Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01869/13.4BEBRG 01152/17
Data do Acordão:05/12/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:SUZANA TAVARES DA SILVA
Descritores:CLÁUSULA ANTI-ABUSO
SUBSTITUIÇÃO TRIBUTÁRIA
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
Sumário:A interpretação jurídica que, à luz dos princípios da praticabilidade e da razoabilidade, assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na sua redacção prévia à alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019, é a que sustenta que quando a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção e na sua substituição por uma operação cuja regulação legal imporia a prática de um acto de retenção na fonte a título definitivo (e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário), é aquele que se vem a qualificar como substituto (à luz da aplicação da CGAA) quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele e seja possível concluir, no âmbito do procedimento do artigo 63.º do CPPT, que ele tinha a obrigação legal de conhecer a operação jurídica alternativa que se vem a qualificar como legalmente devida por efeito da desconsideração da operação realizada (da construção adoptada).
Nº Convencional:JSTA000P27680
Nº do Documento:SA22021051201869/13
Data de Entrada:10/25/2017
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............ - SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I - Relatório

1 – A Autoridade Tributária vem interpor recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga de 2 de Maio de 2017, que julgou procedente a impugnação judicial intentada por A………… – Sociedade Gestora de Participações Sociais, S.A., relativa aos actos de liquidação de retenções na fonte de IRS e de juros compensatórios, referentes aos exercícios de 2010 e 2011, no valor de 3.160.488,20€, tendo apresentado, para tanto, alegações que concluiu do seguinte modo:
I - Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou a impugnação judicial procedente, anulando as liquidações de retenções na fonte de IRS e juros compensatórios referentes aos exercícios de 2010 e 2011, com fundamento no vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito.
II - Considerou o tribunal a quo, estar afastada a possibilidade de responsabilizar a ora Recorrida pelo pagamento da quantia peticionada dado que esta não usufruiu de qualquer vantagem fiscal, não podendo ser considerada sujeito passivo do imposto, apesar de assumir a qualidade da entidade pagadora do preço, contrapartida da operação de amortização de acções, todavia, ressalvado melhor entendimento, não concordamos com a fundamentação expendida.
III - Com efeito, ao contrário do firmado na sentença recorrida, a apreciação da factualidade apurada foi efectuada à luz de todos os elementos exigidos pela norma, sendo que a preterição de qualquer deles resultaria na violação dos critérios interpretativos a que o intérprete da lei fiscal está obrigado, e, em concreto, a preterição da análise do elemento resultado, o qual demonstra em que termos se concretizou a redução indevida da obrigação tributária, consubstanciaria a violação grosseira do disposto quer na letra do artigo 38.º, n.º 2, da LGT quer na racio legis da consagração legal da CGAA.
IV - Determina o n.º 2 do artigo 38.º da LGT a desconsideração dos efeitos fiscais dos actos celebrados e a tributação do negócio jurídico considerado usual para obter o efeito económico visado de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência, assim, in casu, não fora a comprovada motivação de evitação fiscal, procederia a Recorrida à distribuição dos dividendos aos seus accionistas, qualificados como rendimentos de capitais de acordo com o disposto na alínea h) do n.º 2 do art.º 5.º do CIRS, retendo na fonte o imposto devido, na qualidade de substituto tributário (artigo 20.° da LGT), dando, assim, cumprimento ao estipulado no artigo 71.º, n.º 1, alínea c) do CIRS.
V - Com efeito, prevê a lei fiscal a tributação da distribuição de dividendos através do mecanismo de retenção na fonte a título definitivo, na esfera da sociedade, a qual assume a responsabilidade originária pela entrega do imposto devido, nos termos do artigo 104.º, n.º 4 do CIRS.
VI - Ora, impondo o legislador que a tributação se efectua de acordo com as normas aplicáveis na ausência do negócio efectivamente realizado e determinando que a distribuição de dividendos está sujeita ao regime de retenção na fonte, que constitui obrigação da entidade distribuidora na qualidade de sujeito passivo, o qual lhe advém do mecanismo de substituição tributária, tem esta, obviamente, legitimidade no procedimento tributário de aplicação da CGAA, nos termos do artigo 9.º do CPPT.
VII - Sendo que o procedimento de aplicação da CGAA não pode ser dissociado do procedimento de liquidação do imposto, porquanto pretende o legislador que a tributação se efectue de acordo com a situação que ocorreria sem a prática do acto abusivo e a situação normal consiste na obrigação da entidade distribuidora dos dividendos proceder a retenção do imposto devido e à sua entrega nos cofres do Estado, através do mecanismo de substituição consagrado pelo legislador no artigo 20.º da LGT e assumindo a posição de sujeito passivo na relação jurídico-tributária, conforme estipula o artigo 18.º, n.º 3, da LGT.
VIII - Desta forma, mostra-se desprovida de fundamento legal a argumentação de que a aplicação da CGAA, na esfera do substituto, se traduz na alteração da relação jurídica material, e que a retenção na fonte é apenas uma obrigação acessória, bem como contraria a posição da doutrina e da jurisprudência sobre o mecanismo da substituição tributária.
IX - Com efeito, de acordo com o artigo 18.º, n.º 3, da LGT, o substituto assume a qualidade de sujeito passivo naquela relação jurídico-tributária, pelo que quando se desconsidera os efeitos fiscais dum negócio elisivo e se impõe que a tributação se efectue de acordo com o mecanismo de retenção na fonte, porque é esse a forma de tributação determinada pelo legislador, não há qualquer alteração dessa relação jurídica material.
X - Situação diferente ocorre quando alguém suporta o encargo do imposto por repercussão legal, já que o legislador expressamente prevê no artigo 18.º, n.º 4, da LGT que nesse caso o sujeito não possui a qualidade de sujeito passivo, assim, a aferição da medida da capacidade contributiva respeita, unicamente ao substituído, não ocorrendo nas situações de substituição tributária total qualquer violação do princípio da capacidade contributiva na esfera do substituto.
