Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01529/14
Data do Acordão:03/04/2015
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:CASIMIRO GONÇALVES
Descritores:AUTOLIQUIDAÇÃO
TRIBUTAÇÃO AUTONOMA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
JUROS INDEMNIZATÓRIOS
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário:Estando a AT sujeita ao princípio da legalidade (cfr. art. 266.º, n.º 2, da CRP e art. 55.º da LGT), não pode deixar de aplicar uma norma com fundamento em inconstitucionalidade, a menos que o TC já tenha declarado a inconstitucionalidade da mesma com força obrigatória geral (cfr. art. 281.º da CRP) ou se esteja perante violação de normas constitucionais directamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP).
Nº Convencional:JSTA000P18673
Nº do Documento:SA22015030401529
Data de Entrada:12/19/2014
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

RELATÓRIO
1.1. A…………, S.A., com os demais sinais dos autos, recorre da sentença proferida pelo TAF de Sintra, na parte em que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial por aquela deduzida contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, por sua vez apresentada contra liquidação de IRC do ano de 2008, ou seja, na parte relativa à improcedência dos juros indemnizatórios peticionados.

1.2. Termina as alegações formulando as Conclusões seguintes:
A. A impugnação judicial já foi deferida com fundamento na inconstitucionalidade da norma do artigo 5.°, n.º 1 da Lei n.º 64/2008, de 5 de dezembro.
B. São devidos juros indemnizatórios quando se apurou que houve erro imputável aos serviços e o tal erro de direito persiste de forma igual, independentemente se se trata de um ato de liquidação praticado pela Administração Tributária ou um ato de autoliquidação praticado pelo próprio contribuinte.
C. Ou seja, nem a circunstância de estar em causa nos autos um ato de autoliquidação constitui um óbice ao pagamento daqueles juros ao abrigo do preceituado no artigo 43.°, da LGT, nem tão-pouco poderá sustentar-se a inexistência de erro imputável aos serviços com fundamento na adstrição da Administração Tributária ao cumprimento da lei e no facto de estar na base da ilegalidade do ato de autoliquidação impugnado a inconstitucionalidade material de uma norma.
D. A este respeito pronunciou-se já por diversas vezes este Supremo Tribunal no sentido de o dever de obediência da Administração Tributária à lei compreender todas as fontes normativas (de quanto resulta um dever de obediência, prima facie, à CRP, enquanto Lei Fundamental do Estado) e de o direito do contribuinte a juros indemnizatórios, atenta a função reparadora dos mesmos em face de uma atuação ilegal da Administração Tributária, estar dependente apenas da existência de um comportamento ilegal por parte da Administração Tributária de quanto resultem prejuízos para o contribuinte, como sucedeu no caso sub judice.
E. Desta forma, são devidos juros indemnizatórios desde a data do pagamento até à data da emissão da respetiva nota de crédito, o que na presente data perfaz o valor de Euros 10.170,51.
Termina pedindo o provimento do recurso e a revogação da sentença recorrida, na parte em que decidiu pela improcedência relativa ao pagamento de juros indemnizatórios por parte da recorrida à recorrente.

1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4. O MP emite Parecer nos termos seguintes, além do mais:
«(…) Ora, no caso concreto dos autos estamos perante uma autoliquidação, caso em que tanto a matéria tributável como a liquidação são realizadas pelo próprio contribuinte, pelo que estará afastada a possibilidade de imputação do erro aos serviços, a não ser nos casos em que a liquidação for efectuada com base em orientações genéricas da administração tributária (n.º 2 do artigo 43° da LGT), o que não ocorreu no caso concreto.
Todavia o artigo 100° da LGT acolhe uma previsão ampla da obrigação do pagamento de juros indemnizatórios, na medida em que impõe o seu pagamento em «... caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade...» (Redacção da Lei 64-B/2011 de 30 de Dezembro).
E sendo certo que no caso dos autos estejamos perante uma autoliquidação, certo é que o recorrente apresentou reclamação graciosa e a AT não reconheceu a ilegalidade da liquidação com base no vício de inconstitucionalidade da norma aplicada, vício este que veio a ser reconhecido em sede de impugnação judicial pelo tribunal.
