Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01171/09
Data do Acordão:02/24/2010
Tribunal:2 SUBSECÇÃO DO CA
Relator:POLÍBIO HENRIQUES
Descritores:RESERVA DA VIDA PRIVADA
INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCIPIO DA ADEQUAÇÃO
VIDEOVIGILANCIA
Sumário:I - A utilização de equipamentos de videovigilância consubstancia uma limitação/restrição ao direito fundamental de reserva da intimidade da vida privada.
II - A vigilância dos cidadãos, por meio de câmaras de vídeo, deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada (art. 2º da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro), a não ser que se imponha comprimir este direito, de acordo com o princípio da proporcionalidade, para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18º/2 da CRP).
III - Quando assim for, tem de se mostrar idónea para conseguir o objectivo proposto (princípio da adequação), necessária, por não existir outro meio, capaz de atingir esse objectivo, menos oneroso para o direito fundamental (princípio da necessidade ou da indispensabilidade) e equilibrada, isto é, uma medida de sacrifício não excessiva, relativamente à finalidade pretendida (princípio da proporcionalidade propriamente dito).
Nº Convencional:JSTA00066301
Nº do Documento:SA12010022401171
Data de Entrada:01/08/2010
Recorrente:B...
Recorrido 1:COMIS NAC DE PROTECÇÃO DE DADOS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL.
Objecto:AC TCAS
Decisão:NEGA PROVIMENTO.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - ACTO.
ACÇÃO ADM ESPECIAL.
Área Temática 2:DIR CONST - DIR FUND.
Legislação Nacional:CONST76 ART18 N2 ART26 N1 ART64.
CCIV66 ART66 ART70 ART80.
L 67/98 DE 1998/10/26 ART2.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E OUTRO CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA VI 4ED PAG468.
ADRIANO DE CUPIS OS DIREITOS DA PERSONALIDADE PAG129.
CAPELO DE SOUSA O DIREITO GERAL DE PERSONALIDADE PAG237.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo
1. RELATÓRIO
“B…”, já devidamente identificada nos autos, intentou, no Tribunal Central Administrativo Sul, acção administrativa especial de impugnação da Decisão nº 470/2008, da Comissão Nacional da Protecção de Dados (CNPD), na parte em que indeferiu “a recolha e visionamento de imagens no refeitório, na sala de convívio /actividades, no corredor do jardim interno e corredores de acesso aos quartos” e determinou a retirada das câmaras orientadas para aqueles espaços.
Pelo acórdão proferido a fls. 71-75, o Tribunal Central Administrativo Sul julgou a acção totalmente improcedente.
1.1. Inconformada, a autora recorre para este Supremo Tribunal apresentando alegações com as seguintes conclusões:
a) Os meios de vigilância pretendidos pela recorrente são proporcionais e adequados face à finalidade única que tem em vista – a protecção e segurança das pessoas dos seus residentes;
b) A recolha de imagens requerida pela recorrente, na parte indeferida, reveste também e objectivamente uma natureza de vigilância genérica, visando detectar factos, situações ou acontecimentos acidentais;
c) A videovigilância requerida é idónea para conseguir o objectivo proposto; é necessária, no sentido de que não existe outra medida capaz de assegurar o objectivo com igual grau de eficácia e economia; é proporcional, na medida em que é equilibrada ao ponto de, através dela, serem atingidos substanciais e superiores benefícios ou vantagens para o interesse geral dos residentes atenta a especificidade da sua situação quando confrontados com outros bens ou valores eventualmente em conflito;
d) Face à grande margem de discricionariedade de que dispõe a CNPD, no mínimo e previamente a qualquer deliberação de indeferimento, ainda que parcial, deveria ter-se-lhe estabelecido a dúvida sobre a verificação dos princípios de idoneidade, necessidade e proporcionalidade que presidem à autorização de instalação do sistema de videovigilância que lhe havia sido requerida, impondo-se à Comissão antes da prolação da Decisão/Autorização confirmada pelo Acórdão recorrido, mandar averiguar a realidade factual/circunstâncias concretas do local a visionar através dos seus serviços inspectivos por forma a poder avaliar a adequação, pertinência e justos limites dos dados a recolher relativamente às finalidades a que se destinam, só assim ficando em condições de aplicar a lei na verdadeira dimensão dos interesses e direitos por ela protegidos, para o que, aliás, ainda está a tempo, se for sufragado o entendimento da recorrente acabado de expressar;
e) A decisão recorrida terá incorrido no vício de violação de lei, por infringir, designadamente, o disposto nos arts. 3º, al. b), 4º, nº 4, particularmente o 5º, nº 1, al. c) e 8º, da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro.
