Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0868/16.9BELRA
Data do Acordão:07/13/2022
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:IRC
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CORRECÇÃO
PREJUÍZO FISCAL
Sumário:I - Os fundamentos das correções aos prejuízos fiscais declarados pelo sujeito passivo não integram a fundamentação das correções às deduções efetuadas a jusante e a que alude o artigo 52.º, n.º 4, do Código de IRC;
II - Pelo que não padece de falta de fundamentação o ato tributário que corrige os valores das deduções dos prejuízos sem incluir, no respetivo discurso fundamentador, as razões de facto e de direito que determinaram as correções aos valores declarados desses prejuízos e apurados a montante.
Nº Convencional:JSTA000P29712
Nº do Documento:SA2202207130868/16
Data de Entrada:09/13/2021
Recorrente:A............, LDA.
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A…………, LDA., com o número de identificação fiscal ……… e com sede na Rua ………, Marinha Grande, recorreu da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial da decisão de indeferimento total do recurso hierárquico do indeferimento da reclamação graciosa interposta contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e de juros compensatórios, relativas aos exercícios de 2012 e 2013, no montante global de € 105.515,82.

Com a interposição do recurso apresentou alegações, que rematou com as seguintes conclusões: «(...)

A) A douta sentença recorrida conclui, erroneamente, que face à sequência dos procedimentos, a impugnante/recorrente ao ser notificada das liquidações de IRC dos anos de 2012 e 2013, sabia ou tinha conhecimento do prejuízo corrigido no exercício de 2009, contudo, assim não foi.

B) Na verdade, resulta dos factos provados que o acerto de contas que corrige o prejuízo do exercício de 2009 foi notificado à recorrente em 26/08/2015 ou seja, mais de 8 meses após ter sido notificada das liquidações adicionais que corrigiram o IRC dos exercícios de 2012 e 2013 (notificações efetuadas em 28/11/2014 e 5/12/2014).

C) Daí que, assiste razão à impugnante/recorrente quando alega que as liquidações adicionais do IRC dos exercícios de 2012 e 2013 estão feridas de falta da fundamentação, porquanto na data em que foram notificadas à impugnante ainda esta não tinha sido notificada do acerto de contas do exercício de 2009, onde foi corrigido o montante dos prejuízos a reportar para os anos seguintes.

D) O mesmo é dizer que se o prejuízo corrigido em 2009, e reportado para os anos seguintes, apenas foi notificado em 26 de agosto de 2015, tornando-se eficaz apenas nessa data, não consubstancia a fundamentação dos atos tributários relativos aos exercícios de 2012 e 2013 efetuados em data precedente (em novembro e dezembro de 2014).

E) Efetivamente, o que se verificou no caso dos autos foi uma fundamentação “a posteriori”, a qual não é válida, na medida em que não preenche o requisito da contemporaneidade, por ser deferida após a prática dos atos tributários impugnados.

F) Pelo que, a douta sentença recorrida não poderá manter-se na ordem jurídica por ter efetuado um erróneo julgamento dos factos.».

Pediu fosse dado provimento ao presente recurso e fosse a sentença recorrida anulada, bem como as liquidações impugnadas.

A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações: «(…)

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Remetidos os autos a este tribunal, foi aberta vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto lavrou douto parecer, onde concluiu que, «(…) constando das conclusões do relatório dos Serviços de Inspeção a fundamentação relativa às correções aos prejuízos declarados no ano de 2009 e a alteração daí decorrente para os exercícios de 2012 e 2013, os atos tributários não padecem do vício de falta de fundamentação que lhe é assacado pela Recorrente, motivo pelo qual se impõe a confirmação da sentença, julgando-se improcedente o recurso.».

Foram dispensados os vistos legais, pelo que cumpre decidir em conferência.


◇◇◇

2. Ao abrigo do disposto no artigo 663.º, n.º 6 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 679.º do mesmo Código, dão-se aqui por reproduzidos os factos dados como provados em primeira instância.

◇◇◇

3. Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial da decisão de indeferimento do recurso hierárquico do indeferimento da reclamação graciosa de atos de liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (“IRC”) dos exercícios de 2012 e 2013.