Daí que se nos afigure que a partir do momento da pronúncia pela AT sobre a autoliquidação, esta assumiu como seu o acto tributário e não só é condição da sua impugnação contenciosa, como a partir desse momento lhe é imputável o erro de direito decorrente do vício de inconstitucionalidade suscitado pelo sujeito passivo. Ou seja, ao não dar provimento à reclamação e manter dessa forma a ilegalidade do acto tributário, a administração tributária constitui-se em responsabilidade extracontratual a partir desse momento e que é fundamento da obrigação indemnizatória.
Com efeito, a obediência que a AT deve à lei, tanto se reporta à lei ordinária, como à Constituição ou ao Direito Internacional a que o estado português se tenha vinculado (cfr. a este propósito os acórdãos do STA de 05/06/2002 e de 09/10/2002, recursos n.ºs 0392/02 e 0789/02, respectivamente).
E assim sendo, afigura-se-nos que há lugar ao pagamento de juros indemnizatórios ao abrigo do disposto na alínea c) do n° 3 do artigo 43° da LGT, aplicável extensivamente a este caso.
Decorre da sentença recorrida que a recorrente aplicou a taxa de 10% referente aos casos de tributação autónoma durante todo o período de 2008, o que só deve ocorrer no mês de Dezembro de 2008, donde resulta um excesso de tributação que a recorrente quantifica no montante de C 48.036,18 euros ((1) Tendo sido sujeito a tributação autónoma o valor de 1.027.810,90 euros, a que aplicou a taxa de 10%, apurando o valor de 102.781,09 euros, entende a recorrente que se aplicasse a taxa de 5% no período de Janeiro a Novembro de 2008, o valor apurado seria apenas de 54.744,91 euros, pelo que não seria devido o montante de 48.036,18 euros, cuja restituição reclama.)
Sucede que na sentença recorrida não foi dado como assente se na autoliquidação foi ou não apurado imposto a pagar e no caso afirmativo se o mesmo foi liquidado, pois só neste caso é que releva a eventual restituição do montante de 48.036,18 euros que a recorrente pretendia da administração tributária e que no seu entender corresponde à diferença entre o resultado da aplicação no período de Janeiro a Novembro de 2008 da taxa de 10% fixada na Lei n° 64/2008, de 5 de Dezembro, em vez da anterior taxa de 5%. Ou seja, só neste caso é que se coloca a questão do pagamento de juros indemnizatórios pela privação desse capital pago em excesso, como decorre do segmento final do n.º 1 do artigo 43° da Lei Geral Tributária, já que os mesmos se destinam a reparar os prejuízos advindos ao contribuinte do desapossamento e consequente indisponibilidade de um determinado montante pecuniário e que originam aquela obrigação indemnizatória (cfr. a este propósito o acórdão do STA de 02/07/2003, rec. 0388/103).
E como o STA só conhece de direito, verifica-se a necessidade de ampliação da matéria de facto, de forma a apurar-se qual foi o montante das tributações autónomas liquidado em excesso e se foi apurado imposto a final a pagar e se o mesmo foi ou não pago (ou se havia imposto a restituir).
Em face do exposto afigura-se-nos que a sentença recorrida fez uma incorrecta apreciação e aplicação de lei, motivo pelo qual se impõe a sua revogação na parte objecto de recurso, devendo os autos ser remetidos à 1ª instância para efeitos de ampliação da matéria de facto, com vista a apurar se foi ou não pago imposto em excesso e no caso afirmativo reconhecer-se o direito a juros indemnizatórios nos termos e âmbito supra enunciados.»

