Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0145/15.2BEBRG
Data do Acordão:02/08/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IRS
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
APRESENTAÇÃO TARDIA DA DECLARAÇÃO
REGIME SIMPLIFICADO DE TRIBUTAÇÃO
Sumário:I - A apresentação, pelo sujeito passivo, da declaração de rendimentos em falta depois de decorrido o prazo a que alude o artigo 76.º, n.º 3, do Código do IRS não tem necessariamente por efeito a anulação da liquidação efetuada pela administração nos termos do mesmo dispositivo legal;
II - É, por isso, ilegal e deve ser revogada a decisão judicial de anular a liquidação efetuada nos termos do número anterior apenas pelo facto de tal declaração ter sido entretanto apresentada;
III - No entanto, o artigo 76.º, n.º 4, do Código do IRS deve ser interpretado no sentido de que tal liquidação pode ser corrigida no prazo da caducidade do direito respetivo se for apurado nesse prazo que a realidade tributária do sujeito passivo é diversa da apurada através daquela forma de liquidação;
IV - A correção a que alude o número anterior pode ser efetuada a pedido do contribuinte que apresente a declaração em falta, devendo os dados respetivos ser investigados e livremente valorados pela administração no quadro dos seus poderes oficiosos de investigação;
V - É, por isso, ilegal e deve ser anulada a decisão administrativa de indeferir o pedido de revisão dessa liquidação por não ter sido apresentada nos prazos da reclamação graciosa ou por não estarem reunidos todos os pressupostos dessa revisão que constam da lei geral.
Nº Convencional:JSTA000P30533
Nº do Documento:SA2202302080145/15
Data de Entrada:11/10/2021
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA interpôs recurso da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por AA, contribuinte fiscal n.º ..., com domicílio indicado na Rua ..., 4760-... Vila Nova de Famalicão, e que teve por objeto mediato a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (“IRS”) respeitante ao ano de 2011 e dos correspondentes juros compensatórios (liquidação n.º 2013 5000037374, de 2013/01/21), no montante total de € 5.781,66.

Com a interposição do recurso apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões: «(…)

A. Como resulta do probatório o Impugnante não apresentou, nos termos legais, a declaração de IRS relativo ao ano de 2011.

B. Perante essa omissão, a AT notificou-o, nos termos do estatuído no artigo 76° n.º 3 para, em 30 dias, apresentar a declaração em falta, o que o Impugnante não fez.

C. Perante essa omissão a AT procedeu à liquidação do tributo, no estrito cumprimento do disposto no artigo 76.º do CIRS.

D. Insurge-se o Impugnante contra o ato de liquidação alegando para tanto que, não apresentou declaração de IRS para 2011 depois de notificado, o que efetuou em 2013 e que bem andou a AT ao acudir-se do artigo 76º do CIRS, mas que deveria fazer as deduções que declarou posteriormente na sua declaração tendo em conta a tributação pelo lucro real.

E. Nos termos do disposto no artigo 76°, n.º 1 alínea b) do CIRS, “Não tendo sido apresentada declaração, a liquidação tem por base os elementos de que a Direção-Geral dos Impostos disponha”.

F. De acordo com o estatuído no n.º 2 do mesmo artigo “Na situação referida na alínea b) do número anterior, o rendimento líquido da categoria B determina-se em conformidade com as regras do regime simplificado de tributação, com aplicação do coeficiente mais elevado previsto no n.º 2 do artigo 31°”.

G. Dispõe o n.º 3 do citado artigo que “Quando não seja apresentada a declaração, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual a liquidação é efetuada, não se atendendo ao disposto no artigo 70.º e sendo apenas efetuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79.º e no n.º 3 do artigo 97°”.

H. Não concordando com a liquidação em causa, o Impugnante poderia ter reclamado ou impugnado nos termos legais mas optou por recorrer à via graciosa para tentar obter a correção da declaração de rendimentos.

I. Ora tendo o Impugnante sido notificado em 06/02/2013 e submetido a declaração modelo 3 24/10/2013 – Vide facto provado 6 e 7 – a apresentação da referida declaração de substituição no entender da Fazenda Pública está manifestamente intempestiva, facto pelo qual a liquidação oficiosa consolidou-se na ordem jurídica.