A Recorrente não se conforma com o decidido em primeira instância por entender que aquele Tribunal incorreu em erro de julgamento ao concluir que as liquidações em causa não padeciam do vício de falta de fundamentação.

No entendimento da Recorrente, as referidas liquidações «estão feridas de falta de fundamentação» [conclusão “C)” do recurso] porque o «o prejuízo corrigido em 2009 (…) não consubstancia a fundamentação dos atos tributários relativos aos exercícios de 2012 e 2013» [conclusão “D)” do recurso] e o «acerto de contas do exercício de 2009, onde foi corrigido o montante dos prejuízos a reportar para os anos seguintes» (…) «apenas foi notificado em 26 de agosto de 2015», (…) «constituindo uma fundamentação “a posteriori”» [conclusão “E)” do recurso].

Decorre do sobredito que a Recorrente entende que o ato tributário impugnado (onde foram efetuadas correções aos valores dos prejuízos deduzidos em 2012 e 2013) não se encontra suficientemente fundamentado porque não incluiu nem foi precedido da notificação dos fundamentos de outro ato tributário (onde foi corrigido o valor dos prejuízos apurados em 2009). Fundamentos estes que, notoriamente, a Recorrente entende deverem integrar o conteúdo fundamentador das outras correções ou, pelo menos, anteceder a sua notificação, fundindo-se com elas no que designa de «procedimento sequencial e contínuo».

Decorre também do sobredito que a Recorrente entende que a fundamentação necessária das correções impugnadas consta do documento de acerto de contas que lhe foi notificado em agosto de 2015. Contrapondo, no entanto, que o respetivo discurso fundamentador (qualquer que seja o seu conteúdo) não aproveita ao ato impugnado por lhe ser posterior.

A questão fundamental a decidir nos presentes autos é, por isso, a de saber se a fundamentação dos atos tributários relativos aos exercícios de 2012 e 2013 devia ser integrada pelo conteúdo fundamentador das correções relativas ao exercício de 2009.

Dizendo de outro modo: saber se a fundamentação das correções ao valor dos prejuízos deduzidos deve incluir a fundamentação das correções ao valor dos mesmos prejuízos, no exercício em que foram apurados.

No fundo, é a questão que a Recorrente colocou desde sempre (ver o artigo 13.º do requerimento inicial do procedimento de reclamação graciosa; e a pág. 3 das alegações do recurso hierárquico; e o artigo 13.º da douta petição inicial).

Só no caso de se responder afirmativamente a esta questão é que se coloca uma outra: a de saber quando é que a Recorrente acedeu a essa fundamentação e se aproveita ao ato impugnado.

É bem verdade que o teor das alegações e das conclusões do recurso também poderia integrar a alegação de outro vício. Referimo-nos agora à questão de saber se as liquidações impugnadas, pelo facto de «as correções efetuadas ao ano de 2009 ainda não se terem consolidado na ordem jurídica e constituírem um pressuposto das correções a efetuar nos exercícios posteriores», violam a lei.

Deve, porém, contrapor-se desde já que esse vício não se encontra suficientemente alegado. Desde logo porque não é ali indicada nenhuma norma que a Recorrente entenda tenha sido violada com tal atuação da Administração Tributária.

Por outro lado – e como bem refere o douto parecer do Ex.mo Senhor Procurador-Geral da República (de que retiramos as passagens entre aspas) – essa questão não foi colocada junto do tribunal de primeira instância e, por isso, também não poderia ser agora apreciada pelo tribunal de recurso. Por consubstanciar uma questão nova e que não é do conhecimento oficioso.

Estamos, por isso, reconduzidos à questão da falta de fundamentação. De que conheceremos de seguida.


◇◇◇

4. Como se sabe, a fundamentação dos atos administrativos comporta uma dimensão formal e uma dimensão material.

Num sentido formal, fala-se da fundamentação dos atos administrativos como forma de atuação da administração e mais especificamente como forma de decidir. Neste enquadramento, fundamentar é a forma de ser transparente na decisão.

Num sentido material, fala-se da fundamentação dos atos administrativos quando se pretende aludir a um certo conteúdo fundamentador. Neste enquadramento, fundamentar é sujeitar a decisão a um conjunto de parâmetros explicativos que a legitimam.

