Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0232/09.6BELRS 0545/18
Data do Acordão:05/24/2023
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ARAGÃO SEIA
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P31026
Nº do Documento:SA2202305240232/09
Data de Entrada:03/20/2023
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:AA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:



A Fazenda Pública, recorrente, nos autos em cima e à margem identificados, nos quais é recorrido AA, notificada do acórdão proferido nos autos, com ele não se conformando, vem interpor recurso de revista, com fundamento em violação de lei substantiva, para o Supremo Tribunal Administrativo) nos termos do artigo 150° do CPTA.

Alegou, tendo concluído:
A) Quanto à questão de saber, para efeitos de reversão de dívida de sociedades comerciais contra o responsável subsidiário e, estando provada a gerência de direito, quais são os factos que se devem considerar como suficientes para se dar como provada a efectiva gerência, nos termos do n° 1 do art. 24° da LGT, tendo em conta que a AT, no caso concreto, até demonstra que a sociedade se obriga, perante terceiros, com a assinatura de dois sócios gerentes num universo de três gerentes, assim como demonstra que o mesmo também assinou documentos que vinculam a sociedade, designadamente perante a AT, para cumprimento de obrigações fiscais, verificam-se assim, os requisitos que permitem a interposição de recurso de revista para o STA, nos termos do art. 150° do CPTA.
B) Uma vez que, tal questão assume relevância jurídica ou social, aferida em termos da utilidade jurídica, com capacidade de expansão da controvérsia que ultrapasse os limites da situação singular, decorrendo da interposição do presente recurso a possibilidade da melhor aplicação do direito, tendo como escopo a uniformização do direito, dado que tal questão tem capacidade para se repetir num número indeterminado de casos futuros.
C) Assim, tal questão assume particular relevância jurídica ou social, atenta a necessidade de uma melhor aplicação do direito neste e em outros casos futuros, tendo em conta não só a pertinência da questão jurídica centrada na determinação do regime de responsabilização do sócio, gerente de direito, para responder pela dívida da sociedade, mas também, pelo facto de, face às inúmeras decisões desfavoráveis do TCA Sul, se mostrar assaz pertinente que o órgão de cúpula da justiça administrativa tributária, embora tendo em conta que a gerência de facto sempre se há-de apurar em cada caso em concreto, contudo se pronuncie, de forma genérica, sobre se certos factos são suficientes para que a AT consiga dar por provada a gerência de facto.
D) Deve, pois, ser admitido o presente recurso de revista, uma vez que o mesmo versa sobre matéria de interpretação complexa, acerca da qual é admissível existirem dúvidas interpretativas na aplicação do quadro legal da responsabilização, pelo exercício da gerência de facto, dos administradores, directores e gerentes de direito, que pode interessar a um leque alargado de interessados e eventuais casos pendentes em Tribunal, tendo já sido inclusivamente interposto, sobre esta mesma questão, outros recursos de revista pela ora recorrente, pelo que, o presente recurso servirá para uma melhor e, a partir da pronúncia do STA, uniforme aplicação do direito.
E) Quanto ao mérito do presente recurso, o Acórdão ora recorrido fez, salvo o devido respeito, uma errada interpretação e aplicação do art. 24° n.º 1 da LGT, aos factos, pelo que, não se deve manter.
F) De facto, considerou o Acórdão ora recorrido que, pese embora a AT tenha provado que a forma de obrigar da sociedade é mediante a assinatura dos dois gerentes, um dos quais o oponente/revertido (cfr. consta da matéria de facto dada como provada no Ac. recorrido) e que o oponente assinou cheques e também assinou e entregou declarações de rendimentos mod 22 relativos aos exercícios daqueles anos, assim como assinou as actas das assembleias, decidiu o douto Acórdão, que não estava provado o exercício de facto da gerência, cuja prova impende sobre a A T.
G) Ora, nos termos da legislação comercial, resulta que os administradores ou gerentes, uma vez nomeados e tendo iniciado o exercício das suas funções, são titulares de poderes/deveres funcionais.
H) Tais administradores e/ou gerentes formam e exteriorizam a vontade da pessoa colectiva, vinculando-a, com a sua assinatura, perante terceiros, praticando actos que lhe foram atribuídos, em nome e no interesse da pessoa colectiva, actos cujos efeitos se irão reproduzir na esfera jurídica desta última.
I) Como consta do sumário do Ac. do TCA Sul de 06/10/09, Proc. n.º 03336/09 I "Prevendo a lei que a gerência de direito faz presumir a gerência de facto, mas sendo essa uma presunção judicial, admite-se a sua ilisão por qualquer meio de prova, sendo suficiente a contraprova e não sendo exigível a prova do contrário (cfr arts. 350º e 351º do CC).
Não logra ilidir tal presunção o gerente que afirma que era uma outra pessoa que no dia a dia se encontrava à frente da sociedade, quando o mesmo era gerente nomeado da sociedade, sendo necessária a sua assinatura para a obrigar e desenvolvia a sua actividade de forma regular.
J) Deve, pois, concluir-se que a lei não exige que os gerentes, para que sejam responsabilizados pelas dívidas da sociedade, exerçam uma administração continuada, apenas exigindo que eles pratiquem actos vinculativos da sociedade, exercitando desse modo a gerência de facto.
K) Pelo que, tendo sido provado pela AT que o oponente/revertido assinou cheques, assinou e entregou declarações de IRC Mod 22, está verificado um facto que se deve considerar como suficiente para que a AT consiga dar por provada a gerência de facto.
Termos pelos quais e, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser admitido o presente recurso de revista e, analisado o mérito do recurso, deve ser dado provimento ao mesmo, revogando-se o Acórdão recorrido, com todas as legais consequências.