XI - Aliás, é precisamente a obrigatoriedade de atender à capacidade contributiva dos substituídos que legitima a Administração Fiscal a aplicar a CGAA in casu e a desconsiderar os efeitos fiscais produzidos, porquanto os negócios e actos praticados resultaram numa ilegítima ausência de tributação perante uma situação de elevada capacidade contributiva dos administradores da Recorrida, sendo que a ausência de tributação de tão elevada manifestação de capacidade contributiva só ocorreu porque foram praticados, pela Recorrida e pelos seus administradores, utilizando a figura societária, actos que visaram tornear as normas de incidência tributária, em clara violação do desígnio do legislador no sentido de promover a justa distribuição dos encargos tributários.
XII - Pelo que a aplicação da CGAA e a concretização das correcções na esfera jurídica da Recorrida cumprem rigorosamente a letra e o espírito da norma constante do artigo 38.º, n.º 2 da LGT, bem como os princípios constitucionais da igualdade tributária e da capacidade contributiva, não ocorrendo o invocado vício de ilegitimidade.
XIII - O decisivo no discurso fundamentador da AT reside na constatação de que foi praticado um conjunto sequencial de actos descritos cronologicamente no RIT, os quais, vistos no seu todo, resultaram numa situação que corresponde, em substância, a uma distribuição de lucros aos accionistas, por via de resultados acumulados em reservas, sujeita a IRS como rendimento de capitais.
XIV - Aliás, um dos factos salientados pela Inspeção Tributária como essenciais para concluir que a motivação da Recorrida foi, indubitavelmente, de índole fiscal foi ter verificado que as únicas alterações na estrutura do capital referem-se ao número de acções e no seu valor nominal, mantendo-se intacto o valor do capital social bem como a percentagem de detenção e os direitos de voto dos seus accionistas, mostrando-se cabalmente provada a falta de racionalidade económica da operação em causa.
XV - Na verdade, a redução de capital, com o objectivo de libertar o valor excedente, assenta no pressuposto de que esse valor é desnecessário para a prossecução da actividade societária e, não estando a criar riqueza para a sociedade nem, consequentemente, para os seus accionistas, está como que “paralisado”, tornando-se improdutivo, e é por esse motivo que, não sendo necessários à sociedade, os lucros gerados no exercício da sua actividade devem ser distribuídos aos accionistas (que poderão aplicá-los noutros investimentos susceptíveis de criar valor acrescentado), em vez de ficarem retidos na sociedade fazendo aumentar o volume do capital próprio sem condições de criar mais riqueza.
XVI - A restituição de capital aos accionistas pressupõe a dotação prévia, por parte destes, da parte de capital social correspondente à sua participação na sociedade, em função da qual é efectuada a distribuição dos lucros obtidos em cada período económico resultantes do exercício da actividade, assim, se os lucros do exercício não são necessários para dotar a reserva legal e obrigatória, não se mostram necessários para o desenvolvimento e reestruturação da actividade da sociedade ou para a reorganização da sua estrutura societária, nem se perspectivam oportunidades de investimento que justifiquem a sua cativação, já que havia sido reanalisado o processo de industrialização do Grupo A………….
XVII - E se, para além de tudo isto, se verifica que o capital social já é excessivo devem tais lucros cumprir o seu fim último — a distribuição aos accionistas, como forma de remuneração do capital investido na sociedade, ora, os lucros do exercício, não perdem, apesar de retidos, a natureza intrínseca que lhes subjaz, e que se reconduz à sua distribuição, caso não sejam aplicados na sua totalidade.
XVIII - onde resulta que a utilização da figura societária da amortização de acções com redução do capital, regulada no artigo 347.º do CSC, foi abusiva, fendo como intuito afastar a tributação na fonte, a título definitivo, de lucros que a sociedade pretendia distribuir, e cujo montante entregou efectivamente aos accionistas.
XIX - Compreende-se, facilmente, que o caminho percorrido pela Recorrida teve como objectivo remunerar os accionistas pelo capital investido, sem proceder formalmente à operação de distribuição de dividendos, a qual seria sujeita a tributação pela categoria E de IRS.
XX - Assim, o recurso ao artigo 347.º do CSC com o fim pretendido pela Recorrida - a distribuição de lucros aos accionistas - teve como consequência um resultado não esperado pelo legislador, já que expressamente prevê a lei fiscal a sua tributação como rendimentos de capitais — a elisão da tributação.
XXI - Tal procedimento configura, por isso, um abuso de forma que o legislador não descurou e procurou impedir através do mecanismo previsto no artigo 38.º, n° 2, da LGT, com efeito, o legislador fiscal é muito claro quanto à distinção e regime de tributação destas duas figuras — a distribuição de lucros e a redução de capital, prevendo a tributação da primeira por meio do mecanismo de retenção na fonte, a título definitivo, na esfera da sociedade que assume a responsabilidade originária pela entrega do imposto devido (art. 104°, n° 4 do CIRS), e concedendo a isenção de tributação à segunda, ao abrigo do art. 24°, n° 1, alínea c) do CIRC (variação patrimonial negativa excepcionada).
XXII - Por outro lado, a Recorrida por via da distribuição de resultados duma participada viu consideravelmente aumentados os seus capitais próprios e dispunha de lucros para distribuir, no entanto, optou por concretizar a operação de amortização de acções com redução do capital social, as quais, como supra demonstrado, são totalmente desprovidas de racionalidade económica, delas não resultando qualquer vantagem, fiscal ou extra fiscal, para a sociedade e produzindo efeitos somente na esfera dos accionistas.
XXIII - De facto, perante o excesso de capital e a existência de lucros por distribuir, decidiu a Recorrida a redução e o simultâneo aumento do capital social, mantendo-se a estrutura accionista, em percentagem e valor, fazendo uso das possibilidades que lhes são conferidas pelo CSC de forma abusiva, já que o que se pretendeu alcançar foi uma vantagem individual dos accionistas, ficando por demonstrar a prossecução de qualquer objectivo económico-societário legítimo.