J. Portanto, a liquidação oficiosa tem pleno apoio legal e tem na sua génese conduta omissiva do Impugnante.

K. O regime da liquidação oficiosa visa fomentar o cumprimento voluntário da obrigação declarativa, penalizando-se os contribuintes que persistam no incumprimento (Códigos Anotados e & Comentados, IRS, Edição.Julho.2015, Coordenação doutora Glória Teixeira e mestre Patrícia Anjos Azevedo, página 219).

L. É certo que, nos termos do disposto no artigo 76.º n.º 4 do CIRS “Em todos os casos referidos no nº 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.

M. Todavia, estando em causa uma liquidação realizada com base em pressupostos e condicionalismos especiais, como resulta da parte final do n.º 3 do artigo 76.º do CIRS, a correção poderá ter por fundamento erro na situação pessoal do contribuinte, bem como nos elementos considerados na própria liquidação, como o rendimento do contribuinte, a dedução pessoal que lhe seja imputável, e as retenções na fonte e pagamentos por conta.

N. O n.º 4 do artigo 76.º do CIRS permite que a liquidação seja corrigida, mas a sua correção não pode inviabilizar a aplicação do n.º 2 do mesmo artigo – as regras do rendimento líquido da categoria em conformidade com as regras do regime simplificado de tributação, ou no entender da Fazenda Pública nenhum sentido faria ter-se estabelecido tal procedimento para o caso de não entrega da declaração.

O. Quanto ao facto do Impugnante ter apresentado subsidiariamente o pedido de revisão dos atos tributários, previsto no artigo 78º da LGT, também teremos que concluir que de acordo com primeira parte do nº 1 do artigo 78º da LGT, tal pedido de revisão teria ser efetuado dentro do prazo para a reclamação graciosa, facto que, conforme já mencionado, estaria claramente intempestiva.

P. E no que concerne ao pedido de revisão do ato tributário com fundamento em injustiça grave e notória, ao abrigo do nº 4 do artigo 78º da LGT: “O dirigente máximo do serviço pode autorizar, excecionalmente, nos três anos posteriores ao do ato tributário a revisão da matéria tributável apurada com fundamento em injustiça grave ou notória, desde que o erro não seja imputável a comportamento negligente do contribuinte.” (sublinhado nosso).

Q. Assim, excecionalmente, a revisão dos atos tributários poderia ocorrer no prazo de três anos, desde que se verifiquem cumulativamente as seguintes condições: não tenha havido comportamento negligente por parte do contribuinte e tenha ocorrido injustiça grave ou notória.

R. No caso dos presentes autos não se verifica a condição imposta referente ao comportamento negligente por parte do contribuinte, pois, com o devido respeito por opinião contrária, entende a Fazenda Pública, que a falta de entrega da declaração que está na origem da liquidação oficiosa ora em crise, deveu-se única e exclusivamente por culpa do Impugnante.

S. O Impugnante dispunha do prazo para entregar a sua declaração de rendimentos, referente ao ano de 2011, ou seja, durante o mês de abril de 2012 em suporte de papel e o mês de maio de 2012 por transmissão eletrónica de dados, de acordo com o disposto no artigo 60º do CIRS.

T. Não tendo apresentado a referida declaração, o Impugnante foi notificado para apresentar a declaração em falta no prazo de 30 dias, nos termos no n.º 3 do artigo 76º do CIRS.

U. Mais uma vez, o Impugnante não apresentou a declaração dentro o prazo estipulado para o efeito. Terminado o prazo, a liquidação ora em crise foi efetuada de acordo com as normas legais já supra mencionadas.

V. Por tudo supra exposto, entende a Fazenda Publica que a génese da presente liquidação deveu-se unicamente ao incumprimento reiterado das obrigações declarativas do Impugnante.

W. Em conclusão, a decisão a quo fez uma errada interpretação e aplicação dos artigos 76º do CIRS e 78º da LGT, não podendo, assim, manter-se na ordem jurídica, devendo ser revogada, com todas as legais consequências.».

Pediu fosse concedido provimento ao presente recurso.

O Recorrido não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Remetidos os autos ao Supremo Tribunal Administrativo, foram os mesmos com vista ao M.º P.º.

O Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer, tendo concluído no sentido de o presente recurso não merecer provimento.

Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir.


◇◇◇

2. Ao abrigo do disposto no artigo 663.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 679.º do mesmo Código, dão-se aqui por reproduzidos os factos dados como provados em primeira instância.

