Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0466/14 1.BEMDL 0273/18
Data do Acordão:03/20/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24338
Nº do Documento:SA2201903200466/14
Data de Entrada:03/14/2018
Recorrente:AT- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A.......
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A FAZENDA PÚBLICA, inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (TAF de Mirandela) datada de 11 de Julho de 2017, que julgou parcialmente procedente a impugnação deduzida por A…….., contra a liquidação de IUC de 2008, no valor total de € 2.522,97, tendo anulado as liquidações de IUC referentes aos veículos de matrícula …….., …….. e ………

Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:
I-A douta sentença sob recurso concedeu parcial provimento ao pedido formulado pelo IMPUGNANTE, anulando liquidações de IUC com fundamento na circunstância de a ORIGINÁRIA DEVEDORA, sujeito passivo das mesmas, não ser, efectivamente ou de facto e nas datas em que ocorreram os factos tributários, a proprietária dos veículos sobre os quais tais liquidações incidiram e na certeza de que os sujeitos passivos deste imposto são os proprietários dos veículos.
II-Contudo, como decorre do artigo 3.° do CIUC, os sujeitos passivos do IUC não são os proprietários dos veículos, mas sim as (...) as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.
III-Sobre a citada redacção do artigo 3.°, n.° 1, do CIUC foi introduzida, pelo Governo, através do Decreto-Lei n.° 41/2016, de 1 de Agosto, no uso da autorização legislativa que lhe foi concedida pelo artigo 169.°, alínea a), da Lei n.° 7-A/2016, de Março, visando, precisamente, sanar a controvérsia que a redacção original, conjugada com a do artigo 6.°, n.° 1, gerou, a respeito da incidência subjectiva do imposto, razão pela qual à alteração foi atribuída natureza interpretativa.
IV-Significa isto que, independentemente de ao tempo da ocorrência dos factos tributários se encontrar em vigor a anterior redacção do artigo 3.º, n.° 1, do CIUC, deve esta norma, em qualquer das suas versões, ser interpretada de harmonia com a solução encontrada pelo próprio legislador e que revela o que sempre pretendeu alcançar: tributar, em sede de IUC, as pessoas em nome das quais se encontrasse registada a propriedade dos veículos.
V-Verificando-se, como se verifica, que, na data da ocorrência dos factos tributários, a propriedade dos veículos se encontrava registada em nome da ORIGINÁRIA DEVEDORA, conclui-se que as liquidações impugnadas não padecem de vício algum, seja de facto ou de Direito, porquanto só a ORIGINÁRIA DEVEDORA podia ter sido ser o sujeito passivo das mesmas.
VI-Razão pela qual pensamos que, na douta sentença sob recurso, se fez errada interpretação e aplicação do Direito, em claro prejuízo da FAZENDA PÚBLICA, não podendo tal aresto manter-se indemne na ordem jurídica.