XXIV - A operação que a Recorrida qualificou de amortização de acções com redução do capital teve como único fim beneficiar os accionistas, fazendo entrar na sua esfera patrimonial particular as reservas legais e livres provenientes dos resultados líquidos positivos apurados ao longo dos anos, requalificando dividendos distribuídos numa mais valia sujeita a uma forma menos gravosa de tributação, ou seja, verificou-se um uso abusivo e fraudulento da personalidade jurídica da pessoa colectiva unicamente com o intuito de alcançar vantagens fiscais ilegítimas para os accionistas, sem ter como desígnio qualquer objectivo atinente ao escopo societário da Recorrida.
XXV - Desta forma, é notório que os accionistas instrumentalizaram a sociedade, a favor dos seus interesses pessoais violando, assim, o princípio da separação que deve existir entre estes e a pessoa colectiva, pelo que a utilização do artigo 347.º do CSC foi abusiva, tendo como intuito afastar a tributação na fonte, a título definitivo, de lucros que a sociedade pretendia distribuir, e cujo montante entregou efectivamente aos accionistas.
XXVI - Não pretende o legislador que sociedade seja usada de modo ilícito e abusivo para alcançar objectivos individuais dos sócios, praticando, em benefício próprio, actos ou negócios com o intuito de contornar a lei.
XXVII - É cristalina a existência de uma relação lógica e cronológica entre vários actos ou negócios jurídicos e a sua subordinação ao propósito de distribuir lucros da sociedade Recorrida, por via da aplicação de resultados acumulados nos capitais próprios em reservas, sob a veste de uma mera amortização de acções com redução de capital.
XXVIII - Como resultado desta modelação negocial ocorreu uma requalificação como mais valias, com a deslocação para a categoria G do IRS, de rendimentos que substancialmente constituem dividendos, e, como tal, deveriam transitar para a esfera jurídica dos accionistas, sendo tributados como rendimentos da categoria E.
XXIX - Demonstram, indubitavelmente, os factos que a referida modelação negociai foi determinada pela finalidade exclusiva ou predominante de obter a requalificação tributária de rendimentos, com o intuito de beneficiar de um regime de tributação que não seria aplicável ao pagamento de dividendos.
XXX - De facto, o conjunto de operações evidencia a intenção, senão exclusiva pelo menos predominante, de obter um determinado efeito económico - fazer entrar rendimentos, na esfera patrimonial particular dos accionistas, sem os sujeitar à tributação tipicamente prevista para a distribuição de dividendos.
XXXI - O meio jurídico foi a requalificação desses rendimentos como rendimentos de mais valias, fazendo-os transitar para a cédula de tributação correspondente, no âmbito da qual beneficiaram da exclusão de tributação prevista na redacção, à data das deliberações, da alínea o n.º 2 do artigo 10.º do CIRS, elidindo a tributação devida em resultado de factos, actos ou negócio jurídicos de idêntico fim económico, como é a distribuição de resultados pelos accionistas, razão pela qual, à luz do disposto no n.º 2 do art.° 38.º da LGT, tais rendimentos devam ser qualificados, em razão da sua substância económica, como uma distribuição de lucros.
XXXII - Este artigo visa impedir os efeitos tributários evasivos de negócios ou actos jurídicos formalmente lícitos, desde que motivados exclusiva ou predominantemente pela obtenção de vantagem fiscal, em detrimento da qualificação típica de factos tributários ou da integridade do ordenamento fiscal.
XXXIII - Trata-se de evasão fiscal intra legem e, por isso, não pressupõe a ilicitude dos actos ou negócios jurídicos em causa, nem sequer a qualificação destes como ilícito fiscal, nisso se distinguindo da fraude fiscal (em sentido estrito) e da simulação.
XXXIV - A ilicitude reporta à finalidade encoberta pela licitude formal dos actos ou negócios jurídicos - a vantagem fiscal concretizada pela redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização de meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas.
XXXV - O carácter artificioso, fraudulento, dos meios, o abuso de formas jurídicas e a motivação exclusiva ou principal para a obtenção de vantagem fiscal aferem-se pelo escrutínio dos factos, isto é, pelos próprios termos dos actos ou negócios entendidos no seu contexto global e, em especial pelo contraste entre os fins anunciados e os que foram efectivamente alcançados, pelo que a CGAA requer a consideração da sequência de actos ou negócios funcionalmente coligados à ordem de um fim unitário, mesmo que cada acto ou negócio singular seja formalmente lícito e desprovido de capacidade elisiva autónoma.
XXXVI - Aqui chegados, é forçoso concluir que a argumentação da sentença recorrida está inquinada ab initio, porquanto as correcções efectuadas pela Inspecção Tributária são absolutamente coincidentes com a pretensão do legislador de tributar a real capacidade contributiva dos sujeitos passivos, revelada pelo conjunto de rendimentos efectivamente obtidos, que só escapou à tributação porque a liberdade de configuração jurídica dos factos tributários foi abusivamente utilizada para tal fim.
XXXVII - Não obstante, a responsabilidade da Recorrida no atraso na liquidação e na entrega ao Estado do imposto devido advém da concretização de actos e negócios jurídicos com motivação exclusiva de evitação fiscal e que conduziram à aplicação da CGAA e à concretização das correcções para efeitos de liquidação do imposto devido, donde resulta demonstrada a culpa da Recorrida e a legalidade da liquidação dos juros compensatórios.
XXXVIII - Face ao exposto e contrariamente ao expendido na douta sentença, ponderados e analisados todos os elementos dos autos, bem como os argumentos invocados, conclui-se que as pretensões da Recorrida são totalmente improcedentes, e que se mostram perfeitamente legais as liquidações efectuadas, não padecendo as mesmas de qualquer vício.
Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.as, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que declare a presente impugnação judicial totalmente IMPROCEDENTE, por não provada, com todas as consequências legais.