1.5. Corridos os Vistos legais, cabe decidir.

FUNDAMENTOS
2. Na sentença recorrida julgaram-se provados os factos seguintes:
A) No exercício de 2008 a ora Impugnante, A…………, S.A. contabilizou despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros no valor total de € 1.027.810,90 – Cfr. documentos 1 e 3, juntos com a p.i., acordo;
B) Em 30 de Junho de 2009, a Impugnante entregou a declaração modelo 22 de IRC, relativa ao exercício de 2008, nela fazendo constar no campo 365 do quadro 10 – cálculo do imposto – o montante de € 104.486,07, que inclui € 102.781,09 correspondente à tributação autónoma aplicada sobre os encargos referidos na alínea antecedente – Cfr. idem;
C) A Impugnante ao apurar o valor que inscreveu no campo 365 do quadro 10, referido na alínea antecedente, aplicou as taxas de tributação autónoma previstas na Lei n° 64/2008 de 5 de Dezembro – Cfr. idem;
D) Em 15 de Fevereiro de 2011 a Impugnante deduziu Reclamação Graciosa do acto tributário de autoliquidação de IRC, relativo ao exercício de 2008 – Cfr. carimbo aposto a fls. 4 do PAT, apenso;
E) Em 27 de Julho de 2011 foi proferido despacho, pelo Chefe de Divisão de Justiça Administrativa, por delegação, indeferindo a Reclamação Graciosa a que se refere a alínea antecedente, com os fundamentos constantes do projecto de decisão e da informação da Divisão de Justiça Administrativa da Direcção de Finanças de Lisboa proferida no processo 837 – Cfr. documento constante do PAT, a fls. 283 a 286, o qual se dá, aqui, por integralmente reproduzido.

3.1. Enunciando como questão fulcral a decidir a de saber se a norma contida no art. 5°, n° 1, da Lei n° 64/2008, de 5/12 (que determinou a produção de efeitos desde 1/1/2008 do disposto no art. 1°-A da mesma Lei, o qual alterou o art. 81° do CIRC, agravando de 5% para 10% a taxa de tributação autónoma incidente sobre os encargos com viaturas ligeiras de passageiros e despesas de representação) consubstancia um caso de retroactividade fiscal, proibido por força do disposto no art. 103°, n° 3, da CRP, a sentença recorrida veio a julgar apenas parcialmente procedente a impugnação: (i) julgou-a procedente quanto à invocada ilegalidade da autoliquidação de IRC (na parte relativa às tributações autónomas) por considerar que «a norma do artigo 5°, n° 1, da Lei n° 64/2008, de 5 de Dezembro, ao determinar a retroacção de efeitos a 1 de Janeiro de 2008 da alteração do artigo 81°, n° 3, do CIRC», incorre no vício de inconstitucionalidade, por violação da proibição imposta pelo nº 3 do art. 103º da CRP; e (ii) julgou-a improcedente quanto ao pedido de juros indemnizatórios, por considerar que não se verifica erro imputável aos serviços que fundamente a aplicação do disposto no art. 43° da LGT.

3.2. Discordando da decisão, nesta parte relativa à improcedência do pedido de juros indemnizatórios, a recorrente sustenta que o facto de a AT estar vinculada ao cumprimento da lei e o facto de a ilegalidade do acto tributário decorrer da inconstitucionalidade material da norma aplicável, não obsta a que sejam devidos os peticionados juros indemnizatórios, invocando a favor deste entendimento a doutrina do acórdão do STA de 9/10/2002, no proc. n° 0789/02. Ou seja, a única questão a apreciar no presente recurso reconduz-se, portanto, à de saber se a AT está ou não obrigada ao pagamento dos ditos juros indemnizatórios, uma vez que a autoliquidação do imposto foi anulada e restituído parte do imposto, por se ter considerado que a aplicação retroactiva do disposto no nº 1 do art. 5º da Lei n.º 64/2008, de 5/12, violava o disposto no art. 103º, n.º 3 da CRP – princípio da proibição da retroactividade fiscal.
Vejamos.

4.1. Sob a epígrafe «Pagamento indevido da prestação tributária», nos nºs. 1 e 2 do art. 43º da LGT dispõe-se o seguinte:
«1. São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2. Considera-se também haver erro imputável aos serviços no casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
(…)»
E também o art. 100º da LGT (Efeitos de decisão favorável ao sujeito passivo), acolhendo uma previsão ampla da obrigação de pagamento de juros indemnizatórios, impõe à AT a obrigação, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, da imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei (cfr. a redacção introduzida pela Lei nº 64-B/2011, de 30/12).
No caso concreto dos autos, tratando-se de uma autoliquidação (caso em que tanto a matéria tributável como a liquidação são operadas pelo próprio contribuinte), a possibilidade de imputação do erro aos serviços estará afastada, a não ser que a liquidação haja sido efectuada com base em orientações genéricas da AT (nº 2 do transcrito art. 43° da LGT), o que, no caso, também não sucedeu.

