Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:040/21.6BCLSB
Data do Acordão:02/10/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:ÂMBITO
JURISDIÇÃO
TRIBUNAL ARBITRAL
COMPETIÇÃO DESPORTIVA OFICIAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA00071385
Nº do Documento:SA120220210040/21
Data de Entrada:01/04/2022
Recorrente:A................
Recorrido 1:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL E OUTRA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA DO TCA SUL
Objecto:ACÓRDÃO DATADO DE 07/10/2021
Decisão:CONCEDE PARCIAL PROVIMENTO
Legislação Nacional:ARTIGOS 4º, Nº 6, DA LEI DO TAD, 164º, Nº 7 e 287º DO RDLPFP
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO

1. RELATÓRIO
A……………., devidamente identificado nos autos, recorreu para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), do Acórdão do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), que o condenou com a suspensão de 1 (um) jogo e numa sanção de multa no valor de 153,00€ pela prática de infracção disciplinar p.p pelo artigo 164º, nº 7, do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (doravante RDLPFP).
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Por acórdão do TAD, proferido em 16 de Março de 2021, com um voto de vencido, foi decidido julgar o recurso parcialmente procedente.
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A FPF apelou para o TCA Sul e este, por acórdão datado de 07 de Outubro de 2021 concedeu provimento ao recurso da FPF, revogou o julgado no Tribunal Arbitral de Desporto e, negou provimento ao pedido de ampliação requerido em sede de contra alegações por A……………
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A……………, inconformado, veio interpor o presente recurso de revista, tendo na respectiva alegação, formulado as seguintes conclusões:
«A. O presente recurso de revista incide sobre o acórdão do TCA Sul de 7 de Outubro de 2021, o qual (i) revogou a decisão do TAD que havia anulado as decisões disciplinares aplicadas pelo Conselho de Disciplina da Recorrida ao Recorrente em processo sumário e (ii) negou provimento ao pedido de ampliação do objecto do recurso apresentado pelo Recorrente relativo à violação dos seus direitos de audiência e defesa.
B. O fundamento do acórdão recorrido para revogar a decisão do TAD assenta no entendimento de que esse Tribunal careceria de competência para apreciar a questão relativa à verificação da infracção pela qual o Recorrente foi sancionado, por supostamente estar em causa uma questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva(artigo 4º, nº 6, da Lei do TAD); já a decisão de negar provimento ao pedido de ampliação do objecto do recurso radica na assunção de que não houve preterição dos direitos de audiência e defesa do Recorrente porquanto este ter espontaneamente apresentado pronúncia em momento anterior ao da prolação da decisão disciplinar e, além disso, ter impugnado administrativamente essa mesma decisão disciplinar sem ter invocado o vício decorrente da violação daqueles seus direitos.
C. Em momento algum o Recorrente suscitou a discussão de qualquer questão que se pudesse sustentar estar excluída da jurisdição do TAD, logo subtraída a qualquer controlo jurisdicional, tendo, isso sim, sustentado que a Recorrida, na prossecução do interesse público inerente ao exercício dos poderes disciplinares que legalmente lhe foram atribuídos com a obtenção do estatuto de utilidade pública desportiva, violou os seus direitos de defesa e audiência e não valorou devidamente os elementos instrutórios presentes nos autos (a admissão de erro levada a cabo pelo próprio árbitro após o jogo).
D. Ao Recorrente não foi concedida a oportunidade de ser efectivamente ouvido e apresentar defesa antes de ser sancionado, quer porque as exigências ligadas à previsão desse momento não se satisfazem com uma visão meramente formal e simplista das garantias constitucionais dos administrados, quer porque a sua preterição não poderá ser sanada por via da impugnação administrativa do acto praticado.
E. É precisamente a necessidade de uma resposta superior a estas duas questões – acerca da competência do TAD e sobre a violação dos direitos de defesa do Recorrente – que justifica a admissão da presente revista.
F. A questão subjacente ao entendimento sufragado pelo TCAS sobre a incompetência do TAD, por apresentar contornos fluídos, implicar um juízo exegético complexo, ser susceptível de se repetir em inúmeras situações futuras e impactar sobremaneira na comunidade, reveste-se de importância jurídica e social fundamental, carecendo igualmente da intervenção do Supremo Tribunal Administrativo para corrigir um erro jurídico grave cometido pelo Tribunal a quo e, assim, assegurar uma melhor aplicação do Direito.
G. A questão de saber se foram ou não violados os direitos de audiência e defesa do Recorrente apresenta, pelas mesmas razões, importância jurídica e social fundamental, a que acresce a circunstância de o sentido decisório contido no acórdão do TCAS afrontar a jurisprudência firme do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal Administrativo sobre a inconstitucionalidade do processo sumário regulado no RDLPFP, por violação do artigo 32º, nº 10, da Constituição da República Portuguesa, demonstrativa da essencialidade da admissão do recurso de revista para melhor aplicação do Direito.
Quanto ao mérito do recurso:
H. O acórdão proferido em primeira instância pelo TAD não revogou qualquer decisão técnica tomada pelo árbitro e não alterou o desfecho do jogo; o TAD anulou sanções de multa e suspensão aplicadas em processo sumário pelo Conselho de Disciplina da Recorrida, e para o fazer não resolveu senão questões estritamente jurídicas.
I. A questão, técnica, de saber se o jogador cometeu falta que justificasse a admoestação com cartão amarelo é um dado de facto absolutamente incontroverso desde o momento em que, no âmbito da impugnação administrativa, o árbitro do encontro se manifestou no sentido de reconhecer que a exibição do cartão não foi adequada, e, portanto, nunca esteve sequer em discussão nestes autos, em que nem foi produzida prova para além do mero teor do procedimento administrativo.
J. As questões, jurídicas, colocadas às instâncias foram as de saber, por um lado, partindo desse dado de facto adquirido, se existiu erro na apreciação dos elementos instrutórios e na aplicação do RDLPFP; e, por outro, se foram respeitadas as garantias de defesa do arguido em processo sancionatório.
K. Em discussão nos presentes autos estão, portanto, e apenas, princípios procedimentais e substantivos basilares e incontornáveis em qualquer procedimento administrativo sancionatório, como aquele que redundou nas decisões impugnadas, as quais aplicaram ao Recorrente sanções de multa (lesando o seu direito de propriedade) e de suspensão (limitando o seu direito a exercer a sua profissão), sem sequer garantir a sua audição prévia (violando o seu direito de audiência e defesa).
L. A sanção de suspensão, ao impedir o Recorrente de exercer a sua profissão, justamente privando-o de participar na competição mais relevante que se encontra a disputar, configura uma óbvia lesão deste direito, liberdade e garantia; e o mesmo (ou mais) se diga da sanção de multa, a qual, sobre ser injustificadamente imposta, não encontra sequer qualquer justificação teórica no plano desportivo – não serve qualquer objectivo que legitimamente pudesse motivar a sua subtracção à esfera dos tribunais e nem remotamente se relaciona com a prática da competição desportiva.
M. Também a outra dimensão da invalidade da sanção oportunamente suscitada nos autos se mantém no plano da normatividade jurídica, e não técnica, não apenas por via da afectação de direitos fundamentais, da qual resulta necessariamente um imperativo de acesso à tutela jurisdicional, mas porque, em rigor, o que está em causa é, verdadeiramente, um erro sobre os pressupostos de facto, na medida em que o árbitro da partida reconheceu explicitamente não ter analisado o lance em toda a sua extensão no campo e ter cometido um erro resultante dessa análise deficitária ao admoestar o Recorrente com o cartão amarelo, e ainda uma violação do princípio do inquisitório e um erro grosseiro ou manifesto de apreciação dos elementos instrutórios carreados para o procedimento, entre os quais se encontra essa explícita admissão e reapreciação do referido árbitro. Em qualquer das vertentes enunciadas, não se pede ao Tribunal que reavalie o juízo do árbitro, mas sim, e apenas, que constate que os actos impugnados desconsideraram elementos de facto relevantíssimos resultantes da instrução e incorreram, em consequência, em erro grosseiro ou manifesto de apreciação ao aplicar as sanções de multa e suspensão ao Recorrente.
N. Uma coisa é a análise técnica feita pelo árbitro, outra é a valoração jurídico-disciplinar desse dado de facto empreendida pelo Conselho de Disciplina. Esta segunda já não é uma análise técnica que se deva considerar subtraída ao controlo jurisdicional, mas sim, verdadeiramente, uma operação técnico-jurídica que resulta na aplicação de uma sanção através de um acto administrativo. Não é, pois, a decisão do árbitro em campo que sanciona o jogador, nem é essa decisão que constitui o objeto dos presentes autos.
O. A atribuição da competência para a aplicação da sanção a um órgão disciplinar com poderes materialmente administrativos, confirma que tal decisão está subordinada ao respeito por normas e garantias de natureza eminentemente jurídica em homenagem às quais o órgão em causa pode, naturalmente, decidir aplicar ou não aplicar a sanção. E o que se passou foi que, perante elementos instrutórios dos quais constava a evidência da existência de um juízo técnico de não cometimento da infracção, emitido pelo próprio árbitro no seio do procedimento disciplinar, a Recorrida não deixou de punir o Recorrido.
P. O Tribunal não pode substituir-se às instâncias federativas no juízo de natureza técnica que lhes cabe na aplicação das regras do jogo, mas pode, e deve, controlar o respeito pelos princípios essenciais, designadamente as garantias procedimentais de defesa ou o princípio do inquisitório, que obriga o órgão disciplinar ter em consideração todos os elementos instrutórios e ainda a verificação de erro grosseiro ou manifesto, mormente quando este se mostra patente na adopção de decisão administrativa sancionatória que contraria frontalmente o sentido do juízo técnico emitido no processo disciplinar.
Q. O entendimento de que a aplicação de sanções ao Recorrente seria inatacável e incognoscível pelos tribunais seria ofensivo do disposto no artigo 6º da CEDH (“Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial), uma vez que não ficaria garantido o conhecimento dos factos e a aplicação do Direito por uma instância judicial em matéria que, sublinha-se, contende com direitos fundamentais do Recorrente, e seria, portanto, também inconstitucional por violação dos direitos de acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efectiva (artigos 20º e 268º, nº 4 da CRP), deixando o aqui Recorrente (e todo um largo universo de administrados) impossibilitado de reagir judicialmente contra uma decisão administrativa arbitrária, porque consabidamente assente em erro grosseiro ou manifesto e em défice de apreciação de elementos instrutórios constantes dos autos do processo disciplinar, que afecta direitos fundamentais seus, e ademais imposta em violação de princípios procedimentais constitucionalmente consagrados.
