código do IRS seja aplicável às situações em que, como no caso concreto, se apura que a mais-valia vem realizada pela pessoa coletiva para quem a pessoa singular transmitiu as ações, considerando que o “pressuposto económico” ou a capacidade de gastar da pessoa singular venha a ser a mais-valia, meramente potencial ou latente, subjacente à valorização das participações sociais que o aqui Recorrente marido detém na sociedade a quem primitivamente transmitiu as ações em relevo nos autos, razão pela qual deve ser dado provimento ao presente recurso de revista.

NESTES TERMOS deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se, em conformidade, o Acórdão aqui posto em crise.

Deverá, igualmente e em todo caso, ser dispensado, também nesta instância e pelos motivos já apontados nos autos, o pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos da segunda parte do n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais.

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 – A Excelentíssimo Magistrada do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal consignou que não lhe cabe emitir parecer sobre a admissibilidade do recurso.

4 – Dá-se por reproduzido o probatório fixado no acórdão recorrido (fls. 10 a 15 da respectiva numeração autónoma).

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir da admissibilidade do recurso.


- Fundamentação -


5 – Apreciando.

5.1 Dos pressupostos legais do recurso de revista.

O presente recurso foi interposto e admitido como recurso de revista excepcional, havendo, agora, que proceder à apreciação preliminar sumária da verificação in casu dos respectivos pressupostos da sua admissibilidade, ex vi do n.º 6 do artigo 285.º do CPPT.

Dispõe o artigo 285.º do CPPT, na redacção vigente, sob a epígrafe “Recurso de Revista”:

1 – Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo, quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2 – A revista só pode ter como fundamento a violação de lei substantiva ou processual.

3 – Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o tribunal de revista aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

4 – O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

5 – Na revista de decisão de atribuição ou recusa de providência cautelar, o Supremo Tribunal Administrativo, quando não confirme a decisão recorrida, substitui-a por acórdão que decide a questão controvertida, aplicando os critérios de atribuição das providências cautelares por referência à matéria de facto fixada nas instâncias.

6 – A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Tributário.

Decorre expressa e inequivocamente do n.º 1 do transcrito artigo a excepcionalidade do recurso de revista em apreço, sendo a sua admissibilidade condicionada não por critérios quantitativos mas por um critério qualitativo – o de que em causa esteja a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – devendo este recurso funcionar como uma válvula de segurança do sistema e não como uma instância generalizada de recurso.

E, na interpretação dos conceitos a que o legislador recorre na definição do critério qualitativo de admissibilidade deste recurso, constitui jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal Administrativo - cfr., por todos, o Acórdão deste STA de 2 de abril de 2014, rec. n.º 1853/13 -, que «(…) o preenchimento do conceito indeterminado de relevância jurídica fundamental verificar-se-á, designadamente, quando a questão a apreciar seja de elevada complexidade ou, pelo menos, de complexidade jurídica superior ao comum, seja por força da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de um enquadramento normativo especialmente intricado ou da necessidade de concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, ou quando o tratamento da matéria tem suscitado dúvidas sérias quer ao nível da jurisprudência quer ao nível da doutrina. Já relevância social fundamental verificar-se-á quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode constituir uma orientação para a apreciação de outros casos, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio. Por outro lado, a clara necessidade da admissão da revista para melhor aplicação do direito há-de resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros e consequente necessidade de garantir a uniformização do direito em matérias importantes tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória - nomeadamente por se verificar a divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais e se ter gerado incerteza e instabilidade na sua resolução a impor a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa e tributária como condição para dissipar dúvidas – ou por as instâncias terem tratado a matéria de forma ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, sendo objectivamente útil a intervenção do STA na qualidade de órgão de regulação do sistema.».

Vejamos, pois.

O acórdão recorrido negou provimento ao recurso interposto pelos recorrentes da sentença do TAF de Viseu que julgara improcedente a impugnação judicial por eles deduzida contra liquidação adicional de IRS e juros compensatórios relativa ao ano de 2013, originada por correcção ao valor de transmissão de acções do recorrente marido no C……….. a sociedade por ele detida.

