Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0827/18.7BELRA
Data do Acordão:05/22/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:PENHORA
INVENTÁRIO
DISPENSA DE PRESTAÇÃO DE GARANTIA
Sumário:I - A lei é clara na exigência que formula de que o pedido de dispensa de prestação de garantia, a dirigir ao órgão de execução fiscal, seja instruído com a prova documental necessária (cfr. o n.º 3 do artigo 170.º do CPPT), norma esta que não devendo ser interpretada, sob pena de inconstitucionalidade, como uma restrição probatória, obriga a que, salvo casos excepcionais e devidamente justificados, os documentos indicados pelos requerentes para prova dos factos constitutivos do direito à dispensa da prestação de garantia sejam desde logo juntos ao requerimento em que é solicitada a dispensa.

II - O artigo 737.º do CPC não se aplica às pessoas colectivas, atenta a natureza dos interesses em causa, devendo estas situações enquadrar-se no âmbito do risco empresarial, pois que numa empresa seria sempre fácil invocar e demonstrar em relação a praticamente todos os seus bens a sua imprescindibilidade ou como instrumentos de trabalho ou como objectos indispensáveis ao exercício da actividade, pelo que a aplicação desta norma às pessoas colectivas inviabilizaria, na prática, a penhora de todos ou de grande parte dos seus bens, pondo-se assim, em causa, a garantia comum dos seus credores com enormes prejuízos para o comércio jurídico.

Nº Convencional:JSTA000P24583
Nº do Documento:SA2201905220827/18
Data de Entrada:03/29/2019
Recorrente:A............, LDA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:


- Relatório -


1 – A………….., LDA., com os sinais dos autos, recorre para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou improcedente a reclamação apresentada ao abrigo do artigo 276.º do Código de Procedimento e Processo Tributário contra o acto de indeferimento de dispensa parcial de garantia, apresentando, para tanto, as seguintes conclusões:

A) - Atento o facto provado no ponto B. do probatório, verifica-se que a recorrente indicou para efeitos de garantia os bens do ativo imobilizado, não o fazendo quanto aos bens do inventário e justificando que em caso de oneração das embarcações detidas para venda não poderá manter a sua atividade, pois não conseguirá comercializar bens onerados.

B) – A douta sentença incorre em erro de análise, ao confundir património e inventário, e ao concluir que são oneráveis/penhoráveis, para efeitos de garantia, as mercadorias detidas para venda (ou seja, o inventário).

C) – Tal conclusão implica que a mercadoria da recorrente, até perfazer o montante da garantia, estivesse na disponibilidade do credor hipotecário, que autorizaria ou não a venda, bem como o destino a que seria afeto o produto da venda, o que na realidade constrange efetivamente a atividade regular da recorrente.

D) – Com efeito, decorre das regras de experiência comum que não é normal, nem usualmente praticado, em qualquer atividade comercial, a venda de bens onerados.

E) – Logo, a afirmação contida na sentença recorrida de que a ora recorrente não fica impedida de continuar a exercer a sua atividade, ainda que onerada a sua mercadoria, é infundada e não corresponde a um juízo de senso comum assente na realidade comercial das empresas.

F) – A afirmação contida na douta sentença recorrida de que a oneração das mercadorias não impede que a recorrente desenvolva a atividade a que se dedica é um juízo meramente teórico, sem aderência à prática e atividade empresarial, e da própria realidade procedimental da AT.

G) – De facto, em teoria, nada impede a oneração de barcos detidos para venda, mas ao fazê-lo a recorrente sabe que dificilmente conseguirá vender os bens em condições normais de negócio, o que é também percetível para uma pessoa média, colocada perante os factos e a realidade concreta.

H) – Porém, na prática comercial, o expectável e habitual é que, perante essa informação prestada a possível comprador, o interessado desistiria do negócio.

I) – Mas, admitindo que, não ocorria desistência imediata por parte do interessado, e sendo pedido ao credor hipotecário autorização para venda ou substituição, esbarramos no que são os procedimentos da AT no que toca a demora na apreciação e decisão na avaliação e substituição de garantias, que não é compatível com as intenções ou decisões comerciais dos clientes.