A lei reporta ao sentido formal da fundamentação quando trata do âmbito formal do dever de fundamentar, isto é quando identifica os atos da administração que devem ser fundamentados (ver o artigo 152.º do Código de Procedimento Administrativo).

E reporta ao seu sentido material quando identifica os requisitos da fundamentação, isto é, os parâmetros a que deve obedecer para que uma decisão se considere fundamentada (ver o artigo 153.º do Código de Procedimento Administrativo).

No conjunto, estas duas dimensões fornecem-nos o âmbito (externo e interno) da obrigação de fundamentar, conferindo-lhe uma certa bidimensionalidade.

Assim, na sua dimensão externa, a fundamentação é delimitada pelo âmbito da própria atuação administrativa, isto é, pelo ato ou procedimento (visto estas serem as formas mais comuns de atuação da administração e as únicas que aqui importa considerar).

Na sua dimensão interna, a fundamentação é delimitada pelo seu conteúdo mínimo, isto é, pelos parâmetros axiológico-normativos cuja observância seja necessária para que uma certa decisão se considere fundamentada.

Se analisarmos o artigo 77.º da Lei Geral Tributária, verificamos que a fundamentação das decisões da administração tributária também comporta essas duas dimensões.

Assim, a Lei Geral Tributária relaciona o dever de fundamentação com a decisão de um procedimento.

Por outro lado, a mesma Lei relaciona o dever de fundamentação com um certo conteúdo fundamentador (tem que incluir a exposição das razões de facto e de direito que a motivaram e, tratando-se de atos tributários, deve conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável).

No caso dos autos, coloca-se a questão de saber se a fundamentação da decisão de alterar as deduções dos prejuízos deve incluir a fundamentação da decisão de corrigir os mesmos prejuízos a montante.

Ora, não pode deixar de observar-se, desde já, que estamos a falar de decisões distintas, tomadas em procedimentos distintos e com âmbitos materiais e temporais também distintos.

E não se vê como possa exigir-se o conteúdo fundamentador da decisão de um procedimento inclua as razões de facto e de direito que determinaram a decisão de outro procedimento. Não sem que a lei o determine especialmente, impondo uma fundamentação reforçada.

Poderia contrapor-se que não é possível expor as razões de facto e de direito que motivaram a decisão de corrigir as deduções dos prejuízos sem explicar porque é que o apuramento desses prejuízos foi corrigido a montante. E que, por isso, a inclusão destes fundamentos constitui uma decorrência necessária do dever de fundamentar através de um discurso lógico e coerente.

Mas não é assim. Vejamos porquê.

O conteúdo concreto das razões de facto e de direito que motivam a decisão depende em primeira mão da identificação dos pressupostos legais da atuação administrativa. Afinal, fundamentar é legitimar a atuação administrativa enquadrando-a na lei.

No caso, a norma onde estão contidos os pressupostos da atuação administrativa é o artigo 52.º, n.º 4, do Código do IRC.

Ali se estabelece uma relação de conexão por dependência entre o valor dos prejuízos fiscais apurados num determinado exercício e as deduções que dos mesmos prejuízos sejam efetuadas em períodos posteriores.

Assim, se o sujeito passivo apura prejuízos fiscais num determinado período de tributação e a Administração Tributária efetua correções ao respetivo valor, manda a lei que altere também as deduções efetuadas a jusante e em conformidade.

Todavia, a lei não determina que aquelas correções sejam sancionadas no procedimento em que forem alteradas as deduções.

E isto sucede porque o pressuposto da alteração das deduções a jusante não é integrado pelas razões que levaram a Administração a corrigir os prejuízos fiscais declarados a montante: é integrado pelo facto de essas correções terem sido efetuadas, quaisquer que sejam as razões para tal.

Isso mesmo resulta da própria redação do dispositivo legal, que estabelece o facto de terem sido efetuadas as correções a montante como causa necessária e suficiente da alteração das deduções efetuadas a jusante.

E é o que resulta também da razão de ser da norma. Que radica no facto de o direito ao reporte dos prejuízos constituir, ele próprio, uma manifestação do princípio da solidariedade dos exercícios. Que, como se sabe, constitui uma decorrência lógica da tributação do rendimento real das empresas, já que a atividade das empresas flui em continuidade.