2 – O recorrido contra-alegou tendo concluído do seguinte modo:
1.ª A douta sentença proferida pelo TAF de Braga e agora recorrida por parte da AT não merece qualquer censura, antes sendo credora de elogio e conformação.
2.ª Aquela douta decisão circunscreveu-se a apreciar uma primeira questão suscitada pela então impugnante — a de que é parte ilegítima no procedimento que deu origem às liquidações impugnadas, quer à luz da letra do n.º 2 do art.° 38.º da Lei Geral Tributária (LGT), quer tendo em conta o seu espírito, densificado pela necessária observância dos princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade, da liberdade de iniciativa económica e da capacidade contributiva.
3.ª Em face desta alegação, o Tribunal a quo, na sua douta sentença, decidiu nos seguintes termos:
4.ª «Conclui-se (…) da parte final do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redacção da Lei n.º 30-G/2000, “que a cláusula geral antiabuso não tem em vista meramente atribuir à Administração Tributária compensação por actos que lhe tenham provocado perda de receita fiscal, antes visa, concomitantemente, eliminar as vantagens fiscais ilegítimas que alguém obteve, o que revela que lhe estão subjacentes preocupações de igualdade e justiça tributária, que só podem satisfazer-se com a imposição da tributação omitida a quem obteve essas vantagens”».
5.ª E prossegue, afirmando (novamente em citação do mesmo Acórdão) que «é esta a única interpretação que se compatibiliza com o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva (artigo 104.º, n.º 2, da CRP) e o princípio da tributação com respeito pela justiça material (artigo 5.º, n.º 2, da LGT)».
Prosseguindo a douta sentença:
6.ª «Com efeito, estes princípios impõem que seja tributado em impostos sobre o rendimento quem obteve os rendimentos e não quem os não obteve e o valor da justiça material é claramente quando, em uma situação em que existam vantagens fiscais indevidas, vá ser exigida a quantia correspondente a quem não beneficiou dessas vantagens, deixando intocados os que indevidamente delas beneficiaram. Assim prova-se que o fluxo financeiro realizado entre a A..., SGPS, SA, e os acionistas da ...., não gerou vantagens fiscais na esfera jurídica da A.... A obtenção de significativas vantagens na esfera jurídica dos acionistas envolvidos deu-se aquando do negócio jurídico - operação de venda das ações dos sócios da ...... à A..., SA., e não aquando da realização do fluxo monetário correspondente ao pagamento da contrapartida dessa operação económica (a venda das participações), ainda que só neste momento fosse exigível a retenção na fonte com a taxa prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 71.° do CIRS».
7.ª A conclusão no Acórdão citado e reproduzido na sentença ora recorrida é a de que «tendo em mente estes princípios, é seguro que a redação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, introduzida pela Lei n.º 30-G/2000, exige que a aplicação da cláusula geral antiabuso tenha como efeito a não produção das vantagens fiscais indevidas, pelo que está pressuposto nesta norma que, pelo menos nos casos em que as vantagens fiscais já se tenham produzido, o destinatário da aplicação seja quem delas usufrui».
8.ª E, do mesmo modo, no presente caso afirma também o TAF de Braga na sua douta sentença: «Por isso, no caso em apreço, não tendo a Impugnante usufruído qualquer vantagem fiscal, está afastada a possibilidade de ser responsabilizada pelo pagamento das quantias correspondentes às vantagens fiscais indevidas que a Autoridade Tributária e Aduaneira invoca».
9.ª E a decisão só poderia, nesse sentido, ser a que foi: «a impugnante no caso concreto não pode ser considerada sujeito passivo do imposto, apesar de assumir a qualidade da entidade pagadora do preço, contrapartida da operação de amortização de acções. Se é de desconsiderar a operação de amortização de acções esta tem que ser realizada na esfera jurídica dos sócios». E, sendo assim, «conclui-se (...) que “mesmo que verificados o preenchimento dos pressupostos de aplicação do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, entende-se que esse preceito não tem aptidão para junto de terceiros despoletar o nascimento de obrigações fiscais acessórias, nomeadamente a obrigação de retenção na fonte, existente apenas depois da reconfiguração jurídico-fiscal operada no contexto da aplicação da cláusula geral antiabuso, sob pena de inconstitucionalidade da norma em face dos princípios da certeza e segurança jurídicas, ínsitos no Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.º da CRP”.»
10.ª Em face desta decisão, o tribunal cuidou de clarificar, naturalmente, que «resulta prejudicado o conhecimento dos restantes vícios imputados aos actos impugnados (artigo 130.º do CPC)».
11.ª Em face desta douta decisão não é compreensível o «argumento» suscitado pela AT de se não tivesse ocorrido a «evitação» fiscal, a A………… teria procedido à distribuição de dividendos aos seus accionistas, caso em que reteria na fonte o imposto devido. E como a lei fiscal prevê a tributação da distribuição de dividendos através do mecanismo da retenção na fonte a título definitivo, na esfera da sociedade, entende a AT que é assim que se terá de fazer em caso de aplicação da Cláusula Geral Anti Abuso (CGAA).
12.ª Tal «argumento» não tem adesão à interpretação correcta (que o TAF de Braga fez!) pois «estando a existência de um dever de retenção na fonte dependente da natureza jurídica dos pagamentos efetuados e só sendo possível considerar ineficaz para efeitos fiscais o negócio celebrado depois de uma autorização casuística do dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência (artigo 63.º, n.º 7, do CPPT), o potencial substituto tributário ficaria juridicamente impossibilitado de impedir uma diminuição patrimonial provocada por dívidas fiscais de outrem, pois, no momento em que efetuou os pagamentos, não tinha fundamento legal para efetuar retenção na fonte e esse dever só surgiria, com efeito retroativo, na sequência da aplicação da cláusula geral antiabuso que permitisse considerar fiscalmente ineficaz o negócio celebrado, sem possibilidade de reaver o que teria de pagar».
13.ª Quanto ao mais, designadamente quanto aos factos, quanto à falta de fundamentação da AT no próprio procedimento, quanto à interpretação do n.º 2 do artº 38.º da LGT e quanto à subsunção daqueles factos aos elementos de que depende a mobilização do citado n.º 2 do art.º 38.º, reiteramos tudo quanto se reproduziu perante o Tribunal a quo, seja na petição inicial seja nas alegações apresentadas nos termos do art.º 120.º do CPPT (ambas as peças processuais se dão aqui por reproduzidas.
Assim:
Quanto ao elemento «meios» («actos ou NEGÓCIOS JURÍDICOS» — N.º 2 DO ART.° 38.° DA LGT):
14.ª Os «actos ou negócios» jurídicos que a AT questiona não sugerem qualquer concatenação entre si (muito menos qualquer concatenação artificial), não se achando unidos pelo «denominador comum» invocado pela AT: a exclusão da tributação de IRS outrora prevista na al. a) do n.º 2 do art.º 10.º do Código do IRS e que a própria AT reputa de inaplicável ao caso.
15.ª As amortizações de acções com redução do capital da A………… nos termos consignados no art.º 347.º do CSC foram deliberadas pelos seus accionistas visando a redução do capital próprio da Recorrida, com base em motivações de financeiras e de estratégia de gestão do Grupo (a finalidade que, como vimos, o legislador atribuiu a tal operação jurídico-societária) independentemente do regime fiscal que se despoletaria na esfera dos accionistas.
Quanto ao elemento «normativo» («meios ARTIFICIOSOS OU FRAUDULENTOS E COM ABUSO DAS FORMAS JURÍDICAS» —N.º 2 DO ART.° 38.° DA LGT):
16.ª As operações jurídicas que a AT coloca em crise têm um substrato não fiscal perfeitamente identificável, tendo sido realizadas por razões economicamente válidas, como flui do que acaba de se expor.