O TCA-Norte julgou inverificadas as quatro nulidades da sentença invocadas pelos recorrentes (fls. 17 a 23 da numeração autónoma), improcedente o alegado erro de julgamento da matéria de facto - recusando o aditamento ao probatório fixado de três novos factos-, bem como o alegado erro de julgamento de direito, designadamente quanto à alegada inaplicabilidade do disposto no artigo 52.º do CIRS ao caso dos autos e quanto à violação do princípio da capacidade contributiva:

Quanto a estes últimos, consignou o acórdão do TCA o seguinte:

Sob a epigrafe “divergência de valores”, o artigo 52.º do CIRS estatui que:

«1 - Quando a Autoridade Tributária e Aduaneira considere fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão, tem a faculdade de proceder à respetiva determinação.

2 - Se a divergência referida no número anterior recair sobre o valor de alienação de ações ou outros valores mobiliários, presume-se que:

a) Estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o da respetiva cotação à data da transmissão ou, em caso de desconhecimento desta, o da maior cotação no ano a que a mesma se reporta;

b) Não estando cotados em bolsa de valores, o valor de alienação é o que lhe corresponder, apurado com base no último balanço.

3 - Quando se trate de quotas, presume-se que o valor de alienação é o que àquelas corresponda, apurado com base no último balanço.» - o sublinhado é da nossa autoria.

No entendimento dos Recorrentes este normativo não é aplicável à situação dos autos porquanto «a fundamentação de facto e os indícios invocados pela AT, ao invés de se prenderem com a demonstração da invocada divergência, prenderam-se com a demonstração de que o valor de mercado da primeira transmissão não correspondeu àquele que seria o seu valor de mercado, porque fora realizada entre partes em situação de relações especiais e porque 55 dias depois a adquirente transmitira por um valor superior essas mesmas partes do capital.// Situação que não é subsumível ao disposto no artigo 52.º do Código do IRS, por não corresponder a qualquer divergência entre o valor declarado pelas partes e o valor real pelo qual o negócio foi realizado.».

Contudo, os Recorrentes laboram em erro.

Desde já, devemos salientar que a norma do n.º 1 do artigo 52.º do CIRS, se basta com a demonstração de que “pode existir” divergência entre os valores declarado e real, o que não se confunde com a efetiva existência dessa divergência. Assim, a AT apenas tem o ónus de demonstrar factos que evidenciem a possibilidade de existir divergência e, já não, factos demonstrativos de que a divergência efetivamente existe.

Como é fácil de perceber, a “possibilidade de existir” e a “efetiva existência” são coisas bem distintas, tal como também é o peso do encargo probatório necessário à demonstração de uma e de outra.

No caso em análise, temos para nós como evidente que a AT demonstrou, como lhe competia, quais as razões que fundamentavam a sua convicção de que “pode existir” de divergência entre o valor declarado/considerado e o valor real da transmissão.

Tais razões assentaram nas ditas “relações especiais” entre o Recorrente marido e a sociedade “E…………”(porque este detinha 99,6% do seu capital social), a qual, por sua vez, detinha 100% do capital social da sociedade “D………..” para quem o Recorrente transmitiu as suas ações do C………., através de uma operação de aquisição de ações com entrada em espécie, bem como nos factos de, menos de dois meses depois, esta sociedade ter alienado as mesmas ações por um valor substancialmente (55,83 vezes) superior ao considerado na operação de transmissão efetuada pelo Recorrente. Paralelamente, a AT também demonstrou diversos factos evidenciadores de que o valor real / de mercado das ações transmitidas era muito superior ao seu valor nominal.

Ora, ainda que baseada em factos demonstrativos da existência de relações especiais e de que a operação foi realizada por valor inferior ao do mercado, o certo é que a AT se reportou, sempre, à divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão.