Termos em que, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, na procedência das conclusões anteriores, deve o douto Acórdão recorrido ser revogado, procedendo a acção, autorizando-se a instalação da videovigilância nos termos requeridos pela recorrente, como é de JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. OS FACTOS
No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:
a) A A. é proprietária de uma casa de repouso de idosos, em regime de internamento, que dá apoio até 84 residentes durante as 24 horas do dia, estando em regra preenchidas cerca de 80 vagas;
b) A referida casa de repouso está instalada num prédio urbano situado no Casal …, freguesia de S. Martinho, concelho de Sintra, o qual é constituído por um edifício de r/c, 1º e 2º andar, com a área coberta de 2310, 00 m2 e em logradouro de 22 700,00 m2, inscrito na matriz sob o art. P 4010 da referida freguesia, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº 01041/090288;
c) Dada a dimensão da área coberta, existem longos corredores de acesso aos quartos, outro dirigido ao jardim interno e também amplas salas de convívio;
d) Tendo a A. requerido a instalação de um sistema de videovigilância na aludida casa de repouso, a CNPD emitiu o “Projecto de Autorização nº 250/07” que consta de fls. 25 a 29 do processo administrativo apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
e) Notificada desse Projecto de Autorização para efeitos do disposto nos arts. 100º e 101º do CPA, a A. pronunciou-se nos termos constantes de fls. 32 e 33 do processo administrativo apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
f) Em 17/3/2008, a CNPD emitiu a Autorização nº 470/2008 que consta de fls. 34 a 42 do processo administrativo apenso cujo teor aqui se dá por reproduzido e onde se refere, além do mais, o seguinte:
“ (…) 8. As imagens não podem servir para controlo do desempenho profissional dos trabalhadores, nem as câmaras podem estar dirigidas sobre estes durante a actividade laboral segundo o art. 20º do Código do Trabalho. Neste sentido, a câmara colocada na entrada/saída da lavandaria deve ser colocada de forma a apenas captar o acesso e nunca o seu interior.
9. A recolha de imagens deve confinar-se ao perímetro do Centro e não pode envolver a recolha de imagens nas zonas limítrofes ou na via pública.
10. A CNPD entende não autorizar a recolha de imagens no refeitório, na sala de convívio/actividades, no corredor do jardim interno e corredores de acesso ao quarto, pois essa captação de imagens mostra-se desnecessária e excessiva para os direitos dos titulares, face à finalidade prosseguida pelo presente tratamento. Devem as referidas câmaras ser retiradas”.
2.2. O DIREITO
Como se vê pelo relato supra, o presente recurso jurisdicional tem por objecto o acórdão proferido, a fls. 71-75, pelo Tribunal Central Administrativo Sul, que julgou improcedente a acção administrativa especial, na qual se discute a (i)legalidade da Decisão nº 470/2008, da Comissão Nacional da Protecção de Dados (CNPD), na parte em que indeferiu a recolha e visionamento de imagens no refeitório, na sala de convívio /actividades, no corredor do jardim interno e nos corredores de acesso aos quartos e determinou a retirada das câmaras orientadas para aqueles espaços, na casa de repouso para idosos de que é proprietária a autora, ora recorrente.
Para boa compreensão, olhemos o essencial do discurso justificativo do aresto impugnado.
Começou por dizer o seguinte:
“(…) O art. 2º, da Lei nº 67/98, de 26/10, estabelece, como princípio geral, que “o tratamento de dados pessoais deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais”.
Por tratamento de dados pessoais entende-se qualquer operação sobre dados pessoais efectuada com ou sem meios autorizados – cfr. art. 3º, al. b).
Os dados pessoais devem ser “adequados, pertinentes e não excessivos relativamente às finalidades para que são recolhidos e posteriormente tratados” – cfr. art. 5º, nº 1, al. c).
O art. 8º refere-se ao tratamento de dados pessoais relativos a suspeitas de actividades ilícitas, infracções penais e contra-ordenações, estabelecendo que ele pode ser autorizado pela CNPD, observadas as normas de protecção de dados e de segurança da informação, quando tal tratamento for necessário à execução de finalidades legítimas do seu responsável, desde que não prevaleçam os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados – cfr. nº 2 desse preceito.
Este normativo não parece ser aplicável à situação em apreço onde não estão em causa suspeitas de actividades ilícitas, infracções penais ou contra-ordenações.
Porém, como em todas as situações em que estão em causa limitações de direitos têm de estar presentes os princípios da necessidade, adequação e da proporcionalidade entre o objectivo visado e a intensidade ou gravidade da ingerência (…)”.