17.ª Todos os negócios foram realizados sem a sua «desfuncionalização», isto é, as formas jurídicas utilizadas foram-no a fim de cumprirem a sua vocação habitual e os seus efeitos típicos, pelo que não podem constituir «meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas» (n.º 2 do art° 38.° da LGT): não constituíram «expedientes puramente artificiais», antes negócios jurídicos legítimos e genuínos, com real substância.
18.ª As situações que cabem no âmbito da CGAA são aquelas em que são utilizadas formas jurídicas insólitas, absolutamente impróprias, em que há uma total ausência de fins económicos ou, pelo menos, uma total divergência entre o fim económico logrado e o fim para o qual o negócio e/ou a norma mobilizados foram pensados.
19.ª Ora, no nosso caso, nada disso se passa: os meios (as formas jurídicas) foram totalmente consentâneos com os fins económicos para os quais foram criados.
20.ª Como é evidente, não existiu qualquer subversão do sistema jurídico: ele não foi vergado abusivamente à vontade fiscal ilícita do contribuinte, mas utilizado em estrito respeito pela sua intenção mais comum
21.ª Ao contrário do que defende a AT, o «encadeado» das operações não constitui nenhuma forma anómala, inusual ou artificiosa.
Quanto ao elemento «resultado» VANTAGENS FISCAIS QUE NÃO SERIAM ALCANÇADAS» — N.º 2 DO ART.° 38.° DA LGT):
22.ª O «esquema» que a AT reputa de abusivo envolve regimes fiscais que o legislador quis conceder às empresas e que, portanto, as incentivou a utilizar.
23.ª O caso dos autos não traduz, pois, uma situação artificiosa, mas, em parte, o recurso a uma ausência de tributação que o legislador nunca procurou evitar (aquilo a que, segundo referimos, a doutrina chama de «lacuna consciente de tributação,», aqui na modalidade de «economia de opção explicita»).
24.ª As situações deste tipo são o núcleo de liberdade de escolha mais seguro contra medidas anti-abuso: nelas não se identifica qualquer «desfuncionalização» de normas, que foram criadas, precisamente, para serem utilizadas em nome da poupança fiscal.
25.ª No entanto, no caso em apreço, a A………… vê-se confrontada com uma argumentação absolutamente inusitada e paradoxal: a de que o regime fiscal a destinar à operação abusiva não representava – segundo a AT – qualquer vantagem.
26.ª É que a AT entende e defende que o ganho de mais-valias obtido pelos accionistas da A………… SGPS estaria sempre sujeito ao regime geral e não já à exclusão de tributação constante da anterior al. a) do n.º 2 do art.° 10.º do Código do IRS.
27.ª A confessada ausência de «resultado» é – liminarmente – suficiente para afastar a «aplicabilidade» da CGAA no presente caso.
Quanto ao elemento «intelectual» («actos ou negócios JURÍDICOS ESSENCIAL OU PRINCIPALMENTE DIRIGIDOS [...] À OBTENÇÃO DE VANTAGENS FISCAIS» — N.º 2 DO ART.° 38.° DA LGT):
28.ª Ficou já claro que a finalidade da amortização de acções com redução do capital ao abrigo do art.º 347.º do CSC teve em mira a mesma finalidade que conduziu à consagração desse instrumento jurídico-societário, sendo essa finalidade a distribuição de bens aos accionistas, in casu da Recorrida.
29.ª Não foi, pois, para obter uma vantagem fiscal comparativa que os accionistas da A………… SGPS levaram a cabo essa redução (o que não é o mesmo que dizer que não tenha havido legítimas ponderações de índole fiscal), mas sim para que fosse libertado a seu favor capital próprio excessivo da Impugnante.
EM CONCLUSÃO:
30.ª Não se verificando a fattispecies do n.º 2 do art.° 38.º, não pode também ter lugar a consequência aí prevista («São ineficazes no âmbito tributário [...] efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas»).
Consequentemente,
31.ª As liquidações impugnadas são ilegais, por violação do disposto no n.º 2 do art.° 38.º da LGT e no art.° 63.º do CPPT.
32.ª A esta circunstância acresce ainda o imperativo de alegar a inconstitucionalidade da interpretação que é feita pela AT da CGAA no caso concreto,
33.ª A norma do n.º 2 do art.° 38.º da LGT foi aplicada, no caso concreto, com o sentido de que se trata de uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, assim conduzindo a uma sorte de aplicação analógica das normas tributárias.
34.ª Ora, interpretada com este sentido, a norma é materialmente inconstitucional porque viola o princípio constitucional da legalidade fiscal, em particular na sua dimensão de princípio da tipicidade, previsto no n.º 2 do art° 103.º, no art.º 104.º e na al. i) do n.º 1 do art.° 165.º da CRP.
Depois, porque:
35.ª A norma do n.º 2 do art.° 38.º da LGT foi também aplicada com o sentido de que se trata de uma norma que admite apenas uma via fiscalmente aceitável para cada objectivo económico-jurídico prosseguido pelo contribuinte, que é a fiscalmente mais onerosa (e, por conseguinte, restringe ou suprime a liberdade de utilização de direitos e prerrogativas de natureza fiscal conferidos pelas ordem jurídicas).
36.ª Interpretada com este sentido, a norma é materialmente inconstitucional porque viola o princípio constitucional da liberdade económica, previsto no art.° 61.º da CRP.
Por fim:
37.ª A leitura feita da CGAA pela AT representa, em consequência do exposto, uma clara ofensa do princípio constitucional da segurança jurídica, na sua expressão de princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito democrático consagrada no art.° 2.º da CRP, o que se invoca. (Sobre este princípio fundamental da Constituição fiscal, cfr. José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 5.ª ed., Coimbra Almedina, 2009, pp. 147 e seguintes).
38.ª Finalmente, uma vez que a ora Recorrida foi também notificada das liquidações de juros compensatórios no montante global de € 257.988,20 (já juntas aos autos como Doc. n.º 1 da PI) é curial reconhecer a sua ilegalidade.
39.ª Nos termos já explanados e face à correcção com a qual a Recorrida não pode concordar, e que deve ser anulada, porque ilegal, nos termos acima expostos, devem, em consequência, os juros compensatórios liquidados ser concomitantemente anulados.
40.ª Por outro lado, é consensualmente defendido quer pela jurisprudência, quer pela doutrina que, tendo em conta a redacção do n.º 1 do art.° 94.º do Código do IRC (actual art.° 102.°), segundo a qual «sempre que por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação [...] ou obtido reembolso indevido, acrescem ao montante do imposto os juros compensatórios à taxa e nos termos previstos no artigo 35.º da lei geral tributária», não basta o mero atraso na entrega da liquidação devida ou a obtenção de reembolso indevido para efeitos da exigência de juros compensatórios.
41.ª Com efeito, para que exista responsabilidade por juros compensatórios é necessário que se verifique uma conduta censurável, a título de dolo ou negligência, do contribuinte, da qual resulte — em termos de causalidade adequada — o retardamento da liquidação.
42.ª Assim sendo, não deverá ser imputada responsabilidade por juros compensatórios caso o atraso na liquidação ou a obtenção de reembolso indevido sejam provocados pela conduta do contribuinte e seja errónea a sua posição, mas ele tenha actuado de boa fé – o que, de acordo com o n.º 2 do artº 59,° da LGT, se deverá presumir – e o erro seja desculpável, como aqui sucede.
43.ª E, quanto ao mais, resulta claro que a posição da ora Recorrida é sustentada em divergências, válidas e fundamentadas, quer de facto, quer de direito, relativamente à análise feita pela AT.
44.ª Divergências às quais, como já foi acima largamente exposto, não pode a ora Recorrida renunciar e que fundamentando o seu comportamento têm como consequência que não possa ser formulado qualquer juízo de censurabilidade a título de dolo ou negligência contra a A………….
45.ª Tudo visto, é imperioso concluir que a liquidação de juros compensatórios também em crise é ilegal, por violação do disposto no n.º 1 do art° 94.º (actual art.º 102.º) do Código do IRC, pelo que deve ser anulada.
46.ª 46.ª E, assim, deve ser integralmente mantida a douta sentença proferida pelo TAF de Braga, com todas as consequências legais.
Termos em que o presente Recurso deve ser julgado improcedente, por não provado, e a douta Sentença recorrida integralmente mantida.