◇◇◇

3. Em decisão interlocutória proferida nos autos e já transitada, foi concluído que o processo tinha por objeto a decisão que indeferiu o pedido de revisão da liquidação e, mediatamente, o ato tributário de liquidação a rever.

Assim, ao decidir julgar a impugnação procedente e anular a liquidação subjacente, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga também anulou a decisão administrativa que julgou ilegal a pretensão à revisão dessa liquidação.

Aliás, na interpretação que dela fazemos, a sentença tem um duplo fundamento, se por um lado, a Mm.ª Juiz entendeu que a liquidação deveria ter sido substituída, por outro lado, entendeu também que deveria ter sido corrigida no procedimento de revisão.

Deve, pois, entender-se que o presente recurso tem por objeto a sentença que, tendo concluído que a liquidação impugnada deveria ter sido substituída ou, pelo menos, corrigida no procedimento de revisão, anulou a decisão que indeferiu o pedido de revisão e liquidação a rever.

A Recorrente Fazenda Pública não se conforma com o assim decidido por entender, na essência, que o tribunal de primeira instância fez errada interpretação e aplicação dos artigos 76.º do Código de IRS e 78.º da Lei Geral Tributária.

Entende a Recorrente que o artigo 76.º do Código do IRS deve ser interpretado no sentido de que a liquidação efetuada oficiosamente nos termos do seu n.º 3 não pode ser substituída e só pode ser corrigida com base em erro na aplicação das regras respectivas.

Entende também a Recorrente a revisão da liquidação assim efetuada só pode ser admitida se estiverem reunidos os pressupostos legais da sua admissão previstos no artigo 78.º da Lei Geral Tributária. E que isso não sucede no caso, pelo que foram aplicadas erradamente as regras que contêm estes pressupostos.

Quanto à primeira parte do recurso, entendemos que a Recorrente tem razão.

No sentido de que o tribunal de primeira instância andou mal ao concluir que pela ilegalidade da liquidação efetuada nos termos do artigo 76.º, n.º 3, citado e ao determinar a sua anulação.

Se bem interpretamos, o tribunal de primeira instância concluiu pela ilegalidade dessa liquidação por entender que os rendimentos declarados substituem os apurados oficiosamente. Obrigando, por sua vez, à substituição da liquidação efetuada com base nesses rendimentos.

Mas não é assim, porque a lei não prevê em lado algum que da apresentação da declaração depois do prazo ali previsto decorra que a liquidação efetuada deva ser substituída.

Na redação anterior à que lhe foi introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29.12, o legislador opunha à liquidação efetuada nos termos da alínea b) do n.º 1 do dispositivo em causa a possibilidade de efetuar a «liquidação com base em declaração entretanto apresentada».

Esta redação permitia o entendimento segundo o qual a liquidação era efetuada provisoriamente com base nos elementos mencionados na referida alínea e sem prejuízo da sua substituição por uma liquidação efetuada com base nos elementos da declaração que entretanto fosse apresentada.

Todavia, a ressalva que constava da parte final da redação da alínea b) do n.º 1 do referido artigo 76.º (a que correspondia o artigo 78.º na redação anterior à da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de dezembro) não transitou para a redação posterior.

Deve, assim, concluir-se que não existe, atualmente, fundamento legal para concluir que a apresentação da declaração de rendimentos fora do prazo conduz a uma nova liquidação, de natureza substitutiva.

Acresce que o legislador só atribui natureza provisória a uma liquidação quando estiver prevista na lei a realização de outra liquidação relativamente ao mesmo período (como sucede no caso a que alude o n.º 9 do artigo 90.º do Código do IRC (na redação então em vigor).

Bem vemos que, para chegar ao seu entendimento, a Mm.ª Juiz a quo apelou à doutrina e à jurisprudência que alude ao caráter provisório do montante apurado oficiosamente pela administração nos termos do mesmo dispositivo.

Mas, na interpretação que dela fazemos, o que ali se refere a este propósito é que o apuramento dos rendimentos através de elementos parcelares ou objetivos não deve ser tido pela administração como adequado substituto da declaração do sujeito passivo e não deve dispensá-la, por isso, do dever funcional de verificação da sua situação tributária.

Pelo que se contrapõe ali a natureza provisória desse apuramento ao dever de corrigir a liquidação respetiva sempre se seja apurado que o resultado real é diverso. E não a natureza provisória da liquidação ao dever de a substituir por outra sempre que seja apresentada a declaração em falta.