Não foram produzidas contra-alegações.

Cumpre decidir da admissibilidade do recurso.

Há, então, que apreciar se o recurso dos autos é admissível face aos pressupostos de admissibilidade contidos naquele art. 150º do CPTA, ao abrigo do qual foi interposto, em cujos nºs. 1 e 5 se estabelece:
«1 - Das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
(…)
6 - A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do nº 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objecto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Administrativo».
Interpretando este nº 1, o STA tem vindo a acentuar (e disso, aliás, dão conta os recorrentes) a excepcionalidade deste recurso (cfr., por exemplo o ac. de 29/6/2011, rec. nº 0569/11) no sentido de que o mesmo «quer pela sua estrutura, quer pelos requisitos que condicionam a sua admissibilidade quer, ainda e principalmente, pela nota de excepcionalidade expressamente estabelecida na lei, não deve ser entendido como um recurso generalizado de revista mas como um recurso que apenas poderá ser admitido num número limitado de casos previstos naquele preceito interpretado a uma luz fortemente restritiva», reconduzindo-se como o próprio legislador sublinha na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nº 92/VII e 93/VIII, a uma “válvula de segurança do sistema” a utilizar apenas e só nos estritos pressupostos que definiu: quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para a melhor aplicação do direito.
Na mesma linha de orientação Mário Aroso de Almeida pondera que «não se pretende generalizar o recurso de revista, com o óbvio inconveniente de dar causa a uma acrescida morosidade na resolução final dos litígios», cabendo ao STA «dosear a sua intervenção, por forma a permitir que esta via funcione como uma válvula de segurança do sistema». (Cfr. O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed., p. 323 e Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, p. 150 e ss..)
E no preenchimento dos conceitos indeterminados acolhidos no normativo em causa (relevância jurídica ou social de importância fundamental da questão suscitada e a clara necessidade da admissão do recurso para uma melhor aplicação do direito (Sobre esta matéria, cfr. Miguel Ângelo Oliveira Crespo, O Recurso de Revista no Contencioso Administrativo, Almedina, 2007, pp. 248 a 296.), também a jurisprudência deste STA vem sublinhando que «…constitui questão jurídica de importância fundamental aquela – que tanto pode incidir sobre direito substantivo como adjectivo – que apresente especial complexidade, seja porque a sua solução envolva a aplicação e concatenação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha suscitado dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou da doutrina.
E, tem-se considerado de relevância social fundamental questão que apresente contornos indiciadores de que a solução pode corresponder a um paradigma ou contribuir para a elaboração de um padrão de apreciação de casos similares, ou que tenha particular repercussão na comunidade.
A admissão para uma melhor aplicação do direito justifica-se quando questões relevantes sejam tratadas pelas instâncias de forma pouco consistente ou contraditória, com recurso a interpretações insólitas, ou por aplicação de critérios que aparentem erro ostensivo, de tal modo que seja manifesto que a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa é reclamada para dissipar dúvidas acerca da determinação, interpretação ou aplicação do quadro legal que regula certa situação.» (ac. do STA - Secção do Contencioso Administrativo - de 9/10/2014, proc. nº 01013/14).
Ou seja,
- (i) só se verifica a dita relevância jurídica ou social quando a questão a apreciar for de complexidade superior ao comum em razão da dificuldade das operações exegéticas a efectuar, de enquadramento normativo especialmente complexo, ou da necessidade de compatibilizar diferentes regimes potencialmente aplicáveis, ou quando esteja em causa questão que revele especial capacidade de repercussão social, em que a utilidade da decisão extravasa os limites do caso concreto das partes envolvidas no litígio.
- e (ii) só ocorre clara necessidade da admissão deste recurso para a melhor aplicação do direito quando se verifique capacidade de expansão da controvérsia de modo a ultrapassar os limites da situação singular, designadamente quando o caso concreto revele seguramente a possibilidade de ser visto como um tipo, contendo uma questão bem caracterizada, passível de se repetir em casos futuros e cuja decisão nas instâncias seja ostensivamente errada ou juridicamente insustentável, ou suscite fundadas dúvidas, nomeadamente por se verificar divisão de correntes jurisprudenciais ou doutrinais, gerando incerteza e instabilidade na resolução dos litígios.
Não se trata, portanto, de uma relevância teórica medida pelo exercício intelectual, mais ou menos complexo, que seja possível praticar sobre as normas discutidas, mas de uma relevância prática que deve ter como ponto obrigatório de referência, o interesse objectivo, isto é, a utilidade jurídica da revista e esta, em termos de capacidade de expansão da controvérsia de modo a ultrapassar os limites da situação singular (a «melhor aplicação do direito» deva resultar da possibilidade de repetição num número indeterminado de casos futuros, em termos de garantia de uniformização do direito: «o que em primeira linha está em causa no recurso excepcional de revista não é a solução concreta do caso subjacente, não é a eliminação da nulidade ou do erro de julgamento em que porventura caíram as instâncias, de modo a que o direito ou interesse do recorrente obtenha adequada tutela jurisdicional. Para isso existem os demais recursos, ditos ordinários. Aqui, estamos no campo de um recurso excepcional, que só mediatamente serve para melhor tutelar os referidos direitos e interesses») - cfr. o ac. desta Secção do STA, de 16/6/2010, rec. nº 296/10, bem como, entre muitos outros, os acs. de 30/5/2007, rec. nº 0357/07; de 20/5/09, rec. nº 295/09, de 29/6/2011, rec. nº 0568/11, de 7/3/2012, rec. nº 1108/11, de 14/3/12, rec. nº 1110/11, de 21/3/12, rec. nº 84/12, e de 26/4/12, recs. nºs. 1140/11, 237/12 e 284/12.
E igualmente se vem entendendo que cabe ao recorrente alegar e intentar demonstrar a verificação dos ditos requisitos legais de admissibilidade da revista, alegação e demonstração a levar necessariamente ao requerimento inicial ou de interposição – cfr. arts. 627º, nº 2, 635º, nºs. 1 e 2, e 639º, nºs. 1 e 2 do novo CPC (Correspondentes aos arts. 676º, nº 2, 684º, nºs. 1 e 2, e 685º-A, nºs. 1 e 2, do anterior CPC.) - neste sentido, entre outros, os acórdãos do STA de 2/3/2006, 27/4/2006 e 30/4/2013, proferidos, respectivamente, nos processos nºs. 183/06, 333/06 e 0309/13.