Relembremos o que, neste inequívoco sentido, consta do RIT:

- fls.18, 3.º parágrafo: «Assim, para efeito de verificação se na operação em análise existem factos que fundadamente demonstrem divergência entre o valor declarado e o valor real da operação e do ativo transmitido (…)»;

- fls. 25, 1.º e 2.º parágrafos: «Toda a informação recolhida e analisada, nomeadamente a informação pública disponível, os rácios e indicadores económicos e financeiros e a posição no mercado do C………. fundadamente demonstram que o valor da participação à data da transmissão do Sr. A………… para a sua holding, realizada em dezembro de 2013, é muito superior ao valor nominal da mesma. // Não foi justificada a discrepância de valores desta participação social em apenas 55 dias, pois demonstramos inequivocamente que naquele espaço de tempo não ocorreu qualquer acontecimento que a justifique.»;

- fls. 25, parágrafo 8: «(…), os elementos recolhidos, fundadamente indicam, que existe divergência entre o valor declarado e o valor real da transmissão das ações, (…), pelo que se encontram reunidos os requisitos para aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 52.º do CIRS.».

Importa referir que nada na lei obsta a que a possibilidade de divergência entre o valor declarado e o valor real da operação seja indiciada pela existência de relações especiais e / ou de uma operação por valor inferior ao real ou de mercado. Na verdade, a lei não define nem limita os factos em que a AT se pode basear para considerar “fundadamente que possa existir divergência entre o valor declarado e o valor real da operação”; nesta medida, não existia qualquer impedimento legal à correção da matéria tributável à luz do artigo 52.º do CIRS.

(…)

3.2.4.3.Violação do princípio da capacidade contributiva

O princípio constitucional da igualdade tributária, como expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade (artigo 13.º da Constituição), encontra concretização “na generalidade e na uniformidade dos impostos. Generalidade quer dizer que todos os cidadãos estão adstritos ao pagamento de impostos (…); por seu turno, uniformidade quer dizer que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos” (TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5.ª edição, pág. 261). E tal critério, como sublinha CASALTA NABAIS, encontra-se no princípio da capacidade contributiva: “Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)” (Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, pág. 155). Como pressuposto e critério de tributação, o princípio da capacidade contributiva “de um lado, constituindo a ratio ou causa da tributação afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto e matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto” (CASALTA NABAIS, ob. cit., pág. 157).

Assim o tem afirmado o Tribunal Constitucional, de que é exemplo o Acórdão n.º 84/2003:

(…)

Evidenciando-se, no caso concreto, que o valor real da transmissão das ações é muito superior ao valor considerado e que os Recorrentes detêm 99.6% da sociedade holding que detém 100% do capital social da E………, na qual a operação de (re)venda das ações (alienação a entidades externas) produziu uma mais valia de 167.490.000 USD e os pagamentos à D………….. nos montantes de €9.766.706,21 (em 2014) e €42.000.000,00 (em 2015), não é possível afirmar que a tributação incide sobre uma riqueza que não existe ou que não está de acordo com a sua “capacidade de gastar”, pois os Recorrentes têm o incremento patrimonial que decorre da consequente valorização das ações que detêm naquelas sociedades.

Mais, o facto de as mais valias apuradas na transmissão das ações não terem sido objeto de tributação, de todo em todo (ocorrendo, nas palavras da AT, uma “dupla não tributação”), permitiu aos Recorrentes uma poupança fiscal que se traduz numa evidente maior capacidade contributiva.

Acresce dizer que aos Recorrentes não estava, nem poderia estar, vedada a possibilidade de demonstrarem, por um lado, não terem aderência à realidade os factos em que a AT se baseou para concluir que “pode existir divergência entre o valor declarado e o valor real” ou, por outro lado, que o valor considerado para a transmissão das ações correspondia ao valor efetivo da operação.

Mas, não tendo provado uma coisa nem outra, subsiste a factualidade avançada pela AT, bem como as conclusões que dela retirou, motivo pelo qual têm de ser mantidas tanto a sentença recorrida como a liquidação impugnada.

Improcedem, assim e também, as conclusões DD) e LL) das alegações de recurso.