3 - O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

II – Fundamentação


1. Dos factos
A decisão recorrida deu como provada a seguinte factualidade concreta:
«1) A Impugnante desenvolve a sua actividade no âmbito do CAE 64202, consistindo o seu objecto social na gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indirecta do exercício da actividade, e está enquadrada, em sede de IRC, no regime geral de tributação (cfr. fls. 2 do Relatório de Inspecção Tributária (RIT), inserto a fls. 71 e ss. do processo administrativo apenso aos autos);
2) Esta sociedade, constituída em 2000, é a sociedade cimeira do Grupo A…………, com actividade quer em Portugal quer no estrangeiro;
3) No início de 2010, a Impugnante possuía capital próprio no montante de € 25.329.412,07, composto nos seguintes termos:
· € 55.000,00 de capital social, inteiramente realizado (50 000 acções com o valor nominal de €1,10 cada);
· €402.539,16 de reservas legais;
· € 16.527.875,72 de outras reservas (cfr. Anexo 2 do RIT inserto a fls. 19/20 do PA).
4) As acções pertencem a 3 accionistas individuais, a saber:
· B………… - titular de 21.420 acções, correspondentes a cerca de 42,84% do capital social;
· C………… - titular de 21.420 acções, correspondentes a 42,84% do capital social;
· D………… - titular de 7.160 acções, correspondentes a 14,32% do capital social.
5) Em 01.02.2010, o Conselho de Administração da sociedade Impugnante, aludindo à "desistência do mercado da América do Sul", deliberou propor aos accionistas uma redução do capital em 15 milhões de euros - cfr. fls. 210/212 do suporte físico dos autos.
6) No dia 22.02.2010, deliberaram os accionistas da sociedade Impugnante, por proposta do Conselho de Administração, a amortização com redução de capital, de 30.000 acções da sociedade no valor nominal de € 1,10, "com o objectivo de redução do capital social e libertação de excesso de capital" (cfr. Acta n.º 20 constante do Anexo 10 do RIT, inserto a fls. 42/49 do PA).
7) O preço de amortização estipulado foi de € 500,00 por cada acção, determinando-se a amortização imediata aquando da deliberação da assembleia bem como que a contrapartida seria paga de acordo com as disponibilidades financeiras da empresa no prazo máximo de dois anos (cfr. Acta n.º 20 constante do Anexo 10 do RIT).
8) Deliberou, ainda, a Assembleia-geral, por unanimidade, aumentar o capital social, que se cifrava em € 22.000,00 após a redução, para €55.000,00, correspondente ao valor antes da redução, por incorporação de reservas legais no montante de € 33.000,00 obtido mediante o aumento do valor nominal de € 1,10 para € 2,75 de cada uma das 20.000 acções que compunham o capital social (cfr. Acta n.º 20 constante do Anexo 10 do RIT).
9) No dia 7 de Maio de 2010 reuniu novamente a Assembleia-geral da sociedade impugnante, deliberando os accionistas, por proposta do Conselho de Administração, uma nova amortização com redução de capital, de 10.000 acções da sociedade no valor nominal de € 2,75, "com o objectivo de redução do capital social e libertação de excesso de capital" (cfr. Acta n.º 21 constante do Anexo 11 do RIT, inserto a fls. 50/53 do PA).
10) O preço de amortização estipulado foi de € 1.000,00 por cada acção, determinando-se a amortização imediata aquando da deliberação da assembleia bem como que a contrapartida seria paga de acordo com as disponibilidades financeiras da empresa no prazo máximo de três anos (cfr. Acta n.º 21 constante do Anexo 11 do RIT).
11) Deliberou, ainda, a Assembleia-geral, por unanimidade, aumentar o capital social, que se cifrava em € 27.500,00 após a redução, para €55.000,00, correspondente ao valor antes da redução, por incorporação de reservas legais no montante de € 27.500,00 obtido mediante o aumento do valor nominal de € 2,75 para € 5,50 de cada uma das 10.000 acções que compunham o capital social (cfr. Acta n.º 21 constante do Anexo 11 do RIT).
12) Em Julho de 2010 foram pagos € 5.000.000,00 aos accionistas relativos às amortizações das acções por redução de capital, de acordo com a percentagem de participação de cada um deles na sociedade, cabendo a B………… e C…………, que detêm, cada um, 42,84% do capital da sociedade, o montante de € 2.142.000,00 e a D…………, com 14,32% do capital social, o montante de € 716.000,00 (cfr. Anexo 12 do RIT, inserto a fls. 54/55 do PA).
13) Em Dezembro de 2010, em Agosto de 2011 e em Outubro de 2011 foram pagas aos accionistas da Impugnante outras parcelas relativas à operação de amortização de acções com redução de capital, nos montantes de, respectivamente, de € 2.500.000,00, de € 5.000.000,00, e 1.000.000,00, cifrando-se o montante total recebido pelos accionistas com a operação em causa, nos anos de 2010 e 2011, em € 13.500.000,00 (cfr. Anexo 16 do RIT, inserto a fls. 62/ 68 do PA).
14) No exercício de 2010, a A………… - Construção Imobiliária, SA, empresa detida pela Impugnante a 100%, distribuiu os resultados de 2008 e 2009, no valor de € 4.377.378,36 (cfr. Anexo 1 do RIT inserto a fls. 17/18 do PA);
15) Esse montante concorreu para o apuramento dum resultado líquido de € 6.990.171,08 para o exercício de 2010, tendo a Administração da Impugnante determinado que o mesmo fosse aplicado da seguinte forma:
· Reservas livres - € 4.419.043,07;
· Resultados Transitados - € 2.571.128,01 [cfr. Anexo 1 do RIT].