De seguida, o acórdão invocou, transcrevendo em parte, as considerações do Parecer nº 121/80, de 23/7/81 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República.
Depois, prosseguindo, disse o seguinte:
“(…) O direito à reserva da intimidade da vida privada está protegido pela CRP e aí consagrado como um direito fundamental (cfr. art. 26º).
Não há dúvidas que a utilização dos equipamentos de videovigilância correspondem a uma limitação ou restrição desse direito fundamental (cfr. Ac. do T.C. de 12/6/2002 in DR, I Série A, de 8/7/2002).
Assim, estando em causa uma medida restritiva de um direito fundamental dos utentes da casa de repouso, ela tem de se mostrar idónea para conseguir o objectivo proposto, necessária por não existir outra capaz de atingir esse objectivo e equilibrada, por o sacrifício do direito à privacidade não se mostrar excessivo perante a finalidade pretendida.
Destinando-se a videovigilância requerida à protecção dos utentes da casa de repouso, afigura-se-nos, tal como entendeu a deliberação impugnada, que a recolha de imagens no refeitório, sala de convívio/actividades, corredor do jardim interno e corredores de acesso aos quartos não é necessária e permite uma intromissão desproporcionada na “liberdade de movimentos” e na privacidade daqueles utentes, devendo a finalidade ser alcançada com o recurso a pessoal habilitado.
Deste modo, e considerando que a restrição do direito fundamental em questão é desnecessária e excessiva por existirem medidas menos gravosas que permitem atingir o objectivo pretendido, deve a presente acção ser julgada improcedente”.
A autora discorda desta decisão porque considera, ao contrário, que os meios de vigilância pretendidos, são proporcionais face à finalidade única que tem em vista – a protecção e segurança das pessoas dos residentes no seu Lar/Casa de Repouso.
Deixamos o essencial da argumentação que alinha em abono da sua tese:
- a recolha de imagens requerida pela recorrente, na parte indeferida, reveste a natureza de vigilância genérica destinada a detectar factos, situações ou acontecimentos incidentais que ocorram com os residentes, porém em lugares abertos e “públicos”, no sentido de que a eles todos (residentes e trabalhadores) têm acesso, maxime os ajudantes de acção directa que por eles velam, que não em lugares em que a individualidade e a reserva privada de cada um tenha de ser especialmente protegida;
- a maior parte dos residentes são pessoas de idade já muito avançada, padecendo de doenças degenerativas, designadamente Alzheimmer e Parkinson, que estão sujeitos a imprevisíveis comportamentos, quedas, desfalecimentos e outras sequelas dos males que os afectam, que carecem de ser detectados e, dada a dimensão da área coberta das instalações, não é praticamente possível estarem sempre, a cada momento, fisicamente acompanhados do pessoal de apoio, não sendo possível ter adstrito a cada residente, ao longo das 24 horas do dia, um assistente que individual e pessoalmente o acompanhe a cada passo;
- pese embora estar permanentemente de serviço uma alargada equipa de pessoal que de todos cuida, designadamente durante o período nocturno há ângulos de visão que escapam à protecção/vigilância directa, isto para não falar de situações de emergência que fazem desviar os trabalhadores dos locais de rotina;
- lembra-se que os residentes (cerca de oitenta), livres nas suas pessoas, circulam pelas instalações da Casa de Repouso (corredores, salas de repouso/convívio e refeitório), por vezes a horas inusitadas em razão de alguns terem dificuldades em se situar no tempo e no espaço, destinando-se/dirigindo-se a videovigilância indeferida precisamente a acautelar e permitir meios de socorro imediatos quando aqueles comportamentos/ocorrências têm lugar fora do campo de visão imediata dos trabalhadores de serviço, que não “intuitu personae” aos residentes e, muito menos, ao escrutínio da acção dos trabalhadores;
- o indeferimento da pretensão da recorrente gera uma incompreensível contradição: os residentes podem ser vistos, posto que directamente, nos actos mais íntimos da vida humana, como por exemplo banho pessoal e satisfação de necessidades fisiológicas, não podem ser visionados quando imprevista e livremente cometem um acto agressivo típico de doenças degenerativas de que padecem ou, saindo imprevistamente do próprio quarto a horas de silêncio e descanso, vagueiam pelos corredores ou acedem às salas, gerando situações que carecem de pronto socorro e ajuda, que potencialmente são mais retardados se não houver videovigilância.