Deve, assim, concluir-se que a apresentação, pelo sujeito passivo, da declaração de rendimentos em falta depois de decorrido o prazo a que alude o artigo 76.º, n.º 3, do Código do IRS não tem necessariamente por efeito a anulação da liquidação efetuada pela administração nos termos do mesmo dispositivo legal.

Até porque a declaração de rendimentos assim apresentada não o foi nos termos prescritos na lei e já não beneficia, por isso, da presunção de verdade a que alude o artigo 75.º da Lei Geral Tributária.

Em sentido convergente já decidiu este Supremo Tribunal, a respeito de disposição equivalente no Código do IRC (acórdão de 4 de maio de 2016, no processo n.º 0415/15).

Questão diversa é a de saber se a declaração de rendimentos assim apresentada pode servir de base à correção da liquidação administrativa e em que termos.

Essa é a questão suscitada na segunda parte do presente recurso e que já não tem a ver com a legalidade da liquidação em si mesma, mas com a legalidade da decisão administrativa que que indeferiu a sua correção ou revisão (e a que alude a alínea “E)” dos factos provados).

Esta questão já foi decidida neste Supremo Tribunal, sendo por último no acórdão de 21 de abril de 2022, tirado no processo n.º 0792/17.8BEBRG, fazendo apelo ao entendimento que já tinha sido firmado no acórdão de 5 de outubro de 2018, tirado no processo n.º 0220/11.2BEVIS (sendo que este se encontra parcialmente transcrito na sentença recorrida).

Foi ali decidido, no que para aqui importa, que o artigo 76.º, n.º 4, do Código do IRS deve ser interpretado no sentido de que a liquidação efetuada nos termos daquela norma pode ser corrigida no prazo da caducidade do direito à liquidação e que a correção pode ser efetuada com base na iniciativa do contribuinte que apresente a declaração modelo 3 em falta.

Trata-se de entendimento que deve ser aqui corroborado, não apenas por traduzir a interpretação constante que o Supremo Tribunal vem fazendo dos preceitos em causa (e dever, por isso, ser tomado em consideração em todos os casos análogos, nos termos do n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil), mas também por se entender que contém a solução adequada para este caso.

O artigo 76.º com Código de IRS contém regras ou proposições jurídicas de avaliação e de determinação de valores sujeitos a tributação que assentam notoriamente no objetivo de simplificação e que visam, globalmente, assegurar que a falta de colaboração do contribuinte no apuramento da sua situação individual não obsta à tributação.

Só que, ao determinar o recurso a certos índices ou dados mais ou menos objetivos e a atribuir-lhe um especial valor representativo, o legislador acaba por permitir que a administração abstraia, até certo ponto, da situação individual e concreta do sujeito passivo.

Pelo que estes mecanismos de simplificação encontram-se em tensão dialética com as exigências materiais constitucionais de apuramento da realidade fiscal. Precisamente porque contêm regulações generalizadoras, que procuram o individual através do que é típico ou permitem que se tome como certo o que é apenas provável ou possível.

A compatibilização entre uns e outras faz-se admitindo os mecanismos ou as técnicas que promovam sempre a correspondência possível com a situação real do sujeito e assegurando que a sua utilização não põe em causa a predominância da tributação do rendimento real.

Assim, o recurso a mecanismos ou a técnicas de simplificação deve considerar-se justificado enquanto for possível concluir que contribui para a aplicação igual da lei.

Ora, à luz destes parâmetros, deve entender-se que a determinação do rendimento líquido da categoria B do sujeito passivo em conformidade com certas as regras do regime simplificado da tributação e a determinação da coleta sem efetuar certas deduções só deve considerar-se justificado se não existir informação fidedigna que permita outras formas de liquidação que atendam à sua situação individual e concreta. Porque, de outro modo, se estará a insistir numa tributação que já se sabe que não incide sobre o rendimento real e que, por isso, promove a aplicação desigual da lei.

É esse equilíbrio que, a nosso ver, o legislador almejou no n.º 4 do artigo 76.º em análise: ao determinar que a liquidação pode ser corrigida se for caso disso e no prazo da caducidade do direito a liquidar, o legislador concede que a técnica utilizada na liquidação não permite mais do que uma aproximação à realidade fiscal do sujeito e assegura que predominará sempre a determinação direta e exata, se a ela for possível aceder no prazo da caducidade do direito à liquidação.