Vejamos, então.
Como resulta das conclusões do recurso que nos vem dirigido, pretende a recorrente que este Supremo tribunal se pronuncie sobre a questão de saber para efeitos de reversão de dívida de sociedades comerciais contra o responsável subsidiário e, estando provada a gerência de direito, quais são os factos que se devem considerar como suficientes para se dar como provada a efectiva gerência, nos termos do n° 1 do art. 24° da LGT, tendo em conta que a AT, no caso concreto, até demonstra que a sociedade se obriga, perante terceiros, com a assinatura de dois sócios gerentes num universo de três gerentes, assim como demonstra que o mesmo também assinou documentos que vinculam a sociedade, designadamente perante a AT, para cumprimento de obrigações fiscais.
Porém lidas atentamente todas as restantes conclusões do recurso, o que a recorrente efectivamente pretende é sindicar a matéria de facto relevante, não só a que foi tida por assente, mas também as ilações de facto que as instâncias retiraram dos factos assentes.
Ora, como claramente resulta do disposto no n.sº 3 e 4 do referido artigo 150º não cabe a este Supremo tribunal sindicar qualquer questão de facto, tal como vem suscitada nos presentes autos.
Na verdade, o tribunal recorrido concluiu pela não gerência de facto nos seguintes termos:
No caso, para além da prova da base da presunção contida na máxima da experiência de todos os dias, de quem é nomeado para um cargo o vai exercer, na realidade, como acontece com os ora recorridos que desde logo foram todos nomeados gerentes da sociedade originária, porém, durante todo o período de tempo relevante no caso (1995 a 1998), os únicos autos que se prova que os mesmos tenham praticado em nome e por conta da sociedade originária devedora, foi a assinatura de tais declarações periódicas de rendimentos modelo n.°22, desses exercícios, actos pois, isolados e desconexionados com qualquer prática sucessiva, pelo que igualmente também entendemos ser insuficiente para caracterizar o exercício de tal actividade de gerência, preenchendo-o, a qual pressupõe um conjunto de actos ordenados para um certo fim, de prosseguimento do seu objecto social (de fabrico, comercialização e reparação de material hospitalar, no caso), e das deliberações dos sócios, nos termos do disposto nos art.°s 64.° e 259.° do CSC, que não se prova que os mesmos tenham exercido, sendo indiferentes, nesta sede, em termos do preenchimento de tal conceito de gerência de facto ou efectiva, as razões porque não tenham exercido tal actividade, ainda que possa relevar em outro âmbito, contrariamente ao invocado pela recorrente na matéria da sua conclusão X.
Pode-se, assim, concluir que o presente recurso não reúne as condições para ser admitido.

Termos em que, face ao exposto, acorda-se em não admitir o presente recurso de revista, por não se mostrarem preenchidos os respectivos pressupostos legais.
Custas do incidente pela recorrente, com taxa de justiça máxima.
D.n.

Lisboa, 24 de Maio de 2023. – Aragão Seia (relator) – Isabel Marques da Silva – Francisco Rothes.