J) – Acresce que, perante informação prestada a potenciais compradores da existência de ónus sobre a mercadoria, os termos negociais alterar-se-iam com séria probabilidade de o comprador, sabedor da existência de dívidas fiscais, ficaria numa posição de vantagem económica que poderia usar para forçar a redução de preço.

K) – Ademais, é expectável que a AT/OEF condicionasse a libertação da garantia mediante a entrega do preço, o que também ocasionaria graves dificuldades económicas para a recorrente, porque a recorrente seria forçada a pagar a dívida exequenda ao credor hipotecário, quando a dívida em causa é suscetível de ser apenas garantida face à existência de processo contencioso.

L) – Por outro lado, ainda que o produto da venda ficasse constituído em garantia, implicaria de igual forma constrangimentos económicos e financeiros graves à recorrente, pois é através do produto das suas vendas que a recorrente adquire nova mercadoria e paga aos seus demais fornecedores, donde sem a disponibilidade do produto das vendas a recorrente enfrentaria prejuízos graves e incalculáveis.

M) – Assim, resulta das constatações da experiência comum e do ponto de vista do homem mediano, que se impunha um juízo que considerasse demonstrado que a oneração de mercadoria detida para venda é incompatível com a atividade de venda de barcos a que se dedica a recorrente e causa-lhe, por isso, prejuízo grave e irreparável.

N) – Conclui-se assim, que a solução preconizada pela douta sentença recorrida embora no plano teórico seja aplicável, é, na verdade, e na prática, impeditiva da continuação regular da atividade comercial da recorrente.

O) – A douta decisão recorrida incorre em errónea de análise e conclusão, no que toca à oneração da mercadoria para venda, porquanto a existência de ónus é motivo de grave constrangimento negocial nos termos acima descritos e, consequentemente, é impeditiva do exercício da atividade da recorrente.

P) – Donde a decisão recorrida violou o disposto no n.º 4 do art.º 52º da LGT.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a douta decisão recorrida, determinando-se a anulação do despacho do OEF que indeferiu o pedido de dispensa parcial de prestação de garantia.

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 – O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu o parecer de fls. 348 e 349 dos autos, no qual considerou que para a correta apreciação da pretensão da Recorrente se mostra “necessário que constem da sentença elementos esclarecedores sobre o tipo de bens e respetivo valor que fazem parte [do seu] ativo circulante, assim como a caraterização da atividade da executada”, pronunciando-se no sentido de que a sentença recorrida padece do vício de insuficiência da matéria de facto, “o que constitui fundamento para a sua revogação, e a baixa dos autos para efeitos de ampliação da matéria de facto, nos termos do artigo 682º, nº3, do Código de Processo Civil”.

4 – Por despacho de 30 de Abril último – a fls. 210/211 dos autos –, a Relatora suscitou a questão da incompetência em razão da hierarquia deste STA para conhecimento do objecto o recurso e ordenou a notificação da recorrente para, querendo, se pronunciar.

Em resposta, veio esta manifestar a sua discordância com a verificação de tal excepção por entender que “nos presentes autos não está em causa a apreciação de matéria de facto relevante para o julgamento da causa, mas sim a aplicação de conceitos plasmados na lei aos factos provados”. Para a Recorrente, “na alínea B) do probatório foi dado como provado o teor do requerimento apresentado ao OEF em 21/03/2016” pelo que, “tendo sido dado como provado o teor do requerimento na alínea B) do probatório, consequentemente foi dado como provado o facto nele enunciado relativo à atividade da recorrente. Ademais, a douta sentença recorrida não considerou provados outros factos alegados, designadamente o alegado pela ERFP nos artigos 9º a 11º da contestação, com certeza, porque tais factos não integram a fundamentação do ato reclamado”.

Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, cumpre decidir.


- Fundamentação -


5 – Questão a decidir

É a de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao confirmar a validade do despacho de indeferimento do pedido de prestação de garantia que admitiu a possibilidade de os bens que fazem parte do inventário da Recorrente poderem servir de garantia das obrigações tributárias, assim violando o disposto no n.º 4 do artigo 52.º da Lei Geral Tributária.