Assim, o teor da declaração de rendimentos apresentada neste prazo deve ser apreciado e livremente valorado pela administração no quadro dos seus poderes oficiosos de investigação, que deverá exercer com recurso, designadamente, a uma participação mais efetiva e uma colaboração total e incondicional do contribuinte no procedimento respetivo, a fim de despistar a necessidade de corrigir a liquidação já efetuada.

Não tem, por isso, razão a Recorrente quando defende que a correção não pode inviabilizar a aplicação das regras que a determinaram. Por um lado, a expressão «corrigir» é ali utilizada sem qualquer limitação de sentido, abrangendo também a correção da forma da liquidação. Por outro lado, o entendimento da Recorrente implicaria que os mecanismos simplificados de determinação do rendimento prevaleceriam sobre o apuramento da situação individual e concreta mesmo quando já não fossem necessários nem adequados para assegurar a igualdade na tributação.

Também não tem razão a recorrente quando opõe à correção da liquidação a necessidade de penalizar os contribuintes que não colaborem com a administração. Por um lado, as formas simplificadas de apuramento só penalizam os contribuintes a quem a sua aplicação seja concretamente desfavorável. Por outro lado, os procedimentos de liquidação não têm como objetivo a aplicação de sanções, sendo que a adoção de soluções que funcionem objetivamente como tal devem ser condicionadas e proporcionadas aos objetivos fiscais a atingir.

Finalmente, a Recorrente também não tem razão quando alega que a correção só pode ter lugar nos prazos e dentro dos pressupostos da revisão dos atos tributários constantes da lei geral. Por um lado, este entendimento colide abertamente com a segunda parte do preceito; por outro lado, estamos claramente perante um regime especial de revisão de atos tributários, só devendo aplicar-se as regras gerais que com ele não sejam incompatíveis. Acrescente-se que, a nosso ver, ao dispor que «a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso», o legislador não está a remeter para os pressupostos de admissão do procedimento respetivo, mas para os pressupostos da correção em si mesma.

Teve, por isso, razão a Mm.ª Juiz ao concluir que a administração deveria ter admitido a revisão da liquidação para analisar os elementos vertidos na declaração e apurar a verdade material no âmbito desse procedimento. E que, por isso, a decisão do procedimento respetivo consubstancia um erro dos serviços.

Só que do erro dos serviços em não admitir a revisão não deriva ainda que seja ilegal a liquidação a rever, pelo que o recurso merece provimento só em parte, devendo ser anulada a decisão daquele procedimento de revisão, sem prejuízo do dever de a substituir por outra que não incorra nos mesmos vícios.


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4. Preparando a decisão, formulam-se as seguintes conclusões, que valerão também como sumário do acórdão:

I. A apresentação, pelo sujeito passivo, da declaração de rendimentos em falta depois de decorrido o prazo a que alude o artigo 76.º, n.º 3, do Código do IRS não tem necessariamente por efeito a anulação da liquidação efetuada pela administração nos termos do mesmo dispositivo legal;

II. É, por isso, ilegal e deve ser revogada a decisão judicial de anular a liquidação efetuada nos termos do número anterior apenas pelo facto de tal declaração ter sido entretanto apresentada;

III. No entanto, o artigo 76.º, n.º 4, do Código do IRS deve ser interpretado no sentido de que tal liquidação pode ser corrigida no prazo da caducidade do direito respetivo se for apurado nesse prazo que a realidade tributária do sujeito passivo é diversa da apurada através daquela forma de liquidação;

IV. A correção a que alude o número anterior pode ser efetuada a pedido do contribuinte que apresente a declaração em falta, devendo os dados respetivos ser investigados e livremente valorados pela administração no quadro dos seus poderes oficiosos de investigação;

V. É, por isso, ilegal e deve ser anulada a decisão administrativa de indeferir o pedido de revisão dessa liquidação por não ter sido apresentada nos prazos da reclamação graciosa ou por não estarem reunidos todos os pressupostos dessa revisão que constam da lei geral.


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5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão que anulou a liquidação impugnada.

No mais, isto é, na parte em que foi decidido anular a decisão que indeferiu o pedido de revisão dessa liquidação, nega-se provimento ao recurso.

Custas em ambas as instâncias na proporção do decaimento, que se fixa em 50% para cada uma das partes.

Lisboa, 8 de fevereiro de 2023. – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) - Pedro Nuno Pinto Vergueiro - Isabel Cristina Mota Marques da Silva.