Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:077/23.0BCLSB
Data do Acordão:04/04/2024
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RECURSO DE REVISTA EXCEPCIONAL
APRECIAÇÃO PRELIMINAR
ILÍCITO DISCIPLINAR
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DA REGULAMENTAÇÃO JURÍDICA
Sumário:É de admitir revista do acórdão do tribunal de apelação que revoga acórdão do tribunal arbitral do desporto e declara nulo o acto punitivo com fundamento numa alteração substancial dos factos se a decisão aparentemente merece censura e porque a questão é relevante em termos jurídicos.
Nº Convencional:JSTA000P32073
Nº do Documento:SA120240404077/23
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL
Recorrido 1:AA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em «apreciação preliminar», na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL [FPF] vem, invocando o artigo 150º do CPTA, interpor «recurso de revista» do acórdão do TCAS - datado de 11.01.2024 - que decidiu conceder provimento à «apelação» deduzida por AA, e, em conformidade, revogar o acórdão do TAD - de 29.03.2023 - e «declarar a nulidade» do acto pelo qual este último foi punido pela prática da «infracção disciplinar prevista e punida pelo artigo 186º nº1 do RDFPF» - Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol.

Alega que o «recurso de revista» deve ser admitido em nome da «necessidade de uma melhor aplicação do direito» e em nome da «relevância jurídica e social da questão».

O ora recorrido - AA - apresentou contra-alegações em que defende, além do mais, a «não admissão da revista» por falta de verificação dos necessários pressupostos legais - artigo 150º, nº1, do CPTA.

2. Dispõe o nº1, do artigo 150º, do CPTA, que «[d]as decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

Deste preceito extrai-se, assim, que as decisões proferidas pelos TCA’s, no uso dos poderes conferidos pelo artigo 149º do CPTA - conhecendo em segundo grau de jurisdição - não são, em regra, susceptíveis de recurso ordinário, dado a sua admissibilidade apenas poder ter lugar: i) Quando esteja em causa apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental; ou, ii) Quando o recurso revelar ser claramente necessário para uma melhor aplicação do direito.

3. AA impugnou no «Tribunal Arbitral do Desporto» [TAD] a decisão do «Conselho de Disciplina» que lhe aplicou as sanções disciplinares de «impossibilidade de registo durante duas épocas desportivas», e, cumulativamente, na «multa de 18 UC» por, na ausência de prévio registo na FPF, ter aceitado, em contrato reduzido a escrito, representar sociedade anónima desportiva que disputa competições organizadas pela LPFP e pela FPF em negociações visando a transferência internacional de um jogador com vista à inscrição e utilização do mesmo «nas referidas competições nacionais».

O TAD, por acórdão de 29.03.2023, decidiu julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão do «Conselho de Disciplina» segundo a qual o arguido, ao exercer a actividade de intermediário na ausência de registo prévio na FPF - ainda actuando sob as vestes de uma entidade que gira sob a designação comercial ... - incumpriu o disposto no artigo 37º, nº1, da Lei nº54/2017, de 14.07, e, em consequência desrespeitou igualmente o «previsto nos artigos 5º, nº2, e 6º, nºs 1 e 2, do Regulamento de Intermediários da FPF», pelo que deveria ser condenado, tal como foi, pela infracção disciplinar prevista e punida no artigo 186º, nº1, do RDFPF.

Sobre uma alegada «alteração substancial dos factos» - relativamente à acusação - que vinha imputada à decisão aí recorrida, o acórdão do TAD referiu, nomeadamente, o seguinte: «Mesmo que houvesse dúvida sobre a natureza substancial ou não da alteração da imputação feita, ao ter sido observado o procedimento do artigo 359º do CPP, foram, dessa forma, salvaguardadas as garantias de defesa do arguido/recorrente, a efectividade do princípio do acusatório, e foi desde logo lograda a consecução da teleologia subjacente aos preceitos».

O tribunal de apelação - TCAS - concedeu provimento à apelação deduzida pelo arguido - AA - e decidiu revogar o acórdão do TAD e «declarar a nulidade do acto punitivo» - que condenou o arguido pela prática da infracção disciplinar prevista e punida no artigo 186º, nº1, do RDFPF - com fundamento em «ilegal alteração substancial dos factos». Nele se diz, a respeito, nomeadamente o seguinte: «Trata-se, pois, de uma clara alteração substancial dos factos, posto que foi imputada ao arguido uma infracção diversa, com a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis [ver artigo 1º, alínea f), do CPP, e artigo 4º, alínea e), do RDFPF]. Sem que se mostre observado o procedimento previsto no artigo 359º do CPP, sem que se alcance a indicação em sentido contrário da recorrida, foram violadas as garantias de defesa do recorrente. E a consequência é a nulidade do acto punitivo, pois, conforme estatui o artigo 379º, nº1, alínea b), do CPP, é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º. Cumprindo declarar a nulidade do acto punitivo e a procedência da presente questão, queda prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas. Em suma, será de conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e declarar a nulidade do acto punitivo através do qual se condenou o recorrente pela prática da infracção disciplinar prevista e punida pelo artigo 186º nº1 do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol».

A FPF vem discordar deste provimento da apelação, pedindo a revista do acórdão do TCAS por - alegadamente - ter errado no julgamento de direito. Nada alega de específico sobre as questões julgadas improcedentes pelo tribunal de apelação - sobre a não aplicação da Lei da Amnistia; nulidade do acórdão do TAD por omissão de pronúncia; e nulidade do acórdão do TAD por falta de fundamentação - pelo que a sua discordância se reconduzirá à questão da «ilegal alteração substancial dos factos». Entende que a alteração dos factos ocorrida não é substancial, ou, a sê-lo, não é ilegal por ter sido cumprido o disposto no artigo 359º do CPP.

Compulsados os autos, importa apreciar «preliminar e sumariamente», como compete a esta Formação, se estão verificados os «pressupostos» de admissibilidade do recurso de revista - referidos no citado artigo 150º do CPTA - ou seja, se está em causa uma questão que «pela sua relevância jurídica ou social» assume «importância fundamental», ou se a sua apreciação por este Supremo Tribunal é «claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

A questão que se perfila não é de resolução fácil, como desde logo ressuma da decisão discrepante dos tribunais de instância - arbitral e judicial -, antes exigindo o apuramento de institutos jurídicos complexos, como seja o da «alteração substancial dos factos» no contexto da responsabilidade disciplinar, sua legalidade, e sua correcta aplicação neste caso concreto. O tratamento desta questão pelo tribunal de apelação não é apodíctico, antes sendo permeável a dúvidas que merecem a clarificação pretendida com a revista, em prol de uma decisão mais sólida e mais convincente. Ademais, trata-se de um tema com inegável relevância jurídica, pois que estarão em causa os limites legais impostos à condenação do arguido por factos alegadamente distintos dos da acusação, e todas as consequências inerentes à estrita necessidade da defesa quanto a eles.

Importa, pois, considerar que este caso integra a natureza excepcional que é exigida por lei à admissão deste tipo de recursos, e admitir a revista interposta pela FPF.

Nestes termos, e de harmonia com o disposto no artigo 150º do CPTA, acordam os juízes desta formação em admitir a revista.

Sem custas.

Lisboa, 4 de Abril de 2024. – José Veloso (relator) – Teresa de Sousa – Fonseca da Paz.