6 – Na sentença objecto do presente recurso foram fixados os seguintes factos:

A) Corre termos no Serviço de Finanças de Porto de Mós, contra a Reclamante, o processo de execução fiscal (PEF) n.º 1457201601006070 e apensos, totalizando a quantia exequenda EUR 75.159,71 [cfr. informação a fls. 207-211 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida];

B) Em 21/03/2016, a Reclamante remeteu ao Serviço de Finanças de Porto de Mós um requerimento de suspensão do PEF n.º 1457201601006070 e apensos com dispensa parcial de prestação de garantia, manifestando a intenção de impugnar os atos tributários subjacentes às dívidas em cobrança coerciva e referindo, além do mais, o seguinte:

“(…)

A executada não possui bens imóveis.

A executada não tem possibilidade de apresentar garantia bancária, muito por força de não conseguir prestar à entidade bancária contra-garantias, designadamente hipoteca sobre imóveis. Com efeito, a executada solicitou junto das duas entidades bancárias com quem trabalha (CCAM de Porto de Mós e CGD) a emissão de garantia bancária, no entanto, ambas não se mostraram disponíveis a tal operação financeira – conforme documentos um e dois que se juntam.

Contra a executada foram instaurados outros processos de execução para cobrança de liquidações de IRC e JC, decorrentes da mesma inspecção tributária, a saber: 1457201601008447, 1457201601009850, 1457201601010468. Foi já pedida a apensação destes processos, e requerida a prestação de garantia parcial através de penhora dos bens do activo da executada e a dispensa de garantia no restante, em que aqueles não sejam suficientes.

Na verdade, a única garantia que a executada pode prestar é a penhora sobre os poucos bens móveis do activo imobilizado. Porém, os bens do activo fixo já se encontram quase integralmente amortizados, totalizando à data de 31/12/2015, o valor total de € 15.284,66 – conforme mapa de depreciações e amortizações do exercício de 2015, que se junta como documento três.

A executada não possui outros bens ou direitos que possa onerar e indicar em garantia, nem se colocou na situação de insuficiência de património, pois os bens do activo têm vindo a ser os mesmos nos últimos anos (conforme mapas de depreciações e amortizações dos exercícios de 2012, 2013 e 2014 que se juntam como documentos quatro e seis). Ou seja, a insuficiência de património para prestação de garantia idónea não é da culpa da executada.

Acresce que, a actividade da executada consiste na venda de barcos, e por isso, integram o inventário algumas embarcações. No entanto, se as mesmas forem penhoradas/hipotecadas a executada não poderá manter a sua actividade, pois não conseguirá comercializar bens onerados.

E o mesmo se diga quanto a eventuais créditos de clientes e dos saldos de contas bancárias, cuja penhora ou apreensão vai implicar irremediavelmente a perda de disponibilidade da executada sobre os seus créditos e contas bancárias, impedindo-a de cumprir com as suas obrigações com trabalhadores, contribuições para a Segurança Social, fornecedores, prestadores de serviços, pagamento do IRS e demais encargos bancários e outros encargos, e poderá despoletar o encerramento da actividade e consequentemente a insolvência.

Afigura-se, pois, à executada que reúne os pressupostos para a dispensa parcial da garantia, sendo constituída garantia de forma parcial, através da penhora de bens do activo fixo, até ao limite do valor contabilísticos destes, e requerendo a dispensa parcial de prestação de garantia, dada a insuficiência de bens e de meios financeiros para prestar outras garantias, no valor restante a garantir”.