Razões pelas quais considera que:
- a videovigilância requerida é idónea para conseguir o objectivo proposto; é necessária, no sentido de que não existe outra medida capaz de assegurar o objectivo com igual grau de eficácia, salvo se cada utente tivesse em cada momento e em cada lugar um “impedido às ordens”, o que se manifesta prática e economicamente impossível; é proporcional, na medida em que é equilibrada ao ponto de, através dela, serem atingidos substanciais e superiores benefícios ou vantagens para o interesse geral dos residentes quando confrontados com outros valores ou bens eventualmente em conflito;
- respeita também o princípio da intervenção mínima, posto que, por um lado, não atinge o direito à privacidade e à imagem dos residentes, e muito menos no confronto deste com o bem/valor superior que se pretende acautelar – o seu bem estar e segurança. E, por outro lado, não comprime os direitos dos trabalhadores eventualmente visionados com a utilização destes meios, que, aliás, sempre cederiam face à maior relevância daquele.
São estas as posições em confronto.
Nelas há uma coisa em comum: ambas concordam quanto ao regime legal aplicável e aos princípios de direito que o enformam.
O mesmo é dizer que a autora não discute a bondade da doutrina enunciada no acórdão impugnado, assente nas seguintes ideias essenciais: (i) a utilização de equipamentos de videovigilância consubstancia uma limitação/restrição do direito à reserva da intimidade da vida privada; (ii) esse direito tem assento constitucional (art. 26º/1), com a natureza de direito fundamental; (iii) a vigilância dos cidadãos, por meio de câmaras de vídeo, deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada (art. 2º da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro), a não ser que se imponha comprimir este direito, de acordo com o princípio da proporcionalidade, para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18º/2 da CRP); logo, ela tem de se mostrar idónea para conseguir o objectivo proposto (princípio da adequação), necessária, por não existir outro meio, capaz de atingir esse objectivo, menos oneroso para o direito fundamental (princípio da necessidade ou da indispensabilidade) e equilibrada, isto é, uma medida de sacrifício não excessiva, relativamente à finalidade pretendida (princípio da proporcionalidade propriamente dito).
E, se a autora não põe em crise esta doutrina, pela nossa parte, não vemos, igualmente razão para, neste ponto divergir do aresto impugnado que, do modo indicado, perfilha uma interpretação correcta do regime jurídico da videovigilância (Lei nº 67/98, de 26 de Outubro) e que, à luz dos citados parâmetros constitucionais, assegura a concordância prática/harmonização dos bens que estão em jogo.
Posto isto, resta o pomo da discórdia que radica na ponderação de bens no caso concreto.
O acórdão impugnado, acompanhando a deliberação da Comissão Nacional de Protecção de Dados, considerou que a captação de imagens no refeitório, na sala de convívio/actividades, no corredor do jardim interno e corredores de acesso aos quartos, se mostra “desnecessária e excessiva para os direitos dos titulares, face à finalidade prosseguida”.
Ao invés, a autora, pensa que a videovigilância é idónea, necessária e não excessiva.
A questão reclama uma análise cuidada.
De um lado, a dignidade humana a impor a melhor e mais eficaz protecção possível da saúde e da velhice art. [64º/1/2/a) da CRP], sendo que a videovigilância, naqueles locais, poderá, na verdade, pensar-se como instrumento útil à rápida assistência a prestar aos utentes, em particular aos que se apresentam desorientados no tempo e no espaço.
Do outro lado, a mesma dignidade humana a reclamar o «direito ao segredo do ser» Expressão colhida em Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa”, Anotada, 4ª ed., Vol. I, p. 468, envolvendo o direito à imagem, à privacidade de comportamentos, a uma esfera íntima do ser particular de cada um, cuja reserva deve ser guardada (art. 80º C. Civil).
Passemos à ponderação, mais fina, dos interesses envolvidos no caso concreto.
A recolha de imagens pretendida é, sem dúvida, uma limitação/restrição do direito à reserva da intimidade da vida privada de utentes, trabalhadores e utilizadores esporádicos (por exemplo, os visitantes dos residentes) uma vez que, não sendo selectiva, sobre todos eles incidirá a videovigilância.
É defendida pela recorrente por ser uma medida que se apresenta como idónea, útil e muito eficiente para protecção e segurança das pessoas residentes no seu Lar/Casa de Repouso.
Concede-se a adequação, a utilidade e a eficiência, bem como a relevância constitucional dos bens a proteger. Mas importa, ainda, saber se a restrição é, não só, indispensável, mas também, a mais benévola possível para o direito fundamental, em relação com a finalidade pretendida.
Deixando de lado os trabalhadores e os demais titulares esporádicos para cuja protecção e segurança a medida não é, seguramente, necessária, centremo-nos nos utentes.
