Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01846/17.6BEPRT
Data do Acordão:06/26/2019
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:COSTA REIS
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24737
Nº do Documento:SA12019062601846/17
Data de Entrada:06/07/2019
Recorrente:CM DO PORTO
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO STA:

I. RELATÓRIO

A…………. intentou, no TAF do Porto, contra o MUNICÍPIO DO PORTO, acção administrativa especial pedindo (1) a declaração de nulidade do despacho, de 31/01/2017, da Vereadora do Pelouro da Habitação e Acção Social da Câmara Municipal do Porto que ordenou o despejo da habitação camarária que ocupava e (2) que lhe fosse reconhecido o direito a habitá-la.

Aquele Tribunal julgou caducado o direito de acção e, em consequência, absolveu a demandada da instância.
O TCA Norte, para onde a Autora apelou, concedeu provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida e ordenou a baixa dos autos ao TAF para aí prosseguirem os seus termos.

É desse Acórdão que o Município do Porto vem recorrer (art.º 150.º/1 do CPTA).
II. MATÉRIA DE FACTO
Os factos provados são os constantes do acórdão recorrido para onde se remete.

III. O DIREITO

1. As decisões proferidas pelos TCA em segundo grau de jurisdição não são, por via de regra, susceptíveis de recurso ordinário. Regra que sofre a excepção prevista no art.º 150.º/1 do CPTA onde se lê que daquelas decisões pode haver, «excepcionalmente», recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo «quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental» ou «quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito». O que significa que este recurso foi previsto como «válvula de segurança do sistema» para funcionar em situações excepcionais em que haja necessidade, pelas apontadas razões, de reponderar as decisões do TCA em segundo grau de jurisdição.
Deste modo, a pretensão manifestada pelo Recorrente só poderá ser acolhida se da análise dos termos em que o recurso vem interposto resultar que a questão nele colocada, pela sua relevância jurídica ou social, se reveste de importância fundamental ou que a sua admissão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Vejamos, pois, se tais requisitos se verificam in casu socorrendo-nos para isso da matéria de facto seleccionada no Acórdão recorrido.

2. A Autora, que ocupava uma casa pertencente a Câmara Municipal do Porto afecta à habitação social, foi notificada do despacho, de 31/01/2017, da Vereadora do Pelouro da Habitação e Acção Social daquela Câmara que lhe deu ordem de despejo em virtude da mesma não utilizar a referida habitação e ter casa no concelho de Matosinhos.
Inconformada, intentou, em 09.08.2017, a presente acção administrativa especial.

O TAF absolveu o Réu da instância com fundamento na caducidade do direito de acção. Para tanto ponderou:
“.......
A Autora funda a sua pretensão em vícios que, quando muito poderão, em abstracto, redundar na anulabilidade do acto em crise. Segundo a Autora, a invalidade do acto redundará no facto de não ser verdade o alegado pelo Réu na fundamentação do acto em crise, porquanto a mesma foi determinada com base na não utilização da habitação por um período superior a seis meses, detenção de fração habitacional no concelho de Matosinhos e a falta de comunicação da situação de impedimento à manutenção do arrendamento apoiado.
....
Uma vez que a Autora apenas alega desconformidade do acto à lei (vícios passíveis de gerar a mera anulabilidade do ato), o direito de agir encontra-se in casu sujeito ao prazo de caducidade de três meses, nos termos do artigo 58.º n.º 2 alínea b) do CPTA.
Desta feita, quando a presente ação deu entrada em juízo, o prazo de 3 meses, previsto no artigo 58.º, n.º 2, alínea b) do CPTA, havia já decorrido.
Atento o supra referido e os normativos citados, será de julgar procedente, pois, a exceção de caducidade do direito de agir, absolvendo-se o Réu da instância em conformidade.”