(…)”

[cfr. comprovativo de registo postal a fls. 34 e requerimento a fls. 35-38 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos];

C) O valor indicativo para efeito de garantia no PEF n.º 1457201601006070 e apensos é de EUR 96.879,32 [cfr. informação a fls. 207-211 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida];

D) Em 23/05/2017, foi constituído penhor sobre bens móveis do ativo fixo da Reclamante, entre os quais uma embarcação e um veículo automóvel com a matrícula ………….., aos quais foi atribuído o valor total de EUR 2.470,00 [cfr. auto a fls. 161-163 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido];

E) Em 08/06/2018, o Diretor-Adjunto de Finanças de Leiria proferiu, com base na informação a fls. 207-211 dos autos, despacho com o seguinte teor:

“Concordo com a informação que antecede. Não obstante o penhor já efetuado, verifica-se que no que se refere ao veículo automóvel, dado que é um bem sujeito a registo deve ser constituída hipoteca voluntária pela executada, o que não se verificou. Acresce, como ficou demonstrado na informação e a executada confirma, que a esta possui outros bens suscetíveis de vir a constituir garantia e que não foram oferecidos. Nada obsta a que um bem dado como garantia possa ser comercializado pela executada não pondo em causa o exercício da sua atividade, podendo a mesma, com esse fundamento, ser substituída nos termos do n.º 7 do art.º 52.º da LGT. Só após constituição da garantia pela totalidade dos bens suscetíveis de o poderem vir a ser, e subsequente valoração e quantificação, se poderá concluir pela alegada insuficiência, podendo então vir a ser apreciada eventual isenção nos termos do n.º 4 do art.º 52.º da LGT. Neste momento, não podendo sequer concluir pela insuficiência dos bens suscetíveis de constituir garantia, e tendo sido esse o fundamento, rejeito o pedido por não reunir as condições previstas no n.º 4 do art.º 52.º da LGT.”

[cfr. despacho a fls. 205-206 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido];

F) Em 02/07/2018, a presente reclamação foi autuada no Serviço de Finanças de Porto de Mós [cfr. autuação a fls. 2 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida];

G) Em 29/08/2018, foi apresentado a registo o ato de constituição de hipoteca voluntária sobre o veículo automóvel com a matrícula …………. [cfr. ato de constituição de hipoteca a fls. 258-260 e declaração a fls. 261 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos].

7 – Apreciando

7.1. Do alegado erro de julgamento da sentença recorrida

A sentença recorrida, a fls. 157 a 174 dos autos, julgou totalmente improcedente a reclamação judicial deduzida pela Recorrente por concluir que o “despacho reclamado não padece do invocado vício de violação do artigo 52º, nº4, da LGT”.

Para assim decidir, considerou o Tribunal a quo que “a Reclamante possui outros bens que não ofereceu como garantia e que aqueles que ofereceu não são suficientes para garantir a dívida exequenda e acrescido” (“não dispondo o órgão de execução fiscal de todos os elementos necessários à avaliação da (in)suficiência dos bens da Reclamante suscetíveis de constituir garantia”), carecendo ainda a “Reclamante de razão na sua alegação de que, em caso de substituição de hipoteca voluntária sobre as embarcações que compõem o seu inventário - que, ao contrário do que defende, não são bens relativamente impenhoráveis e cujo valor não indica -, ficará impedida de prosseguir o seu objeto social”.

Discorda do decidido a Recorrente, considerando que a “douta sentença incorre em erro de análise, ao confundir património e inventário, e ao concluir que são oneráveis/penhoráveis, para efeitos de garantia, as mercadorias detidas para venda (ou seja, o inventário)”, o que não se pode admitir uma vez que a colocação da mercadoria na disponibilidade do credor hipotecário limitaria “efetivamente a atividade regular da recorrente” e causar-lhe-ia, “por isso, prejuízo grave e irreparável” em violação do “disposto no n.º 4 do art.º 52º da LGT”.

Apesar de reconhecer que “em teoria, nada impede a oneração de barcos detidos para venda”, a Recorrente argumenta que a venda de bens onerados “não é normal, nem usualmente praticad[a], em qualquer atividade comercial”, revelando-se difícil a venda desses bens “em condições normais de negócio”. De igual forma, a oneração do produto da venda do activo circulante (ao invés da oneração dos bens em si mesmo considerados) “implicaria de igual forma constrangimentos económicos e financeiros graves à recorrente, pois é através do produto das suas vendas que a recorrente adquire nova mercadoria e paga aos seus demais fornecedores”. Bem assim, aduz ainda a Recorrente que “sendo pedido ao credor hipotecário autorização para venda ou substituição, esbarramos no que são os procedimentos da AT no que toca a demora na apreciação e decisão na avaliação e substituição de garantias, que não é compatível com as intenções ou decisões comerciais dos clientes”.