O direito das pessoas à reserva sobre a intimidade da sua vida privada, sejam elas mais ou menos idosas, mais ou menos saudáveis, não se extingue, quando as mesmas são acolhidas em Lares e Instituições de Solidariedade e Apoio Social. Sofre uma inevitável compressão decorrente da vivência diária em comunidade e, para além disso, a extensão das respectivas reservas poderá variar, é certo, em razão das particulares condições de saúde de cada uma delas. Maior para as que se encontrem bem e com autonomia para se cuidarem a si próprias. Mais pequena para as dependentes que careçam de cuidados intrusivos nos actos mais íntimos da vida humana, como, por exemplo a higiene pessoal e a satisfação das necessidades fisiológicas.
Ora, para a segurança e protecção dos utentes com saúde física e mental em grau que lhes permita fazer as suas vidas com independência e autonomia, a videovigilância, não é indispensável. Para tanto bastará a vigilância normal, disponível, atenta, competente e discreta, do pessoal de apoio. E esta é muito menos onerosa para o seu direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada.
É que, a despeito de partilharem espaços comuns de vida e da exposição inerente a essa condição, os utentes, por serem pessoas (arts. 66º e 70º do C. Civil), continuam, ainda assim, na medida do possível, a ter o direito a locais e a tempos para estarem consigo mesmos e/ou com os seus, nos quais se possam movimentar, alimentar, conviver, ou repousar à vontade, de acordo com o seu modo de ser, usando o seu tempo com a maior circunspecção possível, sem o gravame de estarem permanentemente sob observação de um olhar indiscreto do qual não podem nunca livrar-se, que grava a sua imagem e a pode reproduzir. Têm direito a um círculo de resguardo Vide, a propósito, Adriano De Cupis, “Os Direitos da Personalidade”, p. 129 e Rabindranath Capelo de Sousa, “O Direito Geral de Personalidade”, p. 327
da sua imagem e dos seus comportamentos particulares que a videovigilância sacrificaria, sem necessidade, logo, desproporcionadamente.
A recorrente enfatiza a situação dos residentes portadores de doenças degenerativas, com alterações de comportamento e que deambulam desorientados no tempo e no espaço, podendo pôr em perigo a sua própria segurança e a de terceiros.
Para este grupo, reconhece-se a videovigilância poderia ser um instrumento de grande eficácia e um precioso auxiliar da assistência que lhes é devida.
Mas, mesmo para essas, a intromissão e o conhecimento de tais manifestações deve limitar-se ao indispensável e à menor divulgação possível, de molde a garantir-lhes, igualmente, o máximo de resguardo possível.
A circunstância de ser já menos extensa a área de reserva da intimidade da sua vida privada, por, desgraçadamente, carecerem de cuidados que expõem aspectos mais íntimos do seu ser ao conhecimento do pessoal de apoio que deles cuida, não legitima, por si só, a gravação das imagens e dos seus comportamentos, tantas vezes chocantes, próprios de vidas em fim de ciclo e em degradação.
Se não é já possível o sigilo sobre tais manifestações, é imperioso que delas se guarde o máximo resguardo, a menor divulgação possível, em nome da dignidade das pessoas que ainda são. A velhice ou os distúrbios de que padeçam, deixando-os mais expostos e vulneráveis, não os indignificam, não os tornam credores de menor protecção no que respeita à sua intimidade/privacidade. E só se, de todo em todo, não fosse possível, com outras medidas, defender terceiros da sua agressividade e/ou protegê-los a eles próprios da autolesão, seria lícito submetê-los a uma observação constante, através da gravação de imagens.
Não é o caso, tal como bem o entenderam a Comissão Nacional de Protecção de Dados e o tribunal a quo. Os utentes com tais doenças estão, seguramente, identificados e sabe-se onde pernoitam. Podem minimizar-se os perigos para a sua protecção e segurança com uma vigilância pessoal particularmente atenta e competente.
Esta é uma medida que permitirá alcançar o objectivo pretendido e será muito menos gravosa para o direito fundamental à reserva da vida privada de tais pessoas.
Neste quadro, ponderados todos os interesses em jogo, nos termos atrás expostos, concordamos com o tribunal a quo enquanto considerou que a videovigilância requerida pela autora era, na circunstância, relativamente à finalidade pretendida, uma restrição desnecessária e excessiva ao direito fundamental do direito à reserva da intimidade da vida privada do universo das pessoas que a ela ficariam sujeitas.
3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela autora, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS, e a procuradoria em 1/8 da taxa de justiça devida.
Lisboa, 24 de Fevereiro de 2010. – António Políbio Ferreira Henriques (relator) – Maria Angelina DominguesAntónio Bento São Pedro.