R. A interpretação da norma do nº 6 do artigo 4º da LTAD no sentido de excluir da jurisdição do TAD a possibilidade de impugnar actos administrativos aplicativos de sanções que não só extravasam o próprio jogo como violam direitos fundamentais (quer os procedimentais, quer os que são afectados pela própria natureza da sanção) mostra-se inconstitucional, devendo a referida norma ser interpretada de modo a admitir a impugnabilidade perante o TAD de actos sancionatórios daquele teor, como muito bem fez a decisão da primeira instância.
S. Como ali se assinala, e se aceita, como a Recorrida aceita, que o sancionamento previsto no artigo 164.º do RDLPFP pressupõe a exibição do cartão pelo árbitro durante o jogo sem erro na aplicação das leis do jogo, numa meritória prevalência da verdade desportiva material, da justiça concreta e do fair play da própria competição, por um lado, e numa avisada e constitucionalmente prudente evitação do automatismo sancionatório, por outro lado, então não há como justificar a imposição de sanções cuja única putativa base factual seria a exibição do cartão com erro, tal como apurado e admitido.
T. Em face dos factos que as instâncias consideraram provados, o juízo que se reclama não é o de saber se o cartão foi bem ou mal exibido em campo (a tal questão técnica que teve resposta cabal), nem tão pouco se peticiona que seja tal cartão retirado. A questão é diferente e eminentemente jurídica: o órgão administrativo a quem cabe aplicar a sanção, perante elementos instrutórios com o conteúdo referido que constam do procedimento pode (deve?!) ignorá-los? Ou, pelo contrário, está obrigado a ponderá-los, justamente porque a imperatividade de ponderação dos elementos de prova carreados para o procedimento é, também ela, uma garantia de defesa de qualquer pessoa que seja alvo de um procedimento (administrativo) de natureza sancionatória?
U. Impunha-se à Recorrida atender aos elementos instrutórios em causa, até porque se os mesmos foram carreados para o procedimento foi porque o próprio órgão competente para a instrução os considerou relevantes para a decisão – ao menos em abstracto e no momento em que decidiu realizar essa diligência. E perante a clareza e a evidência do conteúdo dos elementos instrutórios em causa, não há como não considerar que ao aplicar e depois manter as sanções aplicadas o órgão disciplinar incorreu na sua decisão final em dois vícios: i) défice de ponderação dos elementos instrutórios e ii) erro manifesto ou grosseiro de apreciação.
V. O acórdão recorrido não invadiu qualquer esfera reservada à Administração; e a sustentação, já anteriormente empreendida pela Recorrida nestes autos, da legalidade do acto sancionatório impugnado à luz de uma suposta actuação vinculada (i) desmente que o mesmo tenha por base critérios de oportunidade ou conveniência e (ii) qualifica-o como acto aplicativo de uma sanção automática, e portanto também inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência e dos direitos de audiência e defesa do arguido.
W. O processo sumário, tal como consagrado nos artigos 214º e 257º e seguintes do Regulamento Disciplinar da LPFP, revela-se inconstitucional, como aliás já declarado quer pelo Tribunal Central Administrativo Sul, quer, por oito vezes, pelo Tribunal Constitucional, uma vez que viola os direitos de audiência e defesa dos arguidos em processo sancionatório.
X. No caso concreto, a apresentação espontânea de requerimento por parte do Recorrente não se mostra suficiente para ter por adquirido que os seus direitos de audiência e defesa tenham sido respeitados; pelo contrário: primeiro, a necessidade dessa sua iniciativa coloca em evidência que o procedimento adoptado pela Recorrida desconsidera esses direitos, e, depois, a total ausência desse requerimento do processo sumário e do recurso administrativo subsequente, e de evidências materiais da sua efectiva ponderação, demonstram que, também neste caso concreto, não os respeitou.
Y. Não é suficiente para garantir o direito procedimental de audiência o exercício do direito de impugnação administrativa da decisão sancionatória. O arguido em procedimento sancionatório tem de ter o direito de se defender e influenciar efectivamente o órgão competente para a decisão de aplicação da sanção previamente a esse momento. Se a sua posição só é atendida em procedimento de 2º grau de natureza impugnatória, não apenas já o arguido se encontra numa posição procedimental desvantajosa, porque se insurge contra uma decisão que já o condenou, como, na realidade, não lhe foi conferida a essencial garantia de ser ouvido em termos de poder defender-se e influenciar essa primeira decisão.»
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A “FPP”, ora aqui recorrida, veio apresentar contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
«1. O recurso de A……………. (doravante designado também como “Recorrente”) tem por objeto o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido em 7 de outubro de 2021 que revogou a decisão proferida pelo TAD por considerar que esta entidade jurisdicional é incompetente para conhecer do litígio, na parte em que aprecia a aplicação de sanção por cometimento da infração prevista e punida pelo artigo 164º, nº 7 do RD da LPFP.
2. Entende o Recorrente que o Tribunal a quo andou mal ao decidir pela incompetência do TAD em conhecer do litígio, bem como ao decidir que, no caso concreto, não houve preterição dos direitos de audiência e defesa do Recorrente, confirmando, neste segmento, o Acórdão Arbitral proferido pelo TAD. Porém, o Acórdão recorrido não é passível de qualquer censura.
3. Resulta da factualidade considerada provada pelo TAD, e que não foi impugnada pelo ora Recorrente, que o mesmo teve oportunidade de apresentar – e apresentou efetivamente – pronúncia antes do seu sancionamento em processo sumário.
4. No requerimento remetido à Presidente do Conselho de Disciplina da Recorrente, datado de 27 de janeiro de 2021, onde é expressamente afirmado pelo Recorrente que pretende usar do direito de audiência e defesa constitucionalmente consagrado, o mesmo, consciente da imputação em causa, alega um conjunto de factos que, no seu entendimento, obstariam à sua condenação.
5. Com efeito, dúvidas não temos que o Conselho de Disciplina analisou, valorou e ponderou o mesmo antes do sancionamento do Recorrente em sede de processo sumário. E, obviamente, ao contrário do que parece querer transparecer nas suas alegações de recurso, o facto de este ter sido sancionado após a apresentação da sua defesa não significa, obviamente, que o Conselho de Disciplina não apreciou e valorou aquele requerimento. Significa apenas, claro está, que, após a respetiva análise e valoração, atendendo à factualidade provada, o Conselho de Disciplina da ora Recorrida entendeu que o jogador deveria ser sancionado.
6. E não se diga, como o faz o Recorrente, que o mesmo não sabia qual a imputação da concreta conduta que estava em causa, pois o mesmo estava bem ciente dessa imputação, designadamente das circunstâncias de tempo, modo e lugar. Ademais, e não se olvide este particular, o caso sub judice refere-se à decorrência automática da acumulação de cartões amarelos pelo Recorrente, razão pela qual este bem sabia, ab initio, o objeto do processo sumário e da respetiva imputação.
7. Mas, se dúvida existissem, elas seriam dissipadas pelo conteúdo do requerimento remetido à Presidente do Conselho de Disciplina da FPF, no dia 27 de janeiro de 2021, porquanto o mesmo revela que o Recorrente tinha plena consciência do objeto do processo sumário, da sanção em que incorria e no qual impôs a respetiva pronúncia.
8. E, independentemente de o Recorrente concordar ou não com a apreciação e valoração feita pelo Conselho de Disciplina, a conclusão a retirar, contrariamente ao alegado, é que este teve plena consciência do objeto do processo sumário, da respetiva sanção em que incorria e nesse processo efetivamente se pronunciou, argumentando em sua defesa nos termos que considerou adequados, como bem entendeu, aliás, o TAD e o Tribunal a quo.
9. Independentemente da posição que se possa assumir quanto ao estatuído na norma constante do (entretanto alterado) artigo 214º do RD da LPFP, a verdade é que, pura e simplesmente, no caso vertente, aquela norma não foi aplicada, porquanto existiu efetiva audiência prévia do Recorrente.
10. Nesta senda, cabe ainda sublinhar que toda a jurisprudência trazida aos autos pelo Recorrente, sem prejuízo do que infra se exporá, declarou a inconstitucionalidade do (antigo) artigo 214º RD da LPFP porque, naqueles casos concretos, leia-se, atendendo às respetivas circunstâncias processuais concretas, como não podia deixar de ser, tal norma tinha sido aplicada e, por conseguinte, ainda que não possamos conceber esse entendimento, entendeu-se que violou o disposto na Lei Fundamental.
11. Ora, não tendo sido aplicado o artigo 214º, não tem, por isso, cabimento a alegação de que o mesmo é inconstitucional por violação do artigo 32º, nº 10 da CRP, porquanto apenas a aplicação de norma reputada como inconstitucional num caso concreto pode ter consequências ao nível dessa mesma ação impugnatória.
12. Andou bem, o Tribunal a quo ao entender que o ato punitivo sub judice proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF é valido e não viola qualquer norma constitucional, em concreto, o direito de audiência e defesa do arguido, pelo que, não merece censura, neste particular, o acórdão recorrido.
13. Andou bem o Tribunal a quo ao decidir pela incompetência do TAD para julgar o litígio.
14. Com a sua decisão, ao considerar-se competente para conhecer o litígio e ao julgá-lo como fez, o Tribunal Arbitral do Desporto imiscuiu-se no âmbito mais restrito da atividade administrativa.
15. Com efeito, o TAD julgou-se competente para apreciar a impugnação de uma sanção de suspensão automática de um jogador em consequência da exibição pelo árbitro, durante o jogo, do quinto cartão amarelo, na sequência de uma falta tida como violadora das leis do jogo.
16. Ao contrário do que afirma o TAD, e conforme bem percebeu o TCA Sul, a suspensão de um jogo concerne apenas à acumulação "na mesma época desportiva e em jogos diferentes, [de] uma série de cartões amarelos".