Não foram apresentadas contra-alegações e o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste STA pronunciou-se pela existência de vício de insuficiência da matéria de facto fixada na sentença recorrida, “o que constitui fundamento para a sua revogação, e a baixa dos autos para efeitos de ampliação da matéria de facto, nos termos do artigo 682º, nº3, do Código de Processo Civil”.

Posteriormente, a fls. 352 foi suscitada a excepção de incompetência deste Supremo Tribunal em razão da hierarquia, considerando que a alegação da Recorrente sintetizada na conclusão M) das suas alegações de recurso implica a necessidade de dirimir “questão de facto”, o que tem por efeito a incompetência em razão da hierarquia deste Supremo Tribunal para conhecimento do objecto do recurso. Isto porque a Recorrente alega que a constituição de hipoteca sobre as três embarcações - não identificadas nem avaliadas - que alegadamente integram o seu inventário lhe causa “prejuízo grave e irreparável”, atendendo à atividade de venda de barcos a que se dedica, quando nem do probatório fixado nem dos documentos que integram os autos decorre qual a actividade exercida pela recorrente ou se esta é exclusivamente de venda ou também de aluguer de embarcações, como apegado pela AT.

Discordou a Recorrente da excepção suscitada, por entender, em suma, que “nos presentes autos não está em causa a apreciação de matéria de facto relevante para o julgamento da causa, mas sim a aplicação de conceitos plasmados na lei aos factos provados”. Para a Recorrente, “na alínea B) do probatório foi dado como provado o teor do requerimento apresentado ao OEF em 21/03/2016” pelo que, “tendo sido dado como provado o teor do requerimento na alínea B) do probatório, consequentemente foi dado como provado o facto nele enunciado relativo à atividade da recorrente. Ademais, a douta sentença recorrida não considerou provados outros factos alegados, designadamente o alegado pela ERFP nos artigos 9º a 11º da contestação, com certeza, porque tais factos não integram a fundamentação do ato reclamado”.

Vejamos.

Em primeiro lugar, cumpre analisar o vício de insuficiência da matéria de facto suscitado pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal que, a proceder, determinaria a revogação da sentença recorrida e a baixa dos autos para efeitos de ampliação da matéria de facto, nos termos do artigo 682º, nº3, do Código de Processo Civil.

Ora, com a redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, o n.º 4 do artigo 52.º da LGT dispõe actualmente que “a administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado”. Nos termos desta disposição legal, a dispensa de prestação da garantia devida em processo de execução fiscal depende necessariamente da verificação de três requisitos cumulativos (embora dois deles comportem alternativas), a saber: (i) que haja uma situação de inexistência de bens ou a sua insuficiência para o pagamento da dívida exequenda e do acrescido, (ii) que essa inexistência ou insuficiência não seja imputável ao executado e (iii) que a prestação de garantia cause prejuízo irreparável ao executado ou que seja manifesta a sua falta de meios económicos.

Bem assim, e nos termos do n.º 3 do artigo 170.º do CPPT, o pedido de dispensa de garantia a dirigir ao órgão de execução fiscal “deve ser fundamentado de facto e de direito e instruído com a prova documental necessária”.

Da conjugação destes dois preceitos legais resulta à saciedade que é sobre o executado que requer a dispensa de prestação de garantia que recai o ónus de provar os requisitos para que essa dispensa lhe seja concedida, pois trata-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido (neste sentido vide, entre outros, o Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo proferido a 17 de Outubro de 2012 no âmbito do Processo n.º 0414/12 e o Acórdão desta mesma Secção proferido a 3 de Abril de 2013 no processo n.º 0393/13).

Porém, no caso sub judice, a Recorrente não logrou realizar a prova que sobre si impendia.