4.2. Sobre as circunstâncias em que, tendo sido determinada a anulação do imposto já anteriormente pago, a AT está obrigada ao pagamento de juros indemnizatórios, o STA tem vindo a pronunciar-se de forma uniforme, no sentido de dever distinguir-se entre a anulação da liquidação com fundamento em ilegalidades procedimentais e a anulação da liquidação com fundamento em ilegalidades substantivas inerentes à relação jurídica tributária.
A este propósito, exarou-se no acórdão de 4/11/2009, proc. n.º 0665/09, o seguinte: (Sobre esta matéria cfr. igualmente Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Vol. I, 6.ª edição, Áreas Editora, 2011, anotações 5 a 7 ao art. 61.º, pp. 530 a 545.)
«Aquela expressão «erro», sem qualquer qualificativo, abrange tanto o erro de facto como o erro de direito.
Mas, a utilização da expressão «erro», e não «vício» ou «ilegalidade» para aludir aos factos que podem servir de base à atribuição de juros, revela que se tiveram em mente apenas os vícios do acto anulado a que é adequada essa designação, que são o erro sobre os pressupostos de facto e o erro sobre os pressupostos de direito. (( ) Sobre o uso desta terminologia, consagrada na doutrina e na jurisprudência, pode ver-se MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, volume I, páginas 564-566.)
Na verdade, há vícios dos actos administrativos e tributários a que não é adequada tal designação, nomeadamente os vícios de forma e a incompetência, pelo que a utilização daquela expressão «erro» têm um âmbito mais restrito do que a expressão «vício», que é utilizada legislativamente para referenciar qualquer ilegalidade.
Por outro lado, constata-se que no CPPT se utiliza a expressão «vícios» quando se pretende aludir, genericamente, a todas as ilegalidades susceptíveis de conduzirem à anulação dos actos, como é o caso dos arts. 101.º (arguição subsidiária de vícios) e 124.º (ordem de conhecimento dos vícios na sentença).
Por isso, é de concluir que o uso daquela expressão «erro», tem um alcance restritivo do tipo de vícios que podem servir de base ao direito a juros indemnizatórios.
Esta é, aliás, uma restrição que se compreende.
Na verdade, a existência de vícios de forma ou incompetência significa que houve uma violação de direitos procedimentais e formais dos administrados e, por isso, justifica-se a anulação do acto por estar afectado de ilegalidade.
Mas, o reconhecimento judicial de um vício daqueles tipos não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, não implica qualquer juízo sobre o carácter devido ou indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Fiscal com base no acto inválido, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou preterição de formalidade legal ou a falta de competência da autoridade que a exigiu.
Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito.
Por isso, justifica-se que, nestas situações, não estando em dúvida que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada, através da fixação de juros indemnizatórios a favor do contribuinte.
Porém, nos casos em que o vício que leva à anulação do acto é relativo a uma norma que regula a actividade da Administração, aquela nada revela sobre a ilicitude da relação jurídica fiscal e sobre o carácter indevido da prestação, à face das normas fiscais substantivas.
Nestes casos, a anulação do acto não implica que tenha havido uma lesão da situação jurídica substantiva e, consequentemente, com base no facto de ter ocorrido a anulação não se pode concluir que houve um prejuízo que mereça reparação.
Por isso se justifica que, nestas situações, não se comprovando a existência de um prejuízo, não se presuma o seu valor, fixando juros indemnizatórios, mas apenas se deva restituir aquilo que foi recebido, por deixar de existir o suporte jurídico da transferência da quantia paga para o erário público, o que poderá constituir já um benefício para o contribuinte, perante a realidade da sua situação tributária. (( ) Esta solução de restituição do recebido sem qualquer outra compensação não é mesmo uma peculiaridade do direito fiscal, sendo a prevista na lei civil para os casos de anulação de actos ou negócios jurídicos em que as partes estão de boa fé (arts. 289.º, n.ºs 1 e 3, e 1270.º do Código Civil), que nos casos da existência de uma acto tributário como suporte da deslocação patrimonial do contribuinte para a Fazenda Nacional é de presumir (art. 1260.º, n.º 2, do Código Civil).)
Trata-se, assim, de uma solução equilibrada no domínio processual.