16) Decidindo, também, o Conselho de Administração utilizar o montante recebido a título de distribuição de resultados para restituição aos accionistas da dívida referente às operações de amortização de acções com redução de capital [cfr. Anexo 1 do RIT].
17) A Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Braga analisou a sequência de actos supra descrita no âmbito do procedimento inspectivo, interno e parcial, efectuado ao abrigo das ordens de serviço n.ºs OI201202736 e OI201202737, tendo desencadeado a abertura do procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT, com vista à aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no n° 2 artigo 38° da LGT (cfr. fls. 4/5 e fls 83/97 do PA).
18) A sociedade impugnante exerceu o direito de audição sobre a proposta de decisão de aplicação da disposição anti-abuso consagrada no n° 2 do artigo 38° da LGT nos termos constantes de fls. 213/215 do suporte físico dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
19) Por despacho do Director Geral da AT, datado de 04-04-2013 e exarado na Informação 34/2013 da Direcção de Serviços de Planeamento e Coordenação da Inspecção Tributária, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, foi autorizada a aplicação da cláusula geral anti-abuso (cfr. fls. 83/97 do PA).
20) Em 11.06.2013 foi elaborado o relatório final da acção inspectiva, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e no qual se concluiu que ao efectuar as operações que designou como amortização de acções com redução de capital, a Impugnante "não fez mais do que distribuir reservas - legais e livres - as quais provêm dos resultados líquidos, positivos, apurados ao longo dos anos da respectiva actividade", pelo que "deveriam ter sido efectuadas retenções na fonte sobre os rendimentos pagos aos accionistas da empresa nos seguintes montantes e datas, os quais não foram efectuados:

[Imagem aqui dada como reproduzida]

[cfr. fls. 71/82 do PA].
21) As correcções propostas no relatório de inspecção mereceram a concordância do Director de Finanças, em regime de substituição, vindo a originar os actos de liquidação de retenção na fonte de IRS e de juros compensatórios n° 2013 6410000555 (ano de 2010) e n° 20136410000556 (ano de 2011), com data de 18.06.2013, no montante global de €3.160.488,20
(cfr. fls. 187/188 do suporte físico dos autos).

Matéria de facto não provada
Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.»


2. Questões a decidir
A única questão que vem suscitada no âmbito do presente recurso é a de saber se existe ou não erro de julgamento do TAF de Braga ao considerar que a AT, na aplicação da CGAA ao caso dos autos, promoveu uma alteração da relação jurídica material, legalmente inadmissível.

3. De direito
A questão principal aqui em apreço prende-se com a interpretação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, na redacção que tinha à data dos factos, e a sua aplicação em articulação com o disposto no artigo 63.º do CPPT. Vejamos.

3.1. A Recorrida é uma SGPS constituída em 2000, com um capital social de €55.000,00.
Em 2010, a Recorrida encontrava-se numa situação de excesso de capital próprio resultante de uma acumulação de reservas (€402.539,16 de reservas legais e €16.527.875,72 de outras reservas) (ponto 3 da matéria de facto).
O Conselho de Administração decidiu promover a libertação desse excesso de capital em €15.000.000,00 (ponto 5 da matéria de facto) e, nesse seguimento, os accionistas deliberaram, em Fevereiro de 2010, uma amortização com redução de capital, seguida de um aumento do capital social por incorporação de reservas legais, de forma a que aquele capital social, que ficara reduzido a €22.000,00 após a operação anterior de amortização com redução, “voltasse” ao montante original de €55.000,00 (pontos 6 a 8 da matéria de facto).
Uma operação semelhante – de amortização com redução de capital, seguida de aumento do mesmo por incorporação de reservas legais – voltaria a ocorrer em Maio de 2010 (pontos 9 a 11 da matéria de facto).
Em resultado dessas operações de amortização com redução do capital foram efectuados pagamentos aos accionistas em Julho e Dezembro de 2010 e em Agosto e Outubro de 2011 (pontos 12 e 13 da matéria de facto); pagamentos que, por constituírem mais-valias isentas, não foram submetidos a tributação; leia-se, a retenção na fonte por parte da Recorrida.
Na sequência de um procedimento inspectivo, a AT desencadeou o procedimento do artigo 63.º com vista à aplicação da CGAA prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, o qual culminou com a decisão de promover as correcções das liquidações dos exercícios de 2010 e 2011 (uma parte dos pagamentos em conformidade com a decisão, segundo a qual as operações de amortização de acções com redução de capital constituíram um expediente para distribuir reservas provenientes de resultados líquidos da actividade da empresa que deveriam ter sido tributados como dividendos).
No essencial, decidiu a AT, no culminar daquele procedimento de aplicação da CGAA, que a operação que o sujeito passivo e aqui Recorrido configurou legalmente como amortização com redução de capital e que, enquanto tal, enquadrou tributariamente como variação patrimonial negativa, ex vi do artigo 24.º, n.º 1 al. c) do CIRC, deveria ter sido enquadrada como distribuição de lucros e, nessa medida, deveria ter dado lugar a retenção na fonte a título definitivo.