Desde logo, a Recorrente não ofereceu prova bastante do cumprimento dos requisitos de dispensa de garantia perante o órgão da execução fiscal, que indeferiu o pedido por aquela formulado ao concluir que “neste momento, não podendo sequer concluir pela insuficiência dos bens suscetíveis de constituir garantia, e tendo sido esse o fundamento, rejeito o pedido por não reunir as condições previstas no n.º 4 do art.º 52.º da LGT”, isto após ter considerado, “como ficou demonstrado na informação e a executada confirma, que a esta possui outros bens suscetíveis de vir a constituir garantia e que não foram oferecidos. Nada obsta a que um bem dado como garantia possa ser comercializado pela executada não pondo em causa o exercício da sua atividade, podendo a mesma, com esse fundamento, ser substituída nos termos do n.º 7 do art.º 52.º da LGT. Só após constituição da garantia pela totalidade dos bens suscetíveis de o poderem vir a ser, e subsequente valoração e quantificação, se poderá concluir pela alegada insuficiência, podendo então vir a ser apreciada eventual isenção nos termos do n.º 4 do art.º 52.º da LGT”.

De igual forma, a Recorrente não demonstrou o cumprimento dos pressupostos em análise perante o Tribunal a quo que, face a esta circunstância, validou o despacho do órgão de execução fiscal formulado nos termos sobreditos. Nas palavras do Tribunal a quo, “a Reclamante possui outros bens que não ofereceu como garantia” e “aqueles que ofereceu não são suficientes para garantir a dívida exequenda e acrescido, carecendo a Reclamante de razão na sua alegação de que, em caso de constituição de hipoteca voluntária sobre as embarcações que compõem o seu inventário – que, ao contrário do que defende, não são bens relativamente impenhoráveis e cujo valor nunca indica –, ficará impedida de prosseguir o seu objeto social. Aqui chegados, não dispondo o órgão da execução fiscal de todos os elementos necessários à avaliação da (in)suficiência dos bens da Reclamante suscetíveis de constituir garantia, o despacho reclamado não padece do invocado vício de violação do artigo 52.º, n.º 4, da LGT”.

E mais. Uma vez suscitada a incompetência em razão da hierarquia deste Tribunal por despacho de fls. 352, a Recorrente demonstrou a sua satisfação com o probatório fixado na sentença recorrida, argumentando que “nos presentes autos não está em causa a apreciação de matéria de facto relevante para o julgamento da causa, mas sim a aplicação de conceitos plasmados na lei aos factos provados”, ou seja, uma questão de direito.

Neste contexto, entendemos que não se justifica baixar os autos ao Tribunal a quo para efeitos de ampliação da matéria de facto (conforme suscitado pelo Procurador-Geral Adjunto do Ministério Público junto deste Tribunal). Com efeito, e como tivemos já a oportunidade de decidir no Acórdão de 19 de Dezembro de 2012, proferido no âmbito do Processo n.º 01298/12, a lei é clara na exigência que formula de que o pedido de dispensa, a dirigir ao órgão de execução fiscal, seja instruído com a prova documental necessária (cfr. o n.º 3 do artigo 170.º do CPPT), norma esta que, não devendo ser interpretada, sob pena de inconstitucionalidade, como uma restrição probatória (cfr., neste sentido, o Acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Novembro de 2012, rec. n.º 1162/12), obriga a que, salvo casos excepcionais e devidamente justificados, os documentos indicados pelos requerentes para prova dos factos constitutivos do direito à dispensa da prestação de garantia sejam desde logo juntos ao requerimento em que é solicitada a dispensa.

Não os tendo junto no requerimento de dispensa de prestação de garantia, a Recorrente acabou por incumprir o ónus de prova dos pressupostos que sobre si impendia, razão pela qual a decisão do Tribunal a quo nenhuma censura merece no que à fixação do probatório respeita.

Isto dito, importa compreender se assiste razão à Recorrente quando imputa erro de análise à sentença recorrida, consubstanciado na confusão entre “património e inventário, e ao concluir que são oneráveis/penhoráveis, para efeitos de garantia, as mercadorias detidas para venda (ou seja, o inventário)” o que, na sua óptica, não se pode admitir uma vez que a colocação da mercadoria na disponibilidade do credor hipotecário limitaria “efetivamente a atividade regular da recorrente” e causar-lhe-ia, “por isso, prejuízo grave e irreparável” em violação do “disposto no n.º 4 do art.º 52º da LGT”.