Do assim decidido solicitam os recorrentes revista relativamente à questão da suscetibilidade de aplicação do artigo 52.º do Código do IRS às situações, como a dos autos, em que se apura que a mais-valia foi realizada por uma outra entidade que não o sujeito passivo deste imposto, ainda que direta e indiretamente por si detida, e respetiva compatibilidade com o princípio da capacidade contributiva; ou seja, a suscetibilidade de aplicação do artigo 52.º do Código do IRS, quando a correção do valor declarado (na transmissão das ações por entrada em espécie) é feita com o objetivo de tributar um suposto aumento de capacidade contributiva assente na consequente valorização da participação social que o alienante, pessoa singular, detém/passou a deter na sociedade que, por sua vez e por um valor superior, revendeu as ações por este primitivamente transmitidas e que realizou, enquanto entidade distinta, uma mais-valia, ou numa suposta poupança fiscal daí decorrente.

Alegam os recorrentes que a questão reveste-se, em face de inexistência de jurisprudência anterior conhecida ou especial doutrina sobre a matéria e âmbito de aplicação do artigo 52.º do Código do IRS – tal como revela a já aludida falta de invocação de doutrina ou especial jurisprudência no Acórdão recorrido ou em 1.ª instância – de ineditismo ou novidade, e revela especial capacidade de controvérsia relativamente a futuros casos do mesmo tipo, relativos a transmissão de ações, mais alegando que a questão tem significativa relevância jurídica, por se tratar de uma disposição legal de que a AT poderá passar a lançar mão para tributar situações semelhantes, urgindo definir o que decorre, com clareza, da lei – i.e., do disposto no artigo 52.º do Código do IRS –, mostrando-se necessário conjugar, para o efeito, tal disposição com outros regimes legais potencialmente aplicáveis, respetivos pressupostos, garantias dos contribuintes que visam acautelar e, bem assim, com as regras constitucionais a este respeito, não sendo, pois, simples a respetiva apreciação e sendo inegável a premência da intervenção do STA, enquanto órgão de cúpula da justiça administrativa e fiscal, para dissipar dúvidas e alcançar a melhor aplicação das normas jurídicas sobre a questão subjacente aos presentes autos, referente à aplicação do disposto no artigo 52º do Código do IRS, para uma melhor aplicação do direito.

Não obstante o brilho da alegação dos recorrentes na tentativa de demonstração da verificação in casu dos pressupostos do recurso, não estamos convencidos da necessidade de admissão da revista.

A pronúncia do TCA Norte quanto à aplicabilidade do artigo 52.º do Código do IRS ao caso dos autos não é ostensivamente errada nem juridicamente insustentável, a reclamar a revista para melhor aplicação do Direito. A pronúncia do Tribunal “a quo” encontra-se fundamentada, de facto e de direito, e se não invoca outra jurisprudência ou doutrina é porque esta não é conhecida, o que desde logo pode ser tido como indício de que, ao contrário do alegado, esta questão não tem o relevo social que os recorrentes lhe atribuem.

E também não nos parece que a questão da interpretação do disposto no artigo 52.º do Código do IRS seja especialmente complexa ou melindrosa, sequer que reclame a intervenção do órgão de cúpula de jurisdição para dissipar dúvidas interpretativas.

Também a situação dos autos, com os seus contornos e motivações muito específicos, dificilmente são replicáveis num “número indeterminado de casos futuros”, justificativo da admissão da revista para melhor aplicação do direito.

Não se vê, pois, contrariamente ao alegado, que estejam preenchidos in casu os pressupostos legais do recurso excecional de revista, pelo que este não será admitido.

- Decisão -

6 - Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso de revista, por não se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos legais.


Custas pelos recorrentes, com dispensa do remanescente da taxa de justiça, como requerido, ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do RCP, porquanto a cause se afira “de complexidade inferior à comum”.

Comunique-se ao DIAP de Viseu (1.ª Secção).

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2021. - Isabel Marques da Silva (Relatora) - Francisco Rothes - Aragão Seia.