Assim, se o direito ao reporte dos prejuízos impõe que se solidarizem entre si diversos exercícios, as correções efetuadas ao valor dos prejuízos a reportar também impõe que se efetuem as correções, a jusante, nos períodos em que esses prejuízos foram reportados.

É a solidariedade entre os exercícios que impõe as correções a jusante e não as razões porque os prejuízos foram corrigidos a montante.

Ora, se o pressuposto da alteração das deduções a jusante não é integrado pelas razões que levaram a Administração a corrigir os prejuízos fiscais declarados a montante, isto significa que também estas razões também não integram a fundamentação daquelas alterações.

O que a fundamentação das correções às deduções dos prejuízos deve conter claramente é a referência ao procedimento em que o valor desses prejuízos foi corrigido. Porque a existência de um procedimento a montante em que essas correções tenham sido efetuadas constituirá, então, uma razão de facto para serem efetuadas as correções às deduções desses prejuízos a jusante.

No caso dos autos, consta do ponto III.1.1 do relatório de inspeção tributária relativo a 2012 e 2013 «o prejuízo fiscal declarado de 2009, no valor de € 1.308.879,94, foi corrigido no valor de € 399.905,24». Tendo o procedimento em que as correções foram efetuadas sido ali identificado pelo despacho que o ordenou («DI201400826»).

Também consta que «a alteração dos prejuízos tem influência na determinação da matéria coletável dos exercícios de 2012 (€ 372.032,65) e 2013 (€ 27.872,59» nos termos que resultam do quadro subsequente (quadro 7).

Pelo que são ali indicadas as razões de facto que determinam a correção às deduções desses prejuízos.

Por outro lado, também é ali citado, entre outros, o artigo 52.º, n.º 4, do Código de IRC.

Pelo que também são ali indicadas as razões de direito que determinam aquelas correções.

E, assim, sendo, deve concluir-se que os atos tributários respetivos se encontram fundamentados.

Contrapõe a Recorrente que os atos tributários não podem considerar-se fundamentados porque na data em que lhe foram ainda não tinha sido notificada do acerto de contas relativo ao exercício de 2009.

Mas a demonstração da liquidação de 2009 não continha nem tinha que conter a fundamentação da decisão que determinou as correções relativas a 2012 e 2013. Porque a fundamentação bastante destas correções já constava do lugar próprio, que era a decisão do procedimento respetivo.

Sempre se dirá, a este propósito, que resulta dos autos (dos documentos para que expressamente remetem os pontos 2 a 4 dos factos provados) que a Recorrente foi notificada das correções relativas ao exercício de 2009 e dos seus fundamentos muito antes de ter sido iniciado o procedimento que levou às correções impugnadas nos presentes autos, porque as conclusões desse relatório lhe foram notificadas através de ofício datado de 25 de março de 2014.

Contrapõe também, a Recorrente que a posterior notificação do acerto de contas do exercício de 2009 constitui uma fundamentação “a posteriori”.

Admitindo que a Recorrente queria dizer que a própria emissão do documento de correção “DC” e elaboração da demonstração da liquidação são posteriores e mesmo que a fundamentação das correções relativas a 2009 constasse, no todo ou em parte, desses documentos, nem por isso se poderia dizer que tivesse ocorrido uma fundamentação «a posteriori» das correções relativas a 2012 e 2013.

Na essência, porque esses documentos não continham nem podiam conter a fundamentação destas correções, qualquer que fosse o seu conteúdo.

E se não integravam a fundamentação destas correções, não podiam constituir fundamentação posterior das mesmas.

Improcedem, assim, todas as conclusões do recurso. Que, por isso, não merece provimento.


◇◇◇

5. Conclusões

5.1. Os fundamentos das correções aos prejuízos fiscais declarados pelo sujeito passivo não integram a fundamentação das correções às deduções efetuadas a jusante e a que alude o artigo 52.º, n.º 4, do Código de IRC;


5.2. Pelo que não padece de falta de fundamentação o ato tributário que corrige os valores das deduções dos prejuízos sem incluir, no respetivo discurso fundamentador, as razões de facto e de direito que determinaram as correções aos valores declarados desses prejuízos e apurados a montante.


◇◇◇

6. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 13 de julho de 2022. - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro – Isabel Cristina Mota Marques da Silva.