Na verdade, perante o simples reconhecimento judicial de um vício de forma ou de incompetência fica-se na dúvida sobre se estavam reunidos os pressupostos de facto e de direito de que a lei faz depender o pagamento de uma prestação tributária; se essa dúvida é um motivo suficiente para não exigir uma deslocação patrimonial do contribuinte para a Fazenda Pública (justificando a restituição da quantia paga) também, por identidade de razão, essa mesma dúvida será suporte bastante para não impor uma deslocação patrimonial efectiva em sentido inverso (pagamento de uma indemnização); verdadeiramente, a regra aplicável, a mesma em ambos os casos, é a de não impor deslocações patrimoniais sem uma prova positiva da existência de uma situação, ao nível da relação tributária, em que elas devem ocorrer.
Assim, compreende-se que, nos casos em que há uma anulação de um acto de liquidação por não se verificarem os pressupostos de facto ou de direito em que devia assentar, havendo a certeza de que a prestação patrimonial foi indevidamente exigida, seja atribuída uma indemnização (no caso sob a forma de juros), e não seja feita idêntica atribuição nos casos em que a decisão judicial não implica a antijuricidade material da exigência daquela prestação.
Isto não significa, que, na sequência de uma anulação judicial originada em vício de forma ou incompetência, o contribuinte que se sinta lesado nos seus direitos patrimoniais esteja legalmente impedido de exigir judicialmente a reparação a que se julgue com direito, o que lhe é assegurado não só pela Constituição (art. 22.º da CRP), como pela lei ordinária (Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, e, anteriormente, DL n.º 48051, de 21-11-67, diplomas estes em que se faz equivaler qualquer ilegalidade a ilicitude, como se vê pelos seus arts. 9.º e 6.º, respectivamente). Porém, para obter esta reparação, o contribuinte terá de fazer, em processo próprio, a demonstração da existência do direito a essa indemnização, à face das regras gerais da responsabilidade civil extracontratual, como qualquer outra pessoa que seja lesada nos seus direitos por actos de outrem, não havendo qualquer norma constitucional ou legal que imponha que, em todos os casos de anulação de actos administrativos, se presumam os prejuízos, como está ínsito nas normas que prevêem a atribuição de juros indemnizatórios. (( ) Esta questão foi já apreciada, neste sentido, por este Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 5-5-1999, recurso n.º 5557-A, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 487, página 181, relativamente ao regime de juros indemnizatórios previsto no art. 24.º do CPT, que é, no que releva para apreciação do recurso, essencialmente idêntico ao previsto no art. 43.º da LGT.
Esta jurisprudência foi reafirmada no acórdão de 29-10-2008, recurso n.º 622/08, relativamente ao art. 43.º da LGT.)» (fim de citação).

4.3. Retornando ao caso vertente, constata-se que a recorrente entregou em 30/6/2009 a declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2008, nela fazendo constar no campo 365 do quadro 10 – cálculo do imposto – o montante de € 104.486,07, que inclui € 102.781,09 correspondente a tributação autónoma (aplicada sobre despesas de representação e encargos com viaturas ligeiras de passageiros), operada mediante a aplicação das taxas de tributação autónoma previstas na Lei nº 64/2008, de 5/12 (cfr. als. A a C do Probatório). Mais se constata (cfr. als. D e E do Probatório) que em 15/2/2011 a recorrente deduziu reclamação graciosa contra a dita autoliquidação, a qual veio a ser indeferida por despacho de 27/6/2011, por se ter entendido ser de aplicar aquele art. 5º, n.º 1 da Lei n.º 64/2008.
E depreende-se, igualmente, da matéria de facto que a autoliquidação não resultou do facto de a recorrente ter seguido quaisquer orientações genéricas da AT, devidamente publicadas, nos termos do disposto no art. 43º, n.º 2 da LGT, antes se tendo fundado na aplicação da Lei então vigente.
Ora, assim sendo, haveremos de concluir que a anulação da liquidação ocorreu por razões inerentes à própria relação jurídica tributária: a autoliquidação ancorou-se em norma legal que veio a ser declarada inconstitucional (por violação do princípio da proibição da retroactividade fiscal – art. 103º, n.º 3 da CRP). Na verdade, trata-se de uma autoliquidação de imposto que seguiu as regras estabelecidas pelo disposto no art. 5º, n.º 1, da Lei n.º 64/2008, de 5/12, sendo que, suscitada perante o TConstitucional a apreciação da conformidade constitucional de tal norma, o Tribunal veio a firmar entendimento (cfr. os acs. n.ºs 310/2012 e 617/2012, respectivamente, de 20/6/2012 e de 19/12/2012) no sentido da violação daquele princípio, nos casos em que o disposto naquele normativo fosse aplicado a factos ocorridos anteriormente. (Inicialmente, no acórdão nº 18/2011, de 12/1/2011, o Tribunal Constitucional havia sufragado o entendimento de que não ocorria a violação daquele princípio da proibição da retroactividade fiscal.)
Importa, então, apurar se esse “erro sobre os pressupostos de direito” (se a errada consideração, no apuramento do imposto a pagar, de norma posteriormente julgada inconstitucional) pode ou não ser imputável aos serviços da AT. Ou seja, há que apreciar se a AT poderia ou não fazer aquele “julgamento” de conformidade constitucional do disposto no art. 5º, n.º 1 da Lei n.º 64/2008, para daí podermos concluir que a mesma tenha decidido a reclamação graciosa, ancorada em erro sobre os pressupostos de direito.
Também sobre esta concreta questão o STA já por diversas vezes se pronunciou em casos semelhantes (cfr., entre outros, os acs. de 26/2/2014, rec. nº 0481/13; de 12/3/2014, rec. nº 01916/13; de 21/1/2015, rec. nº 0843/14; de 21/1/2015, rec. nº 0703/14), no sentido de que, para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não pode ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu.
E como logo naquele primeiro aresto citado se exarou, «…a menos que esteja em causa o desrespeito por normas constitucionais diretamente aplicáveis e vinculativas, como as que se referem a direitos, liberdades e garantias (cfr. art. 18.º, n.º 1, da CRP, a AT não pode recusar-se a aplicar a norma com fundamento em inconstitucionalidade (Com interesse sobre a questão, vejam-se os pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República referidos na Colectânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, volume V, pontos 10, 3, 3.2 – respetivamente, com as epígrafes «Fiscalização da constitucionalidade», «Fiscalização sucessiva» e «(In)aplicação de norma inconstitucional (poderes e deveres da Administração Pública)» –, cuja doutrina seguimos.).
É que a Administração em geral está sujeita ao princípio da legalidade, consagrado constitucionalmente e a AT está-lo também por força do disposto no art. 55.º da LGT.
A nosso ver, a AT deverá aguardar a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a emitir pelo Tribunal Constitucional (TC), nos termos do art. 281.º da CRP.
É que, como diz VIEIRA DE ANDRADE, «Este conflito [entre a constitucionalidade e o princípio da legalidade] não pode resolver-se através da prevalência automática do direito constitucional sobre o direito legal. Não é disso que se trata, porque o que está em causa é não a constitucionalidade da lei, mas o juízo que sobre essa constitucionalidade possam fazer os órgãos administrativos. Por um lado, a Administração não é um órgão de fiscalização da constitucionalidade; por outro lado, a submissão da Administração à lei não visa apenas a protecção dos direitos dos particulares, mas também a defesa e prossecução de interesses públicos […]. A concessão ao poder administrativo de ilimitados poderes para controlo da inconstitucionalidade das leis a aplicar levaria a uma anarquia administrativa, inverteria a relação Lei-Administração e atentaria frontalmente contra o princípio da divisão dos poderes, tal como está consagrado na nossa Constituição» (Direito Constitucional, Almedina, 1977, pág. 270.).
No mesmo sentido, JOÃO CAUPERS afirma que «a Administração não tem, em princípio, competência para decidir a não aplicação de normas cuja constitucionalidade lhe ofereça dúvidas, contrariamente aos tribunais, a quem incumbe a fiscalização difusa e concreta da conformidade constitucional, demonstram-no as diferenças entre os artigos 207º [hoje, 204.º] e 266º, nº 2, da Constituição. Enquanto o primeiro impede os tribunais de aplicar normas inconstitucionais, o segundo estipula a subordinação dos órgãos e agentes administrativos à Constituição e à lei.
Afigura-se claro que a diferença essencial entre os dois preceitos decorre exactamente da circunstância de se não ter pretendido cometer à Administração a tarefa da fiscalização da constitucionalidade das leis. O desempenho de tal função, por parte daquela tem de ser visto como excepcional» (Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores e a Constituição, Almedina, 1985, pág. 157.).
Concluímos, assim, que no Direito Constitucional Português não existe a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal…» (fim de citação).
Não se vendo razões para divergir do sentido destas jurisprudência e doutrina, nem se vislumbrando nas alegações da recorrente o aporte de novos argumentos relevantes susceptíveis de afastarem ou infirmarem tal interpretação, não pode deixar de concluir-se, atendendo, aliás, ao disposto no nº 3 do art. 8º do CCivil, que a AT «não poderia ter decidido de modo diferente a reclamação graciosa que a recorrente lhe dirigiu, quer porque não lhe assiste o direito a recusar a aplicação de norma que no seu entender poderia ser inconstitucional, porque não lhe é permitido formular um juízo sobre essa constitucionalidade, quer porque já anteriormente a essa decisão havia sido proferido pelo Tribunal Constitucional acórdão em que se havia concluído pela conformidade constitucional do concreto preceito legal, sobre o qual, posteriormente, veio recair o julgamento de inconstitucionalidade.» (citado acórdão do STA, de 21/1/2015, rec. 0703/14, cuja letra e fundamentação temos seguido).
E não obstante a alegação do MP, também, com o devido respeito, não se nos afigura que a pronúncia substanciada no indeferimento da reclamação graciosa seja subsumível a uma assunção, por parte da AT, da prática do acto tributário da autoliquidação, por forma a que, a partir desse momento, lhe seja imputável o erro de direito decorrente do vício de inconstitucionalidade suscitado pelo sujeito passivo, nomeadamente, que ao não dar provimento à reclamação, a AT se haja constituído em responsabilidade extracontratual a partir desse momento, e que fundamentaria a obrigação indemnizatória.
Não se questionando que o alegado dever de obediência à lei tanto se reporta à lei ordinária, como à Constituição ou ao Direito Internacional a que o Estado português se tenha vinculado, esse dever não abrange, como acima se disse, à luz do Direito Constitucional Português, a possibilidade de a Administração se recusar a obedecer a uma norma que considera inconstitucional, substituindo-se aos órgãos de fiscalização da constitucionalidade, a menos que esteja em causa a violação de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, o que não é manifestamente o caso quando está em causa a aplicação de norma eventualmente violadora do princípio da não retroactividade da lei fiscal.
Aliás, também da ponderação do Cons. Jorge Lopes de Sousa, parece dever considerar-se que, nos caso de indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, o erro só passará a ser imputável à AT «a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir uma decisão com pressupostos correctos.» (sublinhado nosso). (A este propósito, o autor pondera o seguinte: «Nas situações em que a prática do acto que define a dívida tributária cabe ao contribuinte (como sucede, nomeadamente, nos referidos casos de autoliquidação, retenção na fonte e pagamentos por conta), bem como naqueles em que o acto é praticado pela Administração Tributária com base em informações erradas prestadas pelo contribuinte e há lugar a impugnação administrativa (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), o erro passará a ser imputável à Administração Tributária após o eventual indeferimento da pretensão apresentada pelo contribuinte, isto é, a partir do momento em que, pela primeira vez, a Administração Tributária toma posição sobre a situação do contribuinte, dispondo dos elementos necessários para proferir uma decisão com pressupostos correctos.» (Ob. cit., anotação 6)a2 ao art. 61.º, p. 537).)

4.4. Em suma, no caso dos autos, para efeitos de pagamento de juros indemnizatórios ao contribuinte, não pode ser imputado aos serviços da AT erro que, por si, tenha determinado o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, uma vez que não estava na sua disponibilidade decidir de modo diferente daquele que decidiu. Não podendo a errada consideração (no apuramento do imposto a pagar) de uma norma posteriormente julgada inconstitucional, ser atribuída a ilegal conduta da AT, também não pode legitimar a condenação nos juros indemnizatórios pedidos ao abrigo do art. 43 da LGT por se não verificar um pressuposto de facto constitutivo de tal direito – o erro imputável aos serviços.
Pelo que é de confirmar a sentença recorrida na medida em que denegou a atribuição de juros indemnizatórios à impugnante.

DECISÃO
Nestes termos acorda-se em, negando provimento ao recurso, confirmar, nessa medida, a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 4 de Março de 2015. - Casimiro Gonçalves (relator) – Francisco RothesAragão Seia.