17. A decisão sobre a aplicação dos cartões amarelos é da competência (exclusiva) do árbitro.
18. Para concluir que não está a analisar uma “questão estritamente desportiva” para a qual não tem competência – como iremos expor detalhadamente –, o TAD esforçou-se por dissociar a exibição do 5º cartão amarelo (que não podia apreciar) da sanção de suspensão automática. Todavia, se tal suspensão decorre automaticamente daquele 5º cartão amarelo, como pode o TAD concluir pela inadequação da suspensão do jogador sem concluir pela inadequação do cartão amarelo exibido ao jogador? A resposta é simples. Não pode.
19. Na verdade, a referência ao cartão amarelo exibido ao jogador vai necessariamente explícita quer na questão que o Colégio Arbitral afirma que lhe é submetida (no último parágrafo da página 103 do Acórdão arbitral), quer na resposta que dá a essa questão, considerando que não foi cometida a infração prevista e punida no artigo 167º, nº 4 do RDLPFP: “a infração cometida pelo jogador que, na mesma época desportiva e em jogos diferentes, acumular uma série de cartões amarelos”.
20. O TAD não conclui, portanto, que a infração assinalada pelo árbitro foi cometida mas o jogador não pode ser sancionado (nem poderia concluí-lo porque a sanção é automática).
21. Aquilo que o TAD conclui é que aquela infração disciplinar não foi cometida – substituindo-se, assim, inevitavelmente, ao juízo feito pelo árbitro no campo, quando achou que a infração tinha sido cometida e por isso a sancionou com a exibição de um cartão amarelo.
22. Afirmando (apesar da manifesta contradição desse entendimento com a pergunta que foi formulada ao TAD e com a resposta que o TAD lhe deu) estar a valorar apenas a relevância de tais declarações posteriores do árbitro (e nunca o próprio lance ou a decisão do árbitro no jogo), o TAD atribuiu àquelas declarações do árbitro posteriores ao jogo (em nome daquilo que entende ser a verdade desportiva material) a força suprema de, por si só, excluírem o sancionamento do jogador com um jogo de suspensão, criando aquilo que já não é uma field of play doctrine mas antes uma espécie de after field of play doctrine.
23. Com efeito, a autoridade do árbitro relaciona-se com o jogo e acaba quando o jogo acaba e o seu relatório é entregue, como resulta do artigo 13º, nº 1, alínea f) do Regulamento Disciplinar da LPFP. Reavaliações do seu próprio desempenho, feitas em momento posterior à entrega daquele relatório, ficam excluídas de qualquer presunção de veracidade, nem sequer se compreendendo, também por isso, como pôde o TAD outorgar a tais declarações posteriores, sem mais, a qualificação de chave dourada que abriria a porta da verdade material.
24. Com efeito, a competência do Tribunal Arbitral do Desporto para conhecer desta matéria é excluída pela Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, pelo Regime Jurídico das Federações Desportivas e diretamente pela Lei do TAD.
25. O jogador foi sancionado pela infração p. p. pelo artigo 164º, nº 7 do RD da LPFP: “7. O jogador que, na mesma época desportiva e em jogos diferentes, acumular uma série de cartões amarelos é punido com a sanção de suspensão por um jogo e, acessoriamente, com a sanção de multa de valor correspondente a 1,5 UC assim que atingir o quinto, o nono, o 12º e o 14º cartões amarelos dessa época desportiva.”
26. O Recorrente não coloca em crise o facto de ter 4 cartões amarelos contabilizados, antes do 5º que contesta. O Recorrente também não vem alegar que lhe foi aplicada sanção de 2 jogos quando a norma tem como limite abstrato a aplicação da sanção de suspensão por 1 jogo, nem vem afirmar que a série de amarelos não foi praticada na mesma época desportiva.
27. O que materialmente o Recorrente veio colocar em crise perante o Tribunal Arbitral do Desporto é a amostragem do cartão amarelo durante um jogo, como bem assinala o Tribunal a quo.
28. Tanto que reconhece – nem poderia ser de outro modo – que a aplicação da sanção de suspensão é uma sanção automática decorrente da cumulação de 5 cartões amarelos na competição na mesma época desportiva.
29. Ou seja, o facto que o Recorrente concretamente pretende ver alterado (rectius, revogado) pelos tribunais comuns é a amostragem de um cartão amarelo no decorrer de um jogo, pelo árbitro regularmente designado para o mesmo.
30. Ao pretender colocar em crise a factualidade subjacente à aplicação desta sanção automática, isto é, ao colocar em crise a correção da amostragem do cartão amarelo, o Recorrente pretende que o TAD, o TCA Sul e agora este Supremo Tribunal se substituam no juízo técnico do árbitro do jogo em causa.
31. Da conjugação das normas, doutrina e jurisprudência assinaladas nas contra alegações retira-se, com clareza, que a discussão sobre o tipo de questões trazidas ao conhecimento do TAD - recorde-se, aplicação de sanção disciplinar automática decorrente da cumulação de cartões amarelos em determinada competição, ou, melhor, a anulação de um cartão amarelo regularmente amostrado em jogo pelo árbitro - cabe apenas dentro das instâncias desportivas, estando o seu conhecimento vedado ao Tribunal Arbitral do Desporto, porquanto é matéria relacionada com a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva. Ou, numa leitura mais atualista, é, sem dúvida alguma, uma questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
32. Conforme é referido, e bem, pelo Tribunal a quo, o TAD direcionou ou circunscreveu o litígio, centrando-o na relevância das afirmações do árbitro reconhecendo, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, que, após visionar as imagens da jogada em causa, a exibição de tal cartão amarelo “não foi adequada”, para aferição da questão sobre se pode considerar-se verificada, in casu, a infração prevista e punida no artigo 164º, nº 7, do RDLPFP. Alega o TAD que a questão que decidiu não foi a da correção ou não da exibição do cartão amarelo, muito menos a de retirar esse cartão (o que depois vem a ser evidenciado no Despacho de Aclaração proferido), mas sim a questão da relevância da apreciação que o árbitro posteriormente fez da sua decisão.
33. Ou seja, como bem assinala o TCA Sul, o TAD construiu o seu próprio “thema decidendum”, para poder decidi-lo. O TAD reconhece que a questão da correção ou não da exibição do cartão amarelo em causa é uma questão estritamente desportiva. Todavia, o TAD também considera que a questão que lhe cabe resolver não é essa – a questão não é a de saber se o cartão amarelo foi ou não corretamente exibido, “nem, muito menos, de retirar esse cartão – mas antes a questão de “apreciar e julgar a relevância da apreciação e julgamento que comprovadamente o próprio árbitro fez (...) sobre a correcção dessa exibição”. Isto é, o que o TAD tem de decidir, no seu próprio entendimento, é se “pode tal concreto cartão amarelo, porque comprovadamente exibido com erro, como formalmente assumido pelo próprio árbitro, satisfazer a hipótese (...) da norma regulamentar” que determina aquela suspensão. Todavia, resulta daqui uma perplexidade inultrapassável: como podia o TAD concluir pela existência de um erro naquela decisão técnica tomada pelo árbitro durante o jogo exclusivamente com base em declarações do árbitro posteriores ao jogo e sem analisar o lance à luz dos critérios previstos na Lei do Jogo?
34. Esta jurisprudência criativa e inovadora segundo a qual o TAD não pode apreciar a decisão do árbitro durante o jogo – a decisão de sancionar uma falta com cartão amarelo – mas pode “julgar a relevância da apreciação e julgamento que comprovadamente o próprio árbitro fez (...) sobre a correcção dessa exibição” não tem nenhuma correspondência com o próprio artigo 4º, nº 6 da Lei do TAD: “É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim susceptível do recurso referido no nº 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”.
35. Tal contradição do TAD fica evidenciada no respetivo Despacho de Aclaração proferido: aí é dito que o cartão amarelo amostrado se mantém em vigor na ordem jurídica desportiva; mas são anulados os seus efeitos disciplinares automáticos.
36. É evidente que aquilo que se exclui da competência do TAD não é a decisão técnica do árbitro durante o jogo, porque essa é naturalmente alheia, facticamente alheia, a qualquer poder de intervenção do TAD.
37. Aquilo que o legislador excluiu da competência do TAD foi sobretudo o que vem a seguir: as questões emergentes, no plano jusdisciplinar, da decisão técnica e disciplinar tomada pelo árbitro no jogo. Como sucede com a questão emergente da exibição pelo árbitro do 5º cartão amarelo a um jogador, questão emergente essa relacionada com a sua suspensão automática pelo Conselho de Disciplina em sede de processo sumário.
38. O Recorrente chamou o tribunal arbitral a pronunciar-se sobre a validade da sanção disciplinar aplicada, segundo o estatuto disciplinar correspondente (que integra tando o RD com as Leis do Jogo), por infração disciplinar atinente à acumulação de cartões amarelos exibidos em distintos jogos oficiais, de uma mesma competição. Esta é a relação jurídica (administrativa) controvertida, que assume natureza desportiva (porque, na base do sancionamento, se encontra a aplicação das Leis do Jogo), de que se não pode destacar, sob pena de perversão, um dos argumentos do autor, elevando-o à categoria de (autónoma?) relação jurídica.
39. No caso vertente, o que está inequivocamente em causa (e em cuja apreciação se convoca o depoimento do árbitro da partida), é saber se, no jogo em causa, a conduta do jogador era, à luz das leis do jogo, merecedora de cartão amarelo e, além disso, se, tendo o árbitro exibido esse cartão amarelo, se o órgão disciplinar se pode sobrepor, em sede decisória, à decisão tomada no terreno de jogo. E todas as normas cuja apreciação é convocada pelo TAD (mesmo as que integram o RD) são, sempre sem sombra de dúvidas, inequivocamente respeitantes, de forma direta, à prática da competição desportiva.
40. Convergindo, todos estes argumentos, numa conclusão inequívoca: a da incompetência do TAD para a decisão do caso.
41. Com efeito, ao contrário do que o Recorrente refere, a aplicabilidade de regras técnicas ligadas às próprias leis do jogo não é indiretamente aplicável à questão em apreço - na verdade, é só por questões técnicas ligadas às leis do jogo (v. g. amostragem de cartão amarelo) que a sanção automática de suspensão e multa referente à cumulação de 5 cartões amarelos na competição, na mesma época desportiva, tem lugar.
42. A conclusão de que o cartão amarelo foi comprovadamente exibido com erro pressupõe uma avaliação do lance sob o enquadramento das Leis do Jogo e não apenas das declarações posteriores do árbitro, contraditórias com as decisões inicialmente assumidas e, por isso, trata-se, incontornavelmente, de uma questão estritamente desportiva.
43. A conclusão do TAD nesta decisão arbitral, aparentemente alicerçada na defesa da verdade desportiva material e na promoção da solução justa à luz das leis do jogo tendo em conta o caso concreto, é contraditória e incompatível com a afirmação de que não avaliou o lance, porque só uma avaliação do lance permitiria concluir que avaliação acertada do árbitro é a que ele fez por último e não a que fez durante o jogo ou aquando do preenchimento do seu relatório. Só a avaliação do lance e só a sua apreciação à luz das leis do jogo permitiria ao TAD concluir que a última avaliação do lance feita pelo árbitro é aquela que corresponde à verdade desportiva material.
44. A decisão do TAD – que de resto não se compreende exactamente qual seja, tendo em conta a afirmação inicial de que não podem pronunciar-se sobre a existência de falta e sobre a exibição do cartão amarelo que, por ser o quinto, determina a suspensão automática por um jogo – fundamenta-se, no final, apenas numa invocação genérica de uma alegada “verdade material em sede de direito sancionatório”, conceito que a decisão não define nem densifica e que é tão-só um juízo sobre a conveniência ou mérito da decisão do CD, conforme a ora Recorrida deixou bem patente no seu recurso perante o TCA Sul.
45. Neste contexto, cumpre recordar que o artigo 165.º do Regulamento Disciplinar da Liga, nºs 1 e 3, estatui um regime especial das sanções por acumulação de cartões amarelos, o que torna a operação de aplicação da sanção, em situações como as previstas no nº 7 do artigo 164º, como um ato plenamente vinculado.
46. Ora, a decisão do TAD, que se furta – tentando escamotear a sua falta de competência para decidir o litígio – a decidir da correção ou não da exibição do cartão amarelo ao jogador (o que ficou evidente no Despacho de aclaração da decisão arbitral), pretende, ao mesmo tempo que mantém o facto originário na ordem jurídica, destruir os efeitos jurídicos automáticos desse mesmo facto: o ato sancionatório plenamente vinculado de sanção disciplinar por acumulação de uma série de amarelos.
47. Todavia, a destruição dos efeitos jurídicos da sanção disciplinar por parte do TAD assenta não num controlo da legalidade da atuação do CD, ou de controlo das margens de discricionariedade do CD quanto à "escolha" dessa sanção e à determinação da sua exata medida, mas no mérito, pertinência, ou conveniência dessa decisão do CD.
48. Por ser colocada questão relativa à factualidade subjacente à aplicação desta sanção automática de suspensão, isto é, ao colocar em crise a correção da amostragem do cartão amarelo, o Tribunal Arbitral do Desporto é incompetente para conhecer da ação arbitral que aí foi intentada, de acordo com o disposto no nº 6 do artigo 4º da Lei do TAD.
49. Deste modo, deve ser confirmado o Acórdão recorrido, com fundamento na incompetência material do TAD.»
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O “recurso de revista” foi admitido por acórdão deste STA [formação a que alude o nº 6 do artº 150º do CPTA] proferido em 16 de Dezembro de 2021.
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O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs 146º, nº 1 e 147º do CPTA, não emitiu pronúncia.
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Sem vistos, por não serem devidos.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. MATÉRIA DE FACTO
A matéria de facto assente nos autos, é a seguinte:
«1.º - Em 26 de janeiro de 2021, disputou-se o jogo de futebol de 11 da 15.ª jornada da época desportiva 2020-2021 da Liga NOS, com o nº 11504 (203.01.130), entre a equipa (visitada) da Boavista Futebol Clube, Futebol SAD e a equipa (visitante) da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD.
2.º - O Demandante jogou esse jogo, integrado, com o nº 6, na equipa da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD, tendo-lhe sido exibido pelo árbitro, B…………., aos 79 (setenta e nove) minutos de jogo, um cartão amarelo, motivado por “comportamento antidesportivo”, em concreto porque “agarrou um adversário anulando um ataque prometedor”.
3.º - Com a exibição deste cartão amarelo, o Demandante acumulou a exibição de 5 (cinco) cartões amarelos em jogos diferentes da época desportiva 2020/2021 da Liga NOS.
4.º - Em 27 de janeiro de 2021 (através de comunicação de correio eletrónico das 18H14), a Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD e o Demandante enviaram um requerimento à Presidente do Conselho de Disciplina da Demandada em que, face à apreciação sumária em curso neste Conselho das consequências da referida acumulação de cartões amarelos e à falta “de momento regulamentarmente previsto adequado a oferecerem qualquer espécie de pronúncia ou defesa previamente a essa apreciação e à aplicação de eventuais sanções”, alertam para a inconstitucionalidade desta falta e acrescentam que, com esse mesmo requerimento, pretendem usar do direito de audiência e defesa constitucionalmente consagrado e “sanar a potencial inconstitucionalidade adveniente da supressão dessa efetiva audiência”.
5.º - Nesse mesmo requerimento, alega-se que “a correta análise do lance em causa não permite imputar ao Jogador a prática de qualquer infração, ou pelo menos de infração a que corresponda a admoestação com cartão amarelo” – fundamentando esta conclusão nas imagens do jogo e na “análise feita pelos especialistas em arbitragem nos meios de comunicação social portugueses” (dando como exemplo um escrito de ……… no Jornal A Bola e uma notícia, confirmada pelo comentador …….., do Jornal Record no sentido de que o próprio árbitro B………….. “assume erro no cartão amarelo a A………….”) –, para assim se pedir que o Conselho de Disciplina da Demandada procure “apurar junto do árbitro do encontro, Exmo. Sr. B…………., qual é efetivamente a sua posição acerca do lance em causa, previamente à aplicação de qualquer tipo de sanção ao Jogador”, acrescentando-se que “só assim se mostrando acautelado e observado o direito de audiência e defesa consagrado no nº 10 do artigo 32.º da CRP” e propugnando-se “pela não aplicação de qualquer sanção ao Jogador”.
6.º - Este requerimento de 27 de janeiro de 2021, da Sporting Clube de Portugal - Futebol, SAD e do Demandante, suscitou a seguinte resposta, subscrita por ………, assistente administrativo do Conselho de Disciplina da Demandada, constante de comunicação de correio eletrónico, das 22H06, do dia 27 de janeiro de 2021: A Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF tomou conhecimento e valorou o requerimento apresentado pelo jogador A…………… e pela Sporting Club de Portugal - Futebol SAD. No relatório do jogo consta, a propósito da factualidade em apreço, o seguinte: “culpado de comportamento antidesportivo, agarrou um adversário anulando um ataque prometedor”. Caso necessite dos relatórios do jogo, o pedido deverá ser efetuado nos termos habituais.
7.º - Esta resposta foi objeto da seguinte reação da Sporting Clube de Portugal - Futebol, SAD e do Demandante, subscrita pelo atual Mandatário do Demandante, constante de comunicação de correio eletrónico, das 22H09, do dia 27 de janeiro de 2021: Agradeço o e-mail infra e solicito, em conformidade, a disponibilização dos elementos que compõem o processo sumário que resultou na aplicação ao jogador da Sporting SAD A………….. da sanção de um jogo de suspensão divulgada há instantes.
8.º - Ainda nesse dia 27 de janeiro de 2021, depois das 21H45, foi divulgado, através do Comunicado Oficial n.º 231 da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, o “mapa de processos sumários 27.01.2021” – decididos, no mesmo dia, por formação restrita da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol –, no qual o Demandante surge sancionado com 1 (um) jogo de suspensão e multa de € 153,00, conforme o artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP e por causa dos 2.º e 3.º factos considerados provados.
9.º - Conforme regulamentarmente previsto (cfr., maxime, artigos 274.º, nº 2, 38.º, 216.º e 223.º do RDLPFP), a efetiva execução da referida sanção disciplinar de suspensão decidida em processo sumário ocorreria em 1 de fevereiro de 2021, no jogo de futebol de 11 da 16.ª jornada da época desportiva 2020-2021 da Liga NOS, entre a equipa (visitada) da Sporting Clube de Portugal - Futebol, SAD e a equipa (visitante) da Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD.
10.º - Do sancionamento identificado no 8.º facto considerado provado, recorreu o Demandante, em 28 de janeiro de 2021, para o Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, preconizando a revogação do mesmo.
11.º - Em tal recurso começa o Demandante por requerer o reconhecimento do efeito suspensivo do mesmo – essencialmente, à luz do artigo 3.º, nº 3 (As impugnações administrativas necessárias previstas na legislação existente à data da entrada em vigor do presente decreto-lei têm sempre efeitos suspensivos da eficácia do ato impugnado.), do Decreto-Lei nº 4/2015, de 7 de janeiro, que aprovou o atual Código do Procedimento Administrativo, e em consonância com o artigo 189.º, nº 1 (As impugnações administrativas necessárias de atos administrativos suspendem os respetivos efeitos.) deste mesmo Código –, para, logo depois, retomar, no essencial, a argumentação identificada no 5.º facto considerado provado, reincidindo no requerimento da audição do testemunho, pelo meio mais expedito, do árbitro B…………, no sentido de indagar se, “vistas as imagens”, “avaliou o lance ocorrido ao minuto 79 em toda a sua extensão” e “considera ter exibido corretamente cartão amarelo ao jogador A…………… no lance em causa”, pois, não tendo tal diligência “sido desencadeada em momento adequado a impedir a prolação da decisão impugnada, (...) cabe agora, nesta sede recursiva, demonstrar que as sanções aplicadas ao jogador recorrente não podem subsistir, por carecerem de base factual”.
12.º - No mesmo recurso o Demandante não invoca qualquer argumentação inerente à falta de audiência e defesa no processo sumário, como havia feito no requerimento identificado no 4.º facto considerado provado.
13.º - Este recurso do Demandante foi admitido como recurso hierárquico impróprio e autuado como Processo nº 19-20/21, foi-lhe atribuído efeito meramente devolutivo (à luz dos artigos 293.º e 295.º do RDLPFP), não lhe tendo sido reconhecida natureza urgente mas “outorgado um juízo de almejada celeridade e eficiência procedimental”; dos autos desse Recurso Hierárquico Impróprio n.º 19-20/21 não consta o requerimento identificado no 4.º facto considerado provado.
14.º - No âmbito da tramitação desse Processo nº 19-20/21, a respetiva Relatora suscitou pronúncias escritas dos elementos da equipa de arbitragem do jogo sub judice, pedindo-se-lhes uma resposta de “sim” ou “não” à pergunta “Avaliou o lance em toda a sua extensão?”, resultando dessas pronúncias, entre o mais, que:
- O árbitro B…………. afirmou: Devido ao meu posicionamento no momento da jogada, levou-me a agir disciplinarmente por ter considerado que o jogador do Boavista se encontrava liberto de opositores e preparado para rematar à baliza quando foi empurrado pelo jogador nº 6 do Sporting. Após visionar as imagens da jogada (ângulo oposto ao meu posicionamento) considero que a mesma não cumpre os critérios para ataque prometedor. Deste modo, a ação disciplinar não foi adequada;
- O árbitro assistente n.º 1, C…………, afirmou: Após visualizar as imagens verifico que a jogada não configura um ataque prometedor e como tal a sanção disciplinar não foi adequada.
15.º - Notificado para se pronunciar sobre estas afirmações, o ora Demandante, em 29 de janeiro de 2021, disse, essencialmente, que o afirmado por B………….. é o que releva, pois a decisão de mostrar o cartão amarelo “foi imediata e exclusivamente sua”, que o por si afirmado corrobora que “a correta e completa avaliação do lance conduz à conclusão de que o jogador não cometeu infração que justificasse a advertência com exibição de cartão amarelo”, mostrando-se assim “inteiramente ilidida a presunção de veracidade de que goza o relatório do árbitro, provado que está o facto contrário – o jogador não praticou infração que anulasse ataque prometedor, e assim se conclui, portanto, inexistir substrato factual que possa justificar a imposição ao jogador de uma sanção automática decorrente de uma incompleta e errónea avaliação do lance”; e acrescentou o que viria a retomar no requerimento inicial da presente ação arbitral quanto ao facto de o testemunho de B…………. e da procedência do recurso em nada abalar a field of play doctrine, pois, no essencial, “não se trata aqui de procurar que o jogo em campo continue por uma via decisória, como se o órgão disciplinar pudesse continuar a arbitrar, mas sim de impedir que uma decisão errada tomada em campo, decorrente de uma avaliação comprovadamente incompleta do árbitro principal, projete os seus efeitos para lá desse jogo, resultando no sancionamento (adicional) do jogador de forma puramente automática e sem substrato factual bastante”.
16.º - Antes de emitir aquela sua pronúncia (cfr. 14.º facto considerado provado), o árbitro B………….. solicitou, por escrito, um esclarecimento sobre o que se pretendia que se especificasse com aquela questão “Avaliou o lance em toda a sua extensão?”; tendo-lhe sido respondido pela Relatora, no que releva, “que aquilo a que se deve responder é se há, ou não, algum momento ou ocorrência do lance em causa que não tenha visto”; ao que B…………. respondeu “Sim.”, acrescentado logo depois as afirmações identificadas no 14.º facto considerado provado.
17.º - Depois da pronúncia do Demandante identificada no 15.º facto considerado provado, suscitou a Relatora uma pronúncia complementar do árbitro B………….., pedindo resposta de “sim” ou “não”, no sentido de “vir aos autos dizer se confirma que sim é a resposta à primeira pergunta formulada, ou seja «Avaliou o lance em toda a sua extensão?»”; ao que B………….. respondeu “Sim. Já respondi a essa questão através do email enviado ontem às 22h53m”, referindo-se à resposta identificada na última parte do 16.º facto considerado provado.
18.º - Notificado desta pronúncia complementar de B……………, o ora Demandante, ainda em 29 de janeiro de 2021, disse, essencialmente, no que releva:
Salvo o devido respeito, esta troca de perguntas e respostas roça o caricato e vem acentuar que as palavras eleitas pelo Conselho de Disciplina como questão sacramental (Avaliou o lance em toda a sua extensão?) para delimitar a sua esfera de atuação, no respeito pelo que considera ser a interpretação adequada da “field of play doctrine” (tal como espelhada nas suas decisões mais recentes nessa matéria), não servem esse objetivo. E não o servem desde logo porque, como a situação em apreço coloca em evidência, é absolutamente inconciliável a afirmação de um árbitro que diz, por um lado, ter avaliado o lance em toda a sua extensão, com a de que considera ter errado na apreciação que fez. Se tivesse avaliado em toda a sua extensão, porque haveria de ter tomado uma decisão errada? E porque altera o resultado dessa avaliação a posteriori? Não se trata, como está bom de ver, de um mudar de ideias resultante de uma análise amadurecida pelo tempo. Trata-se sim, muito claramente, do resultado da avaliação do lance, agora sim, em toda a sua extensão (porque, como árbitro atento e diligente, visionou posteriormente imagens televisivas), o que lhe permite constatar que, embora pudesse pensar, no momento, estar a avaliar o lance de forma inteira, completa e correta e a tomar a decisão acertada, na verdade, afinal, só agora constata que não foi o caso. E isto pela razão, epistemologicamente óbvia, de que só nos confrontamos com o que desconhecemos no momento em que o passamos a conhecer! (...) O que se passa (...) é que após o lance o Sr. Árbitro, como qualquer espectador, concluiu não o ter apreciado na sua plenitude, e por isso mesmo ter tomado uma decisão errada, que seguramente não teria tomado caso tivesse avaliado o lance em toda a sua extensão – o que não sucedeu. É isto que resulta claramente das respostas oferecidas, de forma pronta e cuidada, pelo Sr. Árbitro, que teve a humildade de reconhecer que no momento considerou que o jogador do Boavista se encontrava liberto de opositores e preparado para rematar à baliza, o que depois veio a constatar não ser o caso, considerando antes que o lance não cumpre os critérios para ataque prometedor e que, portanto, a ação disciplinar não foi adequada. Daqui resulta, com toda a lógica e clarividência e por mais jogos de palavras que se queira fazer em sentido distinto, que o Sr. Árbitro não avaliou o lance em toda a sua extensão – porque se o tivesse feito, como o próprio explica, teria decidido diferentemente.
19.º - Também em 29 de janeiro de 2021, foi proferido (e notificado ao Demandante) o Acórdão do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, no Recurso Hierárquico Impróprio nº 19-20/21, julgando improcedente o recurso e, consequentemente, confirmando a decisão disciplinar sumária recorrida de que resultou o sancionamento identificado no 8.º facto considerado provado.
20.º - Das indicações sobre as possibilidades de recurso desse mesmo Acórdão, notificadas juntamente com o mesmo, resulta, em abstrato, que tal recurso pode ocorrer para o Conselho de Justiça ou para o TAD, consoante, respetivamente, a decisão disciplinar seja relativa, ou não, “a questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”.
21.º - Por decisão de 1 de fevereiro de 2021 do Excelentíssimo Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul, proferida em sede de procedimento cautelar dependente da presente ação principal, foi suspensa “a eficácia da decisão tomada em 27-1-2021, pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – e posteriormente confirmada pelo Pleno do mesmo Conselho de Disciplina em 29-1-2021 –, que impôs ao requerente a sanção disciplinar de 1 (um) jogo de suspensão e, acessoriamente, a sanção de multa no montante de 153,00€”.
22.º - Conforme afirmação do próprio B…………., o árbitro do jogo sub judice (cfr. 14.º facto considerado provado), a sua exibição ao Demandante do cartão amarelo identificado no 2º facto considerado provado não foi, segundo as normas técnicas e disciplinares da própria competição desportiva, uma atuação adequada.
23.º - Conforme o Comunicado Oficial nº 344, de 11 de fevereiro de 2021, da Direção da Demandada, e o Comunicado Oficial nº 345, também de 11 de fevereiro de 2021, da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Demandada, a partir de 15 de fevereiro de 2021, inicialmente apenas no âmbito dos processos decididos por aquela Secção Profissional, passou a existir, considerando o RDLPFP, “um momento prévio de audiência dos clubes e agentes desportivos no âmbito do sancionamento através de processo sumário”».
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2.2. O DIREITO.
O presente recurso intentado pelo demandante/recorrente A…………… tem por objecto o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) em 7 de Outubro de 2021 que (i) revogou o acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) que havia anulado o acto administrativo sancionatório do Conselho de Disciplina da Recorrida Federação Portuguesa de Futebol, que por sua vez aplicou ao Recorrente as sanções disciplinares de um jogo de suspensão e de multa no montante de 153,00€, considerando que o TAD seria incompetente, por ausência de jurisdição, para a apreciação da questão relativa à verificação da infracção sancionada e (ii) negou provimento ao pedido de ampliação do objecto do recurso apresentado pelo recorrente relativo à violação dos seus direitos de audiência prévia.
Defende o recorrente, em síntese, nos termos vertidos nas conclusões de recurso apresentadas na presente revista que o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento por entender que o TAD carecia de competência para apreciar a questão relativa à verificação da infracção pelo qual o Recorrente foi sancionado.
Vejamos:
O fundamento do acórdão recorrido para revogar a decisão do TAD consubstancia-se no entendimento de que este Tribunal careceria de competência para apreciar a questão relativa à verificação da infracção pela qual o recorrente foi sancionado, por estar em causa uma “questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva” (artigo 4º, nº 6, da Lei do TAD); por seu turno, a decisão de negar provimento ao pedido de ampliação do objecto do recurso radica na assunção de que não houve preterição dos direitos de audiência e defesa do recorrente porquanto este ter espontaneamente apresentado pronúncia em momento anterior ao da prolação da decisão disciplinar e, além disso, ter impugnado administrativamente essa mesma decisão disciplinar sem ter invocado o vício decorrente da violação daqueles seus direitos.
Em sua defesa e em concreto, alega o recorrente que o que está em causa nos presentes autos é o erro sobre os pressupostos de facto na medida em que o árbitro da partida reconheceu explicitamente não ter analisado o lance em toda a sua extensão no campo e ter cometido um erro resultante dessa análise deficitária ao admoestar o recorrente com o cartão amarelo e, ainda uma violação do princípio do inquisitório e um erro grosseiro ou manifesto de apreciação dos elementos instrutórios carreados para o procedimento (…) Em qualquer das vertentes enunciadas, segundo alega não se pede ao tribunal que reavalie o juízo do árbitro, mas sim e, apenas, que constate que os actos impugnados desconsideraram elementos de facto relevantíssimos resultantes da instrução e incorreram, em consequência, em erro ….de apreciação ao aplicar as sanções de multa e suspensão ao recorrente ( cfr. conclusão M ) e segs das alegações).
Não cremos contudo que assista razão ao recorrente quando neste segmento se insurge contra o acórdão recorrido.
Com efeito, como já supra se referiu, resulta da factualidade provada que no âmbito do processo nº 19-20/21, o Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF proferiu acórdão, datado de 29.01.2021, negando provimento ao recurso hierárquico (impróprio) que o ora Recorrido A……………. interpusera da decisão disciplinar sumária, proferida pela formação restrita daquela secção, a 27.01.2021, que o sancionou com suspensão de 1 (um) jogo e multa de 153,00€ (cento e cinquenta e três euros), à luz do disposto no artigo 164º, nº 7, do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal (RDLPFP).
Esta decisão disciplinar tem como fundamento único o facto do ora recorrente ter sido sancionado com um cartão amarelo no jogo de futebol da 15.ª jornada da época 2020-2021 da Liga NOS, com o nº 11504 (203.01.130), realizado em 26.01.2021, entre a equipa da Boavista Futebol Clube, Futebol SAD e a equipa da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD, sendo que, com a exibição deste cartão amarelo, acumulou de forma automática a exibição de cinco cartões amarelos em jogos diferentes da época desportiva 2020/2021 da referida Liga.
O ora recorrente, jogador de futebol insurgiu-se contra esta decisão proferida pelo Conselho Disciplinar, junto do TAD, por a refutar ilegal, alegando a seguinte fundamentação:
(i) por motivos procedimentais, por alegadamente não ter sido ouvido em momento prévio ao seu sancionamento em processo sumário;
(ii) por razões substanciais por alegadamente não ter praticado a infracção pela qual foi sancionado.
E a primeira questão a decidir, respeita, à prática da infracção p. e p. no artº 164º, nº 7 do RDLPFP, relativamente à qual o acórdão recorrido concluiu pela falta de jurisdição do TAD para conhecer esta matéria.
No acórdão de 16.03.2021, proferido pelo TAD julgou-se o seguinte:
«(…) “improcedente “o recurso quanto à alegada invalidade da decisão disciplinar sancionatória recorrida por preterição dos direitos de audiência e defesa do arguido, ora Demandante; ficando assim consumida a apreciação, qua tale, da exceção perentória implicitamente invocada nesta matéria pela Demandada”;
“Improcedente “a exceção dilatória de ausência de jurisdição do TAD, deduzida pela Demandada à luz da norma do nº 6 do artigo 4.º da Lei do TAD, para apreciar e decidir a questão de mérito do cometimento, in casu, da infração prevista e punida no artigo 164.º, nº 7, do RDLPFP e, assim mesmo, da validade da decisão disciplinar sancionatória recorrida”;
“Procedente o presente recurso quanto ao invocado não cometimento pelo Demandante da infração disciplinar prevista e punida no artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP, por ausência na concreta situação sub judice do pressuposto factual objetivo típico de que depende tal cometimento, anulando, consequentemente, a decisão disciplinar sancionatória recorrida, com absolvição do Demandante da infração por que foi disciplinarmente sancionado com suspensão de 1 (um) jogo e multa de € 153,00 (cento e cinquenta e três euros)”.
Vejamos, então, da alegada “ausência de jurisdição do TAD” para apreciar e decidir a questão de mérito do cometimento, in casu, da infracção p. e p. no artº 164º, nº 7, do RDLPFP.
Consignou-se e sumariou-se no TAD o seguinte:
«“VIII – Estatui o artigo 4º, nº 6, da Lei do TAD: É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no nº 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
IX – Com esta formulação do artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD procurou-se ultrapassar as dificuldades inerentes às questões estritamente desportivas, tendo-se abandonado o critério das questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respetivas competições; passando a relevar a conexão normativa com a prática da própria competição desportiva, as legis artis próprias de uma determinada modalidade desportiva, a questão do jogo.
X – No artigo 4º, nº 6, da Lei do TAD relevam, necessariamente, os seguintes quatro momentos: (i) temos de estar perante questões emergentes de normas técnicas e disciplinares, independentemente do acolhimento formal de tais normas; vale, portanto, a natureza, a essência, a substância das mesmas, na indicação do seu conteúdo técnico e disciplinar; (ii) tais normas têm de respeitar à prática da própria competição desportiva; no que pode não caber apenas o jogo em sentido estrito, mas também a própria competição em que o primeiro se integra; decisivo é que se trate de normas técnicas e disciplinares respeitantes à prática efetiva, seja do jogo, seja da competição; (iii) temos de estar perante normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes a essa prática; sendo este advérbio de modo absolutamente determinante para assinalar a exigência de uma postura interpretativa muito criteriosa, senão mesmo restritiva, na determinação/concretização, em cada caso, das questões que podem integrar a previsão do artigo 4.º, n.º 6, da Lei do TAD; não basta, pois, uma relação indireta e/ou mediata das normas técnicas e disciplinares em causa com a prática efetiva do jogo ou da competição; (iv) desta previsão do artigo 4.º, nº 6, da Lei do TAD devem excluir-se, pela sua própria natureza, as questões que contendam com direitos fundamentais, direitos indisponíveis ou bens jurídicos protegidos por outras normas jurídicas (para além dos estritamente relacionados com a prática desportiva), como as infrações à ética desportiva (maxime, dopagem, corrupção, violência, racismo, xenofobia e intolerância).
XI – Se as chamadas sanções automáticas – como a sub judice, constante do artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP – têm origem em factos ocorridos durante os jogos e logo apreciados e decididos pelos próprios árbitros, elas estão para além de tais factos e só com estes se relacionam/conexionam de modo mediato (por emergirem de regulamentação específica) e indireto (por implicarem um procedimento administrativo-sancionatório particular); independentemente até da afetação ou não de direitos fundamentais (maxime ao efetivo exercício da profissão livremente escolhida) – pois uma tal afetação advém de uma compressão tendencialmente compatível, em termos constitucionais, com a imposição de uma sanção de suspensão –, releva sobretudo a natureza do sancionamento em causa e, neste ponto, não podem restar dúvidas que tais sanções automáticas assentam numa base normativa que está para além das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
XII – Quando o árbitro exibe um cartão a um jogador durante um jogo, fá-lo em função da atuação desse jogador nesse mesmo jogo, face às normas técnicas e disciplinares que regem diretamente este, sem necessariamente curar de atentar em quais as consequências dessa exibição segundo as demais regras disciplinares aplicáveis à competição em causa mas que estão para além das regras do jogo em que a prática efetiva da competição se traduz.
XIII – Mas dizer isto não basta, pois uma coisa é reconhecer-se que as normas regulamentares que prevêem tais sanções automáticas estão para além das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, outra coisa – bastante diferente – é saber se a concreta “resolução de questões” (pois é isto que releva para o artigo 4.º, nº 6, da Lei do TAD) inerentes a uma concreta sanção automática de (como no caso) suspensão e multa implica ou não a apreciação da concreta aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
XIV – Não pode o TAD tecer juízos decisórios sobre a correção ou não da exibição do cartão amarelo ora em causa, pois – disso não existem quaisquer dúvidas – a resolução da questão inerente à correção ou não de tal exibição emerge exclusiva, direta e imediatamente da aplicação das normas técnicas e disciplinares respeitantes à prática da própria competição desportiva.
XV – Só que, in casu, o thema decidendum trazido à ponderação prudencial do Colégio Arbitral inclui uma outra questão que em nada se confunde com esse tipo de juízos; essa outra questão constitui a verdadeira e fulcral questão de fundo a apreciar e decidir na presente ação arbitral, qual seja a de saber da relevância, enquanto dado de facto assente, das afirmações do árbitro reconhecendo, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, que, após visionar as imagens da jogada em causa, a exibição de tal cartão amarelo “não foi adequada”, para aferição da questão de mérito, que é uma questão de Direito, sobre se pode considerar-se verificada, in casu, a infração prevista e punida no artigo 164º, nº 7, do RDLPFP; ou, dito de outro modo, sobre se aquele concreto cartão amarelo exibido durante o jogo, porque comprovadamente exibido com erro, como pelo próprio árbitro formalmente assumido, permite integrar a hipótese, a previsão, o tatbestand, a facti species, daquela norma regulamentar.
XVI – Ora, a resolução desta concreta questão fulcral do mérito da presente ação arbitral nada tem a ver com qualquer apreciação e decisão sobre a correção da exibição do cartão amarelo durante o jogo; tendo, isso sim, a ver com a apreciação e decisão da relevância jurídica do juízo do próprio árbitro sobre a correção dessa mesma exibição, feito em momento posterior a esse jogo e tomado em procedimento formalizado, para a verificação do preenchimento dos elementos do tipo sancionatório constante do artigo 164º, nº 7, do RDLPFP.
XVII – Não se trata, pois, de apreciar e julgar a correção da exibição do cartão amarelo segundo as normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, nem, muito menos, de retirar esse cartão; trata-se, isso sim, de apreciar e julgar a relevância da apreciação e julgamento que comprovadamente o próprio árbitro fez, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, sobre a correção dessa exibição, para considerar, ou não, preenchidos os elementos do tipo sancionatório constante do artigo 164º, nº 7, do RDLPFP, uma norma que é independente e está para além das regras do jogo em que a prática efetiva da competição em causa se traduz.
XVIII – A resolução desta questão – que é a questão sub judice – não implica a utilização de norma técnica, numa decisão pericial; implica, isso sim, a interpretação e aplicação de norma jurídica, numa decisão materialmente administrativa; a resolução desta questão – que é a questão sub judice – não corresponde à resolução de uma questão estritamente desportiva, não representa a resolução de uma questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, não estando, portanto, excluída da jurisdição do TAD».
Sobre este acórdão do TAD foi proferido o esclarecimento solicitado pela FPF, mediante o qual a mesma pretendia que se esclarecesse «(…) se o Acórdão proferido determinou, ou não, a anulação do cartão amarelo exibido ao Demandante no jogo da 15ª jornada da época 2020-2021 da Liga NOS, com o nº ….. (…..), disputado em 26 de janeiro de 2021, entre a equipa da Boavista Futebol Clube, Futebol SAD e a equipa da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD”.
Para o que aqui releva é esclarecido pelo TAD que:
- é matéria arredada das competências jurisdicionais do TAD na presente ação arbitral – decidir sobre a aplicação que ela própria deve fazer do artigo 164º do RDLPFP em função da Decisão Arbitral proferida na presente ação;
- o Colégio Arbitral anulou – e só esta podia anular – a decisão sancionatória recorrida, considerando não cometida pelo Demandante a infração disciplinar prevista e punida no artigo 164º, n.º 7, do RDLPFP;
- o Colégio Arbitral determinou a anulação da decisão sancionatória recorrida, exclusivamente, porque entendeu que tal decisão sancionatória errou na apreciação do teor da pronúncia do árbitro, pronúncia essa que o próprio Conselho de Disciplina da Demandada promoveu em sede de Recurso Hierárquico Impróprio;
- não houve – nem podia haver – qualquer anulação do cartão amarelo exibido pelo árbitro ao Demandante;
- não podendo, exclusivamente para efeitos da norma sancionatória do artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP, considerar-se eficaz o quinto cartão amarelo exibido ao Demandante na presente época desportiva, resta muito claro que não pode, enquanto subsistirem apenas os demais quatro cartões amarelos já anteriormente exibidos (e totalmente arredados do objeto da presente ação), ter-se por verificado o elemento factual objetivo típico determinante da infração prevista e punida nessa mesma norma regulamentar sancionatória.
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Posto isto, e para atentarmos se o acórdão recorrido proferido pelo TCAS errou de direito no que respeita à interpretação e aplicação do disposto no artº 4º, nº 6 da Lei do TAD, atentemos no seguinte quadro normativo:
A Lei nº 74/2013 de 06.09 criou o Tribunal Arbitral de Desporto (TAD) - com competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto – e aprovou a respectiva lei, entretanto alterada pela Lei nº 33/2014 de 16.06.
O artigo 4º da Lei do TAD regula a arbitragem necessária e os artigos 6º e 7º a arbitragem voluntária.
O artº 4º, na redacção dada pela Lei nº 33/2014 de 16.06, estabelece que:
«1 - Compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina.
2 - Salvo disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte, a competência definida no número anterior abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis.
3 - O acesso ao TAD só é admissível em via de recurso de:
a) Deliberações do órgão de disciplina ou decisões do órgão de justiça das federações desportivas, neste último caso quando proferidas em recurso de deliberações de outro órgão federativo que não o órgão de disciplina;
b) Decisões finais de órgãos de ligas profissionais e de outras entidades desportivas.
4 - Com exceção dos processos disciplinares a que se refere o artigo 59.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, compete ainda ao TAD conhecer dos litígios referidos no n.º 1 sempre que a decisão do órgão de disciplina ou de justiça das federações desportivas ou a decisão final de liga profissional ou de outra entidade desportiva não seja proferida no prazo de 45 dias ou, com fundamento na complexidade da causa, no prazo de 75 dias, contados a partir da autuação do respetivo processo.
5 – (…)
6 - É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva».
Por seu turno, dispõe o artigo 287.º do RDLPFP, sob a epígrafe “Formas de recurso”, que:
«1 – As decisões finais proferidas pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, em pleno, são impugnáveis apenas por via de recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto.
2 – Sem embargo do disposto no número anterior do presente artigo, as decisões finais proferidas pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, em pleno, respeitantes a matérias estritamente desportivas são apenas impugnáveis por via de recurso para o Conselho de Justiça. (…)».
E o nº 1 do artº 44º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 93/2014, de 23.06, dispõe:
«Para além de outras competências que lhe sejam atribuídas pelos estatutos, cabe ao conselho de justiça conhecer dos recursos das decisões disciplinares relativas a questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva».
Resulta com clareza do exposto que o TAD não tem competência para conhecer do recurso de decisões que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas, pois as mesmas apenas são recorríveis para o órgão de justiça das respectivas federações desportivas.
E, assim sendo, o nó górdio da presente revista prende-se com a interpretação a dar ao nº 6 do artº 4º da Lei do TAD, ou seja, apurar se o caso concreto se subsume ou não na sua previsão, ou seja, se estamos ou não perante questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da competição desportiva, também denominadas pela jurisprudência e doutrina, como questões estritamente desportivas.
E a este propósito, a Lei de Bases do Sistema Desportivo – Lei nº 1/90, de 13.01 -, dispunha no nº 2, do artigo 25º:As decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas que tenham por fundamento a violação de normas de natureza técnica ou de caráter disciplinar não são impugnáveis nem suscetíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva.”
A referida Lei foi revogada pela Lei de Bases do Desporto – a Lei nº 30/2004 de 20.07- que, no seu artº 47º, sob a epígrafe “Questões estritamente desportivas”, prevê o seguinte:
«Não são susceptíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas” (nº 1).
E define-se que são questões estritamente desportivas “aquelas que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, nomeadamente as infracções disciplinares cometidas no decurso da competição, enquanto questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas” (nº 2); sendo que nestas não “estão compreendidas as decisões e deliberações disciplinares relativas a infracções à ética desportiva, no âmbito da dopagem, da violência e da corrupção.”
Importa ainda ter presente a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto – Lei nº 5/2007, de 16.01 -, que previa no artº 18º (revogado pela alínea b) do artigo 4º da Lei nº 74/2013, de 06.09), o seguinte:
“(…)
2 – Não são suscetíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas.
3 – São questões estritamente desportivas as que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de caráter disciplinar, enquanto questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respetivas competições.
4 – Para efeitos do disposto no número anterior, as decisões e deliberações disciplinares relativas a infrações à ética desportiva, no âmbito da violência, da dopagem, da corrupção, do racismo e da xenofobia não são matérias estritamente desportivas.
5 – Os litígios relativos a questões estritamente desportivas podem ser resolvidos por recurso à arbitragem ou mediação, dependendo de prévia existência de compromisso arbitral escrito ou sujeição a disposição estatutária ou regulamentar das associações desportivas»
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Assim sendo, as questões estritamente desportivas terão de ser aquelas que tenham por fundamento e origem normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas.
Logo, por leis do jogo também se terá de entender o conjunto de regras que, relativamente a cada disciplina desportiva, têm por função definir os termos da confrontação desportiva e que se traduzem em regras técnico - desportivas que ordenam a conduta, as acções e omissões, dos desportistas nas actividades das suas modalidades e que, por isso, são de aplicação imediata no desenrolar das provas e competições desportivas.
Também na doutrina, e como bem se deixou consignado no Acórdão recorrido, veja-se ANTÓNIO PEIXOTO MADUREIRA e LUÍS CÉSAR TEIXEIRA, Futebol, Guia Jurídico, fls. 1602, que consideram como questões estritamente desportivas “as questões de facto e de direito emergentes das leis do jogo, ou seja, aquelas questões que tenham surgido durante a prática de uma competição e que, portanto, estejam relacionadas com o seu desenvolvimento, quer no seu aspecto técnico quer no aspecto disciplinar. Questões de facto, serão, por exemplo, aquelas que têm a ver com o apuramento de que se determinado jogador rasteirou ou não outro, se determinada bola ultrapassou ou não a linha da baliza, se determinado jogador agrediu ou não outro, etc. Questões em relação às quais o árbitro é soberano (…). Questões de direito são as que contendem com a aplicação das leis do jogo aos factos apurados. São questões relacionadas com os chamados erros de arbitragem
Ou seja, é infração estritamente desportiva aquela que é cometida no decurso de uma competição, envolvendo questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras técnicas de organização das respectivas provas, e sendo questões estritamente desportivas estão fora da competência da jurisdição do TAD, pois nada têm a ver com decisões materialmente desportivas.
E de nada adianta tentar delimitar a competência, nos presentes autos, fazendo apelo à violação de um direito constitucionalmente consagrado, como é o direito à audiência prévia, antes de ser proferida a decisão final porque, na realidade, a montante desta decisão, ou seja, na sua origem, se encontram questões de facto e de direito emergentes das leis do jogo, ou seja das questões que surgem no decurso da prova ou durante a competição, dado que estas estão relacionadas com o respectivo desenvolvimento/desenrolar do jogo, como melhor veremos infra.
Na verdade, o ora recorrente impugnou a sanção de suspensão automática por um jogo, aplicada em virtude da exibição de um cartão amarelo, que constituía o quinto na mesma época desportiva, situação que se mostra estatuída no artº 164º do RDLPFP sob a epígrafe cartões amarelos e vermelhos”, designadamente no seu nº 7, que prevê:
«O jogador que, na mesma época desportiva e em jogos diferentes, acumular uma série de cartões amarelos é punido com a sanção de suspensão por um jogo e, acessoriamente, com a sanção de multa de valor correspondente a 1,5 UC assim que atingir o quinto, o nono, o 12.º e o 14.º cartões amarelos dessa época desportiva»
Por sua vez, o artº 165º do RDLPFP, estabelece o regime especial das sanções por acumulação de cartões amarelos, e prevê o seguinte:
«1. As sanções de multa e de suspensão decorrentes da aplicação do disposto no artigo anterior serão aplicadas automaticamente, e sem dependência de qualquer formalidade, mediante o preenchimento dos pressupostos aí previstos, sem prejuízo de subsequente deliberação confirmativa da Secção Disciplinar.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, o árbitro deverá, no final do jogo, dar sempre conhecimento dos jogadores advertidos e expulsos aos delegados dos respetivos clubes, que rubricarão a ficha técnica.
3. As sanções referidas no nº 1 não podem ser modificadas por efeito de aplicação de circunstâncias agravantes ou atenuantes, nem a aplicação dessas sanções pode servir para o preenchimento de circunstância agravante ou do conceito de reincidência para efeitos de determinação das sanções aplicáveis em virtude da prática de outras infrações disciplinares.
4. A suspensão decorrente da acumulação de cartões amarelos, nos termos previstos no artigo anterior, é cumprida exclusivamente nos jogos das competições I Liga e II Liga, na época desportiva em curso.
5. Os cartões amarelos exibidos em jogos da Taça de Portugal, Supertaça e Taça da Liga não são contabilizados para o efeito a que se alude no número anterior».
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O TAD julgou-se competente para conhecer do litígio suscitado pelo ora recorrente restringindo o objecto do mesmo não à correcção ou não da exibição do cartão amarelo - que afirmou não haver dúvidas de que emerge exclusiva, directa e imediatamente da aplicação das normas técnicas e disciplinares respeitantes à prática da própria competição desportiva – mas unicamente à questão de saber da relevância, enquanto dado de facto assente, das afirmações do árbitro reconhecendo, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, que, após visionar as imagens da jogada em causa, a exibição de tal cartão amarelo “não foi adequada”, para aferição da questão de mérito, que é uma questão de direito, sobre se pode considerar-se verificada, in casu, a infração prevista e punida no artigo 164º, nº 7 do RDLPFP.
A este propósito, consignou-se no Acórdão recorrido proferido pelo TCA Sul:
«Não podemos acompanhar o entendimento do TAD, antes aderindo àquela que foi a posição exarada no voto de vencido.
O que vem invocado pelo Demandante, ora Recorrido, é que o comportamento alegadamente subjacente à exibição do cartão amarelo não ocorreu e que, nessa medida, não pode manter-se a sanção aplicada de forma automática, em decorrência de cinco cartões amarelos.
E para sustentar a sua alegação (de que tal comportamento não ocorreu), o Demandante apela à análise das imagens do lance em questão, o que reforça com a afirmação de que a equipa de arbitragem acaba por reconhecer que (em campo) não fez uma correcta análise do lance.
Assim, na situação sub judice, o litigio submetido ao TAD reside em saber se, no jogo de futebol em causa, a conduta do jogador – o ora Recorrido – era, à luz das leis do jogo aplicáveis, merecedora de cartão amarelo.
O que o TAD apelida de thema decidendum é, quanto a nós, apenas um argumento, uma razão para que, em sede de processo disciplinar, se conclua pela inadequação do cartão amarelo com vista ao não preenchimento da previsão do artigo 164.º, n.º 7, do RDLPFP.
Ao consagrar o disposto no art. 4º, nº 6 da Lei do TAD, o legislador quis excluir da jurisdição deste Tribunal não (só) a decisão técnica/disciplinar do árbitro durante o tempo do jogo, porquanto esta é-lhe naturalmente alheia, mas (também) as questões que daí possam emergir, como seja no plano disciplinar.
No caso, é inegável que o núcleo fáctico essencial da situação jurídica que o Demandante pretende fazer valer em tribunal assenta num juízo técnico produzido pelo árbitro do jogo colocando-se, assim, à apreciação do TAD matéria directamente ligada às “regras do jogo”.
A sanção automática em causa – suspensão e multa referente à acumulação de cinco cartões amarelos na competição, na mesma época desportiva – encontra-se directamente ligada às questões técnicas (“leis”) do jogo e da competição.
Por “leis de jogo” tem vindo a entender a nossa jurisprudência que se trata do “ conjunto de regras que, relativamente a cada disciplina desportiva, têm por função definir os termos da confrontação desportiva e que se traduzem em regras técnico - desportivas que ordenam a conduta, as ações e omissões, dos desportistas nas atividades das suas modalidades e que, por isso, são de aplicação imediata no desenrolar das provas e competições desportivas.” – cfr., entre outros, acórdãos do STA de 07.06.2006 (proc. nº 262/06), de 10.09.2008 (proc. nº 120/08) e de 21.09.2010 ( proc. nº 0295/10); acórdão do TCA Sul de 13.10.2011 (proc. nº 6925/10); e acórdão do TCAN de 09.11.2018 (proc. nº 248/18), disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
Tal como o voto de vencido junto ao acórdão recorrido, socorremo-nos aqui das palavras de Pedro Gonçalves:
“As “leis do jogo”, visando identificar e regulamentar a prática do jogo e desconhecendo qualquer eficácia no ordenamento jurídico, não incorporam regras jurídicas, mas regras técnicas. A situação não se apresenta diferente no caso das regras (disciplinares) que sancionam o desrespeito das “leis do jogo”, resultante da prática de infracções (faltas) no “decurso do jogo”: também aqui está envolvida a apreciação de factos ou condutas segundo critérios técnicos e não jurídicos. Num sentido rigoroso, a regulação do jogo não é de direito público, nem de direito privado, posto que não se trata de uma regulação jurídica.” - in, “A soberania limitada das federações desportivas”, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 59, pág. 59.
Para o mesmo Autor, “(…) seria inconsequente pedir a um Tribunal do Estado, Tribunal administrativo ou outro, que decide questões de direito e procede à aplicação de normas jurídicas, uma pronúncia sobre os termos de aplicação de normas técnicas ou sobre se um certo jogador cometeu, no decurso do jogo, a falta x ou y ou nenhuma das duas. Há, nesta matéria, um imperativo natural de contenção da ingerência da justiça estadual.”
Como se diz no voto vencido “por maior recorte que se faça do thema decidendum trazido à ponderação deste Colégio Tribunal, as declarações do árbitro do jogo quanto à amostragem de determinado cartão amarelo, e ao erro incorrido sobre esse facto, passarão, inevitavelmente, pelo crivo (apreciação e juízo decisório) deste Tribunal, não obstante tal matéria respeitar, inequivocamente, às “regras do jogo” e se encontrar, por essa via, excluída do âmbito de jurisdição do TAD, conforme assinalado anteriormente.”
Está em causa uma ocorrência, durante o período de jogo regulamentar, “dentro das 4 linhas”, e presenciada pela equipa de arbitragem que entendeu exibir um cartão amarelo; no caso, o quinto, na mesma competição desportiva.
Ainda que o TAD tenha procurado direccionar ou circunscrever o litígio, centrando-o na relevância das afirmações do árbitro reconhecendo, formalmente e em sede de sancionamento disciplinar, que, após visionar as imagens da jogada em causa, a exibição de tal cartão amarelo “não foi adequada”, para aferição da questão sobre se pode considerar-se verificada, in casu, a infração prevista e punida no artigo 164º, nº 7, do RDLPFP, consideramos que o verdadeiro cerne do litígio reside em aferir do acerto ou não da decisão de exibir o cartão amarelo – concretamente por ter o arguido agarrado um adversário, anulando um ataque prometedor.
O arguido/Demandante/Recorrido não pede formalmente a anulação do cartão amarelo exibido durante o jogo. Todavia, pretende-o efectivamente, não quanto aos efeitos a produzir no jogo (já decorrido) mas na competição e em sede disciplinar. A invalidação que formalmente peticiona – da sanção automática – assenta na alegada incorrecção dessa exibição, concretamente no juízo sobre a ocorrência de um “ataque prometedor”.
Ora, se o fundamento, a razão de ser da invalidade da sanção é a inadequação da exibição do cartão amarelo – por não estar em causa um “ataque prometedor” -, sempre será de analisar se o árbitro errou ou não na sua análise. Ou, o mesmo será dizer, sempre se imporá um juízo sobre as regras do jogo e/ou as regras da competição.
Estamos, pois, perante questão emergente da aplicação de normas técnicas e disciplinares directamente respeitante à prática da própria competição desportiva, na qual o TAD não tem jurisdição, por ser exclusiva das federações desportivas.
Nestes termos, dando razão à Recorrente, concluímos pela ausência de jurisdição do TAD para apreciar e decidir a questão do cometimento da infracção prevista e punida pelo artigo 164º, nº 7 do RD LPFP».
E esta decisão é para manter uma vez que, como bem se refere no acórdão recorrido, que nos dispensamos de repetir, o que está subjacente e em primeiro plano de análise, é efectivamente apurar se o cartão amarelo mostrado ao jogador/ora recorrente, respeita a uma infracção p. e p. no artº 164º, nº 7 do RDLPFP, sendo que decorrem de forma automática por acumulação de cartões os efeitos daí decorrentes; ou seja, está em causa um juízo efectuado pelo árbitro sobre as regras técnicas do jogo que decorreu dentro das quatro linhas e respeitantes à referida competição desportiva.
E assim sendo, como também elucida o voto de vencido vertido no acórdão do TAD, tal conduta/infracção encontra-se, por isso, excluída do âmbito da jurisdição do TAD.
E não colhe a alegação do ora recorrente no sentido de que nesta acção apenas está em causa a invalidade da decisão disciplinar sancionatória por preterição do seu direito de audiência prévia, enquanto direito fundamental [que na sua tese não terá sido cumprido] uma vez que, não foi ouvido antes da prolação das sanções aplicadas, porque por um lado, a sanção foi aplicada de forma automática, por acumulação de cartões, e por outro lado e mais revelante, mesmo que tal preterição tenha ocorrido, o conhecimento da mesma está a jusante da questão técnica/desportiva, e decorre de matéria, que já se considerou que o TAD não tinha competência para decidir.
E deste modo, inexistem igualmente quaisquer das inconstitucionalidades apontadas pelo recorrente, bem como a violação do disposto no artº 6º da CEDH, pois os direitos que alega, em nada foram violados.
O que se determina é tão só a incompetência do TAD para conhecer da questão em apreço, cujo conhecimento está atribuído à respectiva federação.
Atento o exposto, e sem necessidade de ulteriores considerações, importa revogar o acórdão recorrido no segmento em que conheceu da alegada preterição do direito de audiência prévia do ora recorrente e mantê-lo quanto ao mais.
*
3. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente, revogar o acórdão recorrido no segmento referente à ampliação do objecto do recurso e mantê-lo quanto mais.
Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2022. - Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) - Cláudio Ramos Monteiro – José Francisco Fonseca da Paz.