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público notificado, pronunciou-se pela procedência do recurso, e manutenção das liquidações de IUC sindicadas. No essencial o Ministério Público entendeu que, “(…)Decorre do disposto nos artigos 3.°/1, 4.°/3 e 6.°/1 do CIUC, aprovado pela Lei 22-A/2007, de 29/07, que aprovou o CIUC, que o legislador visou tributar a pessoa em nome da qual o veículo está registado, independentemente de a mesma ser ou não o efetivo proprietário, sendo que, não obstante a norma do referido artigo 3.°/1 poder violar o princípio da equivalência, não violará qualquer norma constitucional isto porque, tal desrespeito pelo princípio da equivalência decorre de exigências de praticabilidade que visam facilitar a determinação do sujeito passivo do IUC e, consequentemente, arrecadar o tributo.
Assim, sendo, estando os veículos em causa nos autos, em 2008, registados na CRA em nome da devedora originária, sendo o recorrido responsável subsidiário pelo pagamento da dívida, as liquidações sindicadas devem ser mantidas na ordem jurídica. (…)”.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
1. O Impugnante foi citado por reversão da dívida da inicial executada “B………., Lda, NIPC …….., com sede na R. ……., ….., ………., relativamente a IUC de 2008 dos veículos com as matrículas ………, ………., ……., …….., ……… no valor de 2.457,48€.
2. Os aniversários das matrículas daqueles veículos verificaram-se nas seguintes datas:
a. …….., em Fevereiro;
b. ………, em Maio;
c. ………, em Junho;
d. ………, em Outubro; e
e. ………, em Agosto
Cfr. fls. 2, 5, 8, 11 e 14 do PA junto ao processo 467/14.0BEMDL
3. Em 13/10/2013 aqueles veículos estavam registados em nome da B………, Lda;
4. Em 20/3/2014 a “B…….” requer o cancelamento das matrículas dos veículos …….., ………., ………. e ………;
5. A “B…….” vendeu os veículos ………, ………, ……… e …….., em, respectivamente, 19/9/2008, 11/5/2007, 12/11/2007, 23/1/2008;
Não se provou que a “B…….” tivesse vendido a viatura de matrícula ……...
Nada mais se levou ao probatório.