Decisão que o TCA revogou com a seguinte fundamentação:
“...
Discordando de tal decisão, a autora interpôs o presente recurso jurisdicional, alegando que a mesma padece de erro de julgamento de direito.
Isto porque, ao contrário do que entendeu o TAF, imputou ao acto impugnado um vício cuja procedência conduz à sua nulidade, concretamente a violação do direito à habitação.
Vejamos se lhe assiste razão.
O artigo 161º, n.º 2, al. d) do CPA comina com a nulidade os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental.
........
A questão que se coloca é a de saber se a violação do direito à habitação, tal como a recorrente a configurou, pode ou não implicar a nulidade do acto impugnado e deste modo legitimar o ataque tardio que lhe vem feito.
.........
O fundamento de tal despacho é a “não utilização da habitação por um período superior a seis meses” e a “detenção de fracção habitacional no concelho de Matosinhos”, pois “o Pelouro da Habitação e acção Social considerou que a arrendatária é proprietária da habitação sita na Rua ………., n.º …., …., ….. ………” (cfr. artigos 5º e 6º da petição inicial).
Ora, a autora alega que o acto impugnado padece do vício de violação de lei por erro nos pressupostos, não só porque sempre residiu no fogo que é propriedade da Câmara Municipal do Porto, mas também porque não é proprietária de outra habitação.
E além disso sustentou que o referido despacho violou o direito à habitação, na medida em que vive “numa situação de pobreza, com elevada precariedade socioeconómica e de total carência habitacional, não tendo qualquer outra habitação ao seu dispor, nem possibilidade de arrendar outra casa, sendo por isso a rua o único destino para si e para a sua filha” (cfr. artigo 51º da petição inicial).
Estamos, portanto, perante um acto que, a confirmar-se a matéria alegada na petição inicial, ofende o núcleo essencial do direito à habitação, restringindo-o de maneira insustentável.
Assim, a ser inválido, o acto impugnado será nulo, nos termos do disposto no artigo 161º, n.º 2, al. d) do CPA, não estando a respectiva impugnação sujeita a prazo (cfr. artigo 58º, n.º 1 do CPTA).
Concluímos, deste modo, que a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao considerar verificada a excepção de caducidade do direito de acção.”

3. O MUNICÍPIO DO PORTO não se conforma com essa decisão pelo que pede a admissão desta revista na qual formula, entre outras, as seguintes conclusões:
“3 - A propósito de decifrar o que significado de conteúdo essencial do direito fundamental, referem MARCELO REBELO DE SOUSA E ANDRÉ SALGADO DE MATOS (in Direito Administrativo Geral, Atividade Administrativa, Tomo III, 1ª Edição) que “a formulação legal é excessivamente ampla: por direitos fundamentais, para estes efeitos, devem entender-se apenas os direitos, liberdades e garantias (quer os direitos do Título II da Parte I CRP, quer os direitos análogos a estes, nos termos do art.17º CRP) e não os direitos económicos, sociais e culturais na sua dimensão de direitos de prestações (…)”
4 - Acrescentam ainda os mesmos autores que “a utilização da expressão conteúdo essencial está deslocada, na medida em que é utilizada pelo art. 18º, 3 da CRP para delimitar um âmbito dos direitos fundamentais intocável pela atividade legislativa, não se afigurando como operativa para a proteção dos direitos fundamentais perante a administração.”
5 - Ora, salvo o devido respeito a interpretação correta que tinha vindo a ser feita pelos tribunais administrativos superiores e que agora foi quebrada com o acórdão impugnado vai no sentido de que quando o erro sobre os pressupostos ou a violação da lei afetam um ato de resolução de um contrato de arrendamento social o que determina o despejo a um determinado agregado, tais vícios geram mera anulabilidade e não o vício mais grave que é o da nulidade.
6 - E é assim, porque obviamente, o direito à habitação não é um direito liberdade e garantia e não é um direito absoluto.
7 - Tal significa que a própria lei admite a possibilidade de, em certas circunstâncias, o contrato de arrendamento ser resolvido pela aqui impugnante. E, assim sendo, quando é posta em causa esse poder administrativo de resolução (saber se foi ou não dentro das circunstâncias previstas na lei, o que está a ser violado não é o núcleo essencial desse direito, mas a lei e portanto o vício que, eventualmente, tal violação possa gerar é a anulabilidade, o que determina que a ação de impugnação esteja sujeita ao prazo de 3 meses, sob pena de caducidade..

4. A única questão que suscita nesta revista é a de saber se o direito à habitação é um direito fundamental e, se por isso, o acto impugnado, que alegadamente pôs em causa esse direito é nulo e, por essa razão, pode ser sindicado a todo o tempo.
Como vimos as instâncias responderam de forma divergente àquela interrogação daí decorrendo decisões contraditórias.
Sendo assim, e sendo esta uma questão jurídica de importância fundamental justifica-se admitir o recurso com vista a uma mais esclarecida aplicação do direito.

Decisão.
Termos em que os Juízes que compõem este Tribunal acordam em admitir a revista.
Sem custas.
Porto, 26 de Junho de 2019. – Costa Reis (relator) – Madeira dos Santos – São Pedro.