3.2. Na sentença recorrida considerou-se prejudicado o conhecimento da legalidade ou ilegalidade da decisão que aplicou a CGAA, ou seja, não se chega a apreciar o preenchimento ou não, in casu, dos pressupostos legais do artigo n.º 2 do artigo 38.º da LGT a respeito das concretas operações de amortização com redução do capital e da “substancia económica” das decisões que conduziram àquela situação e à realização dessa operação. A decisão recorrida versa apenas sobre o problema de saber se o imposto liquidado por efeito da aplicação da CGAA podia ser exigido à Recorrida com o fundamento de que, à luz das regras aplicáveis à distribuição de lucros, ela estava obrigada à retenção na fonte a título definitivo do imposto. E é também, e apenas, sobre esta questão que versa o presente recurso.

3.3. A questão era pertinente à data dos factos e à data em que a decisão judicial recorrida foi proferida atenta a falta de resposta na lei sobre esta questão, o que permitia que a respeito dela se esgrimissem duas teses.

3.3.1. A primeira – a que aqui é defendida pela AT – segundo a qual o imposto em falta podia exigir-se à Recorrida ex vi do disposto no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, na redacção que o preceito tinha à data dos factos, por considerar que, segundo aquela norma, a sociedade Recorrida era solidariamente responsável com os accionistas em relação ao pagamento do imposto em falta respeitante às operações “desconsideradas” como amortizações com redução de capital e “requalificadas” como distribuição de lucros, dividendos.

3.3.2. A segunda tese – que subjaz à sentença recorrida – rejeita aquela construção, embora não explique directamente a razão pela qual é de afastar in casu o regime do referido n.º 4 do artigo 103.º do CIRS e o regime de solidariedade tributária nele previsto.
Lembre-se que a norma em crise dispunha o seguinte “[T]ratando-se de rendimentos sujeitos a retenção que não tenham sido contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários, o substituto assume responsabilidade solidária pelo imposto não retido”.
A sentença recorrida limita-se a remeter para o teor de decisões arbitrais anteriores proferidas em casos semelhantes, nas quais se defendeu que o princípio da capacidade contributiva e o princípio da justiça material impedem que a liquidação seja exigida ao sujeito passivo que coloca os rendimentos à disposição daqueles que obtêm a vantagem tributária, porque tal redundaria numa distorção da relação jurídica material que está subjacente à aplicação da CGAA. A tese diz, no essencial, que, se por efeito da aplicação da CGAA, o imposto devido, que os accionistas não pagaram, pudesse ser exigido à sociedade Recorrida, isso significaria que se poderia exigir o imposto em falta a um sujeito que não era aquele que obteve a vantagem fiscal e isso violaria o disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT. Mas – repetimos – nunca enfrenta a questão da interpretação e aplicação ao caso do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, que havia sido invocado pela AT.

3.3.3. Quer isto dizer que, a nosso ver, a tese sufragada pela sentença não explica convenientemente a razão pela qual a AT não tem razão ao defender a aplicação de uma relação de solidariedade tributária entre a Recorrida e os sócios no âmbito da aplicação da CGAA, ex vi do disposto no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, que legitimaria, na sua versão, a exigência do imposto à Recorrida.

3.4. Lembre-se que a questão que subjaz à consulta foi expressamente “resolvida” pelo legislador com o aditamento ao artigo 38.º da LGT dos n.ºs 4 e 5 pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio. Aí se dispõe que:
«[…]
4 - Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2, nos casos em que da construção ou série de construções tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com carácter definitivo, ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, considera-se que a correspondente vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou actos que correspondam à substância ou realidade económica.

5 - Sem prejuízo do número anterior, quando o substituto tenha ou devesse ter conhecimento daquela construção ou série de construções, devem aplicar-se as regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária.
[…]».

Assim, desta nova redacção do artigo 38.º da LGT resulta que, em casos como o dos autos, em que da construção utilizada e que depois é desconsiderada por efeito da aplicação da CGAA tenha resultado a não aplicação de retenção na fonte com carácter definitivo, considera-se que a vantagem fiscal se produz na esfera do beneficiário do rendimento, i. e. dos accionistas, mas tal não invalida que, se o substituto (no caso a sociedade que deliberou a amortização com redução do capital) tivesse ou devesse ter conhecimento daquela construção, o mesmo não possa ser chamado a responder pela dívida tributária segundo as regras aplicáveis à responsabilidade em caso de substituição tributária, ou seja, segundo as regras do 28.º da LGT.
Ora, segundo o artigo 28.º da LGT, designadamente o n.º 3 que é o aplicável a este caso, nos casos de retenção na fonte a título definitivo, em que o substituto não retém na fonte as quantias a que por lei estaria obrigado, cabe a ele substituto a responsabilidade originária pelas quantias que deviam ter sido retidas e não foram e aos substituídos a responsabilidade subsidiária pela satisfação dessas quantias.
Quer isto dizer que à luz da redacção actual do artigo 38.º da LGT a solução adoptada pela AT nos autos é correcta, embora não pelos fundamentos por ela alegados.
É, porém, óbvio, que estas normas não se podem aplicar à resolução do caso dos autos. Mas é também evidente que importa saber se a solução que nelas se consagra — sobretudo a de que o substituto é o responsável originário pelas dívidas tributárias do beneficiário da construção que levou à aplicação da CGAA quando tivesse conhecimento daquela construção e sobre ele impendesse a obrigação de retenção na fonte com carácter definitivