Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0558/15.0BEMDL 0176/18
Data do Acordão:03/20/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24340
Nº do Documento:SA2201903200558/15
Data de Entrada:02/21/2018
Recorrente:A............, SA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam os juízes da secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

A…………, SA, inconformada, interpôs recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (TAF de Mirandela) datada de 19 de Maio de 2017, que julgou procedente a excepção de erro na forma do processo e absolveu a Administração Tributária da instância, em que a sociedade A…………, SA, deduzira oposição à execução fiscal, que contra ela corre nos Serviços de Finanças de Mirandela no valor de € 113.071,91, relativa a dívidas de taxas de financiamento de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações (SIRCA).

Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:
a) A questão decidenda aqui em crise prende-se com o facto de a sentença do Tribunal a quo ter considerado procedente a exceção de erro na forma do processo, absolvendo a Autoridade Tributária da instância, por considerar que os fundamentos invocados pelo Recorrente na oposição à execução não se encontram enquadrados em nenhum dos fundamentos previstos no artigo 204° do CPPT, pois considera que o Recorrente pretende a apreciação da legalidade da liquidação da dívida exequenda,
b) Não podendo a Recorrente concordar com tal entendimento, pois considera que o fundamento invocado subsume-se à alínea a) do n.º 1 do artigo 204° do CPPT, qual seja, a ilegalidade em abstrato da taxa de financiamento do sistema de recolha de cadáveres mortos nas explorações (Taxa SIRCA),
c) Considera o Recorrente que a oposição à execução encontra-se devidamente fundamentada por preenchimento da alínea a) do n.º 1 do artigo 204° do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT).
d) Em concreto, concluindo pela ilegalidade da Taxa SIRCA, incluindo-se na norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 204° do CPPT - a ilegalidade abstrata ou absoluta consistente em não existir nas leis em vigor a contribuição, imposto ou taxa de que resultou a dívida.
e) Mais ainda, o pedido formulado na oposição à execução é o de que seja julgada procedente a oposição, com consequente extinção do processo executivo, declarando-se verificada a ilegalidade da taxa (tributo).
f) De todo o modo, o pedido de extinção da execução é próprio da oposição à execução fiscal, tratando-se portanto de um pedido adequado ao meio processual utilizado, e nessa medida, não poderia afirmar-se que ocorreu erro na forma do processo.
g) Ora, de acordo o princípio pro actione, o qual se encontra estabelecido no artigo 7° do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e do princípio da tutela judicial efetiva, o Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a adotar:
“(...) uma posição de grande flexibilidade na interpretação do pedido quando, em face das concretas causas de pedir invocadas, se possa intuir — ainda que com recurso à figura do pedido implícito — qual a verdadeira pretensão de tutela jurídica”.
h) Conjugando estas regras com o pedido formulado pelo Recorrente - “Termos em que deve ser a presente oposição recebida, procedente por a ilegalidade da taxa (Tributo) (...) e em consequência ser a oponente absolvida e decretada a extinção da execução”,
i) Facilmente podemos concluir que tal pedido se conforma à previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT, uma vez que é função própria da oposição à execução fiscal a extinção da execução fiscal.
j) Conclui-se assim que a sentença do Tribunal a quo operou num errado enquadramento do pedido e da causa de pedir ao julgar procedente a exceção de erro na forma do processo, pelo que deverá a mesma ser revogada, com todas as consequências legais.
k) Sem prescindir,
l) Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, veio revogar o previsto no Decreto-Lei 244/2003 no que respeita ao financiamento, tendo sido radicalmente alterado o paradigma da responsabilidade pelo pagamento da taxa devida, o qual passou a recair sobre quem dela não retira qualquer benefício, os estabelecimentos de abate.
m) O legislador transformou a taxa em causa num verdadeiro imposto, porquanto, conforme resulta demonstrado, os beneficiários do SIRCA são apenas os respetivos produtores e apresentantes dos animais e não os estabelecimentos de abate.
n) A taxa SIRCA, quando imposta aos estabelecimentos de abate, consubstancia um imposto e não uma taxa ou qualquer outra contribuição financeira.
o) Com efeito, atentas as características reconhecidas à taxa enquanto tributo, conclui-se que não estamos, in casu, perante a liquidação de qualquer taxa, porquanto a quantia exigida à ora Impugnante não é devida por qualquer prestação de um serviço público, pela utilização de um bem do domínio público, nem pela remoção de um obstáculo jurídico.
p) Na verdade, para que a SIRCA fosse suscetível de continuar a ser qualificada como uma taxa teria de ser possível identificar um vínculo de correspetividade entre o pagamento da mesma e a prestação efetuada pelo Estado.
q) Ora, se essa sinalagmaticidade existia enquanto a SIRCA era cobrada àqueles que dela beneficiavam (os detentores dos animais), desapareceu a partir do momento em que com o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, passaram os estabelecimentos de abate de animais a figurar como seus sujeitos passivos.
r) Destarte, para que o montante cobrado seja uma taxa, a mesma terá, necessariamente, que incidir sobre os titulares de explorações (os beneficiários) e não sobre os estabelecimentos de abate (terceiros), pelo que podemos afirmar que estamos perante um verdadeiro imposto e não qualquer taxa.
s) É então seguro afirmar que as taxas aplicadas são ilegais, na justa medida em que violam o disposto no n.º 2 do artigo 4.º da LGT.
t) Ora, ao tratar-se de um imposto, acontece que os impostos obedecem ao princípio da legalidade tributária, consagrado no n.º 2, do artigo 103.º, da CRP, de acordo com o qual, “os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes”.
u) A criação de impostos é da exclusiva competência legislativa reservada da Assembleia da República, pelo que a lei a que se refere o referido n.º 2 do artigo 103.º da CRP é, em princípio, uma lei da AR, só podendo tratar-se de Decreto-Lei quando houver uma autorização concedida ao Governo.
v) Sucede que o Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro foi aprovado nos termos do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP, ou seja, como se a matéria em causa fosse da competência não reservada da Assembleia da República, pelo que são organicamente inconstitucionais as normas constantes do Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, designadamente o seu artigo 2.º, n.º 1, na medida em que procede à criação de um imposto sobre os estabelecimentos de abate em desrespeito pelos supramencionados comandos constitucionais.
x) Isto posto, a Constituição reconhece aos cidadãos o direito de não procederem ao pagamento dos impostos, não só no caso de os mesmos terem sido criados de forma inconstitucional, ou seja, quando não foram criados pela Assembleia da República, ou mediante autorização desta, mas igualmente quando a sua liquidação e cobrança não sejam feitas “nas formas prescritas na lei”.
y) Neste sentido professa o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido em 3 de maio de 2015, no âmbito do processo n.º 0834/16, o qual conclui ser inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência (artigo 13.° da Constituição), a taxa “SIRCA” tal como configurada pelo Decreto-Lei n.º 19/2011, de 7 de Fevereiro, na medida em que configura o “estabelecimento de abate” como contribuinte direto do tributo, na medida em que configura o “estabelecimento de abate” como contribuinte direto de tal tributo, quando o presumível beneficiário do serviço que esta se destina a financiar é, não ele, mas o titular da exploração.
z) Pelo que, em face de tudo o exposto, apenas podemos concluir pela ilegalidade em abstrato da “Taxa para financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres de Animais Mortos nas Explorações”, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 204º do CPPT, que a Recorrente liquidou à Recorrida, devendo ser a oposição à execução apresentada ser considerada procedente, por provada, e em consequência, ser anulados os atos de liquidação subjacentes ao processo executivo em apreço e decretada a extinção do mesmo.
PEDIDO:
Nestes termos e nos demais que Vs. Exas. doutamente suprirão, deverá:
a) Ser declarado o processo de oposição à execução como o meio idóneo para a declaração da ilegalidade em abstrato das taxas SIRCA, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 204º do CPPT, as quais serviram de base ao processo executivo instaurado contra a Recorrente, em virtude da aplicação dos princípios pro actione da tutela jurisdicional efetiva; Sem prescindir,
b) Deve a oposição à execução ser julgada procedente por provada, e em consequência, ser anulados os atos de liquidação das taxas SIRCA subjacentes ao processo executivo em apreço e decretada a extinção do mesmo; Pois só assim se fará inteira e sã JUSTIÇA!

Não houve contra-alegações.

O Ministério Público notificado, pronunciou-se pele procedência do recurso, revogação da decisão recorrida, julgar-se procedente a oposição judicial e consequente extinção do processo de execução fiscal. No essencial o Ministério Público entende que, por um lado a recorrente pede que seja declarada a ilegalidade do tributo em causa e decretada a extinção da oposição, sendo que este pedido afigura-se compatível com a oposição judicial. Por outro lado entende que, o tributo em causa é inconstitucional, pois que configura o estabelecimento de abate como seu contribuinte directo, não sendo esta entidade o presumível beneficiário do serviço que a taxa visa financiar.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

Na decisão recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade concreta:
1. A sociedade Oponente é, como o próprio nome indica, um matadouro industrial;
2. A Oponente foi citada em 15/7/2015 para pagar as taxas de financiamento do Sistema de Recolha de Cadáveres Animais Mortos nas Explorações (SIRCA);
3. Os períodos de tempo a que os prazos de pagamentos das taxas se reportam, vão de 1 de Abril de 2012 (al. a) a 1 de Março de 2015 (al. jj);
4. A oponente deu entrada com a oposição em 2/10/2015.
Nada mais se deu como provado.

Há agora que apreciar o recurso que nos vem dirigido.
A questão que se coloca nos presentes autos já foi por diversas decidida por este Supremo Tribunal, em sentido contrário ao adoptado na sentença recorrida, e consiste em saber em que medida os fundamentos invocados pelo recorrente/oponente são idóneos a serem discutidos no âmbito do processo de oposição à execução fiscal quando esteja em causa a invocação da ofensa de parâmetros e princípios constitucionais pelas próprias normas que servem de suporte à liquidação da taxa.

É à face do pedido ou conjunto de pedidos formulado pelo interessado e não à causa de pedir que se afere a adequação das formas de processo especiais e, consequentemente, a existência de erro na forma de processo, sendo igualmente certo que a causa de pedir pode ser utilizada como elemento de interpretação do pedido quando existam dúvidas quanto a este, cfr. acórdão de 5 de Novembro de 2014, proferido no recurso n.º 01050.
Todavia, a causa de pedir não tem a ver com a forma de processo utilizada pelo litigante mas sim com a procedência/improcedência da acção, podendo haver lugar a rejeição liminar quando for manifesta a improcedência.
Ora, a recorrente pede que seja declarada a ilegalidade do tributo em causa (TAXA SIRCA) e, em consequência, ser absolvida e decretada a extinção da oposição.
Este pedido afigura-se compatível com a oposição judicial, sendo certo que a ilegalidade abstrata ou absoluta da liquidação constitui fundamento de oposição, nos termos do estatuído no artigo 204.º, n.º 1/, al. a) do CPPT.
De facto, a recorrente invoca como fundamento de oposição, pelo menos também, a ilegalidade abstrata da TAXA SIRCA, sustentando a inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, n.º 1 do DL 19/2011, uma vez que os sujeitos passivos da taxa são, não os apresentantes para abate, mas os próprios estabelecimentos de abate, pelo que estaremos perante um imposto e não perante uma taxa.
Está-se aqui, perante aquilo que doutrinal e jurisprudencialmente se designa por ilegalidade abstrata ou absoluta da liquidação, que se distingue da «ilegalidade em concreto» por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do ato tributário ou da liquidação; isto é, na ilegalidade abstrata a ilegalidade não reside diretamente no ato que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o ato foi praticado.
Já se disse no acórdão datado de 23.11.2011, recurso n.º 0945/10 “…que a apontada inconstitucionalidade das normas regulamentares que instituíram a taxa que constitui a dívida exequenda constitui fundamento de oposição enquadrável na alínea a) do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT.
Com efeito, esse preceito prevê o que doutrinal e jurisprudencialmente se designa por ilegalidade abstracta da liquidação, que se distingue da ilegalidade em concreto por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do acto de liquidação.
Como explica o Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa, no “Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado”, 5ª edição, II volume, pág. 323, «na ilegalidade abstracta a ilegalidade não reside directamente no acto que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o acto foi praticado. (...)
«O CPT e o CPPT, embora tenham entreaberto excepcionalmente as portas da oposição à execução fiscal à discussão da legalidade em concreto nos casos em a lei não prevê meio de impugnação contenciosa dos actos de liquidação da dívida exequenda [arts. 286.º, n.º 1, alínea g), e 204.º, n.º 1, alínea h, respectivamente], continuaram a estabelecer a regra da possibilidade da apreciação da ilegalidade em abstracto no âmbito da oposição à execução fiscal, independentemente de ter havido ou não a possibilidade de impugnar contenciosamente o acto de liquidação [alíneas a) dos n.ºs 1 daqueles arts. 286.º e 204.º].
Uma razão para a manutenção desta distinção entre apreciação da ilegalidade em abstracto e em concreto (...), é a de que “a ausência em absoluto do pressuposto normativo da tributação implica uma violação directa do princípio constitucional da legalidade dos impostos - uma violação da Constituição que no fundo se traduz, bem pode dizer-se, numa verdadeira usurpação de poderes (...)”.
Estando este regime legal especialmente previsto para os casos em que o acto de liquidação não tem por suporte em qualquer lei em vigor, ele será aplicável, por paridade ou maioria de razão, aos casos em aquele acto assenta em norma qualificável como inexistente ou existente mas inválida. (...)
Cabem neste conceito de ilegalidade abstracta todos os casos de actos que aplicam normas que violam regras de hierarquia superior, designadamente, além das normas constitucionais, as de direito comunitário ou internacional vigente em Portugal ou mesmo normas legislativas de direito ordinário quando é feita aplicação de normas regulamentares.».
Em suma, a ilegalidade invocada na presente oposição é “abstracta”, por não se consubstanciar num vício próprio do acto de liquidação da taxa, incorrido por ocasião da sua prática, mas da própria norma regulamentar que criou esse tributo, por inconstitucional e, por isso, incapaz de servir de alicerce ao acto de liquidação. Ilegalidade que logra enquadramento na alínea a) do nº 1 do artigo 204.º do CPPT, podendo, por isso, servir de fundamento a esta oposição à execução fiscal.
Conclui-se, portanto, que não ocorre erro na forma de processo.

E assim sendo, cumpre agora saber se assiste ou não razão ao oponente/recorrente.
O STA, de forma reiterada tem decidido que a TAXA SIRCA, tal como estava configurada no artigo 2.º do DL 19/2011, de 07/02, é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, na sua dimensão de equivalência, cfr. entre outros, acórdãos de 03/05/2017-P. 0834/16, de 25/10/2017-P. 0659/17 e de 08/11/2017-P. 0829/17, acessíveis em www.dgsi.pt.
Não há agora razão para divergir desta orientação jurisprudencial por se manterem válidos os fundamentos de tais acórdãos no sentido de o tributo em causa ser inconstitucional, pois que configura o estabelecimento de abate como seu contribuinte direto, não sendo esta entidade o presumível beneficiário do serviço que a taxa visa financiar.
De facto, o beneficiário do serviço que a taxa visa financiar é, antes, o titular da exploração dona dos animais abatidos nas condições previstas no mencionado DL.
Assim, teremos que concluir que não só na sentença recorrida se errou quanto ao julgamento efectuado, bem como deve proceder a oposição à execução fiscal.

Face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, julgar procedente a oposição à execução fiscal e, em consequência, julgar extinta a execução fiscal quanto ao oponente.
Custas na instância e neste Supremo Tribunal pela recorrida.
D.n.
Lisboa, 20 de Março de 2019. – Aragão Seia (relator) – Dulce Neto – Pedro Delgado.