Mas, desde já se refira, que essa razão não lhe assiste.

Com efeito, não existe na lei qualquer impedimento absoluto, relativo ou parcial que limite a possibilidade de penhora ou constituição de garantia sobre o inventário de uma pessoa colectiva (como, aliás, reconhece a Recorrente, ao afirmar que “em teoria, nada impede a oneração de barcos detidos para venda”).

Em rigor, e apesar de à penhora de bens em execução fiscal também serem de aplicar as restrições previstas no Código de Processo Civil relativamente à impenhorabilidade de certos bens, nenhuma dessas restrições se aplica à situação sub judice. Em particular, a impenhorabilidade relativa prevista no artigo 737.º, n.º 2 do CPC (nos termos do qual “estão também isentos de penhora os instrumentos de trabalho e os objectos indispensáveis ao exercício da actividade ou formação profissional do executado”) e que foi sujeita a demorada análise na sentença sob recurso não se aplica às pessoas colectivas.

Conforme expõe Lebre de Freitas in “A ação executiva: à luz do código de processo civil de 2013”, 2014, 6.ª Edição, pp. 248 e 249, “impenhoráveis por estarem em causa interesses vitais do executado são aqueles bens que (…) são indispensáveis ao exercício da profissão do executado (instrumentos de trabalho e objetos indispensáveis ao exercício da sua atividade ou à sua formação profissional: art. 737-2)”, não se verificando esta exclusão “quando se trate, não de uma pessoa singular, mas duma sociedade comercial”. No mesmo sentido se pronuncia Fernando Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 2010, 13.ª Edição, pp. 207 e 208, quando refere que no n.º 2 do artigo 823.º do CPC [correspondente ao artigo 737.º n.º 2 antes da revisão do CPC] se prevê uma impenhorabilidade processual relativa que se filia “em motivos de interesse económico, matizados com considerações de humanidade”, merecendo-lhe concordância a jurisprudência que sustenta que a impenhorabilidade sub judice “é exclusivamente aplicável a pessoas singulares, e não também às sociedades comerciais”.

E é também neste sentido que se posiciona a jurisprudência, que é pacífica a este respeito, podendo ver-se, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido a 18 de Dezembro de 2012 no âmbito do processo n.º 1600/12 e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte proferido a 12 de Novembro de 2015 no âmbito do Processo 01341/15.

E isto porque, conforme se pondera acertadamente neste último aresto, “atenta a natureza dos interesses em causa”, estamos perante situações que se devem enquadrar “no âmbito do risco empresarial, pois que numa empresa seria sempre fácil invocar e demonstrar em relação a praticamente todos os seus bens a sua imprescindibilidade ou como instrumentos de trabalho ou como objectos indispensáveis ao exercício da actividade, pelo que a aplicação desta norma às pessoas colectivas inviabilizaria, na prática, a penhora e todos ou de grande parte dos seus bens, pondo-se assim, em causa, a garantia comum dos seus credores com enormes prejuízos para o comércio jurídico”. Donde, sendo a Executada uma pessoa colectiva, não tem aplicação ao caso sub judice o artigo 737.º, n.º 2 do CPC e, consequentemente, o artigo 52.º n.º 4 da LGT.

Isto dito, sempre se refira, como nota final, que a alegada demora da Administração Tributária “na apreciação e decisão na avaliação e substituição de garantias, que não é compatível com as intenções ou decisões comerciais dos clientes” não pode constituir fundamento de censura da sentença recorrida, uma vez que essa alegada demora não constitui pressuposto do pedido de dispensa de garantia nos termos do artigo 52.º n.º 4 da LGT nem constitui critério que possa ser objectivamente considerado pelo Tribunal para decidir sobre questões presentes, pois é sobre os factos trazidos ao processo (e não sobre factos eventuais ou futuros) que cumpre decidir.

Pelo exposto se conclui que o recurso não merece provimento.


- Decisão -


8 – Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 22 de Maio de 2019. - Isabel Marques da Silva (relatora) – Dulce Neto – Francisco Rothes.