Há agora que conhecer do recurso que nos vem dirigido.
Sobre a questão suscitada no presente recurso, de a norma introduzida pelo DL n.º 41/2016 de 01/08 ter natureza interpretativa e abranger por essa razão as situações anteriores, tal como defende a recorrente, já se pronunciou este Supremo tribunal em sentido contrário no seu acórdão datado de 18.04.2018, recurso n.º 0206/17.
Escreveu-se aí com interesse:
Em causa neste recurso está definir se a decisão que condenou em coima a arguida por não pagamento de IUC referente a um veículo que se encontrava registado em seu nome, mas cujo direito de propriedade fora já transferido para outra entidade, como comprovado nos autos, enferma de vício de violação de lei, como entendeu a sentença recorrida.
Em causa encontra-se IUC relativo aos anos de 2009, 2010 e 2011, relativo ao veículo automóvel matrícula ………. que não foi pago pela arguida.
O primeiro diploma a regular esta matéria foi o Decreto-Lei 59/72, de 30 de Dezembro. Desde o início da sua vigência até ao Decreto-Lei nº 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o Código do Imposto Único de Circulação, eram sujeitos passivos do imposto as pessoas em nome das quais os veículos se encontravam matriculados à data da respectiva liquidação.
O art.º 3.º, na redacção vigente à data da prática das infracções sob análise, estabelecia, quanto à incidência subjetiva, que:
«1 – São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.».
Além disso, no n.º 2 do mesmo preceito, equiparava a proprietários «os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação» o que foi lido pela doutrina como dando particular preponderância ao efectivo uso ou disponibilidade do bem, sobre os demais direitos contidos no direito de propriedade sobre coisas móveis, como definidos no art.º 305.º do Código Civil.
Na interpretação do referido normativo teremos presentes os ditames do art.º 11.º da Lei Geral Tributária:
«1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.
2 - Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm salvo se outro decorrer directamente da lei.
3 - Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.»
Atento o elemento literal, e histórico do preceito em análise e, tendo em conta a mera análise gramatical do texto resulta que a primeira estatuição é a de que: São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos.
A expressão: considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados em nada altera aquela primeira formulação, sendo apenas uma indicação, aliás consentânea com as normas de direito civil e a eficácia do registo automóvel. Estando em causa um móvel sujeito a registo, registo este sem efeitos constitutivos, e com efeitos de mera publicidade, a forma simples de conhecer os proprietários dos veículos automóveis é consultar o registo automóvel cuja finalidade é exactamente facultar esse conhecimento por todos os interessados.
O registo de veículos automóveis tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico, art.º 1.º do Regulamento do Registo Automóvel, Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro. Nos termos do disposto no seu art.º 29.º, «são aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e no respectivo regulamento.»
Dado que o registo do direito de propriedade sobre uma coisa móvel, cuja validade depende da regularidade do respectivo acto constitutivo, apenas confere publicidade ao acto registado, sempre é possível ilidir a presunção de que o titular inscrito no registo coincide com o efectivo titular do direito registado. Assim, quando o titular do direito de propriedade inscrito no registo não coincidir com o titular do direito de propriedade é possível ilidir a presunção de que o titular registado é o titular do direito registado, em numerosas situações com repercussões ao nível do direito civil e comercial. Deverá admitir-se que o mesmo aconteça, em sede de direito fiscal, com a consequente possibilidade de produzir a alteração em sede de incidência subjectiva de imposto dando prevalência ao acto constitutivo do direito sobre o acto registado.
O legislador pretendeu com o artigo 3.º do Código do Imposto Único de Circulação dotar a Administração Tributária de um mecanismo de fácil identificação dos sujeitos passivos deste imposto socorrendo-se da presunção constante do art.º 7.º do CRP, aplicável subsidiariamente ao registo automóvel de que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
A Administração Tributária desconhece os concretos negócios que podem estabelecer os contribuintes e tributa a circulação dos veículos por referência ao veículo e ao titular inscrito no registo automóvel que, na maioria dos casos coincide efectivamente com o titular do direito de propriedade sobre tal móvel sujeito a registo.
Houve um longo período de tempo em que os contribuintes que vendessem os seus automóveis, sem se assegurarem nos termos da negociação que a alteração do registo seria oportunamente efectuada, se viam confrontados com a interpelação para pagamento deste imposto por automóveis de que já não eram proprietários, e que, com grande probabilidade já não utilizavam, sem nada poderem fazer.
O legislador, sem alterar as regras do IUC, veio em 2014 a dotar os vendedores de um mecanismo legal que lhes passou a permitir procederem à actualização do registo, criando um regime especial para o registo requerido apenas pelo vendedor, com base em documentos indiciadores da compra e venda, com notificação à parte contrária a cargo do serviço de registo, com o DL n.º 177/2014 de 15 de Dezembro.
O art.º 169.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março - Orçamento de Estado 2016 – concedeu autorização legislativa no âmbito do imposto único de circulação para que o legislador definisse o exacto alcance do disposto no art.º 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, nomeadamente sobre a impossibilidade de o contribuinte poder demonstrar, para efeitos de tributação nesta sede que, ainda que constasse do registo automóvel como titular do direito de propriedade sobre o veículo em causa, não era efectivamente o titular desse direito, à data da liquidação, nos seguintes termos:
«Autorização legislativa no âmbito do imposto único de circulação
Fica o Governo autorizado a introduzir alterações no Código do Imposto Único de Circulação, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, com o seguinte sentido e extensão:
a) Definir, com carácter interpretativo, que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, no n.º 1 do artigo 3.º;».

Tal autorização legislativa veio a ser concretizado pelo DL 41/2016, de 01/08, cujos exactos termos, ao invés do que fez relativamente a outros impostos, não assumiu carácter interpretativo. Tendo sido concedida autorização legislativa para o governo regular certa matéria, com carácter interpretativo, dispõe, ainda, o órgão executivo, nesta circunstância, da possibilidade de consagrar ou não esse carácter interpretativo, por tal se conter dentro dos limites da autorização concedida.
Concluindo-se, assim, que a norma em apreço à data da prática dos factos continha uma presunção ilidível e que na sentença proferida se seguiu esta interpretação, fazendo-se, por consequência, uma aplicação das regras do ónus da prova que veio a determinar a procedência parcial da pretensão do recorrido, não se encontra qualquer erro de julgamento tal como indicado pela recorrente que possa determinar a revogação do decidido.

Termos em que acordam os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
D.n.
Lisboa, 20 de Março de 2019. – Aragão Seia (relator) – Dulce Neto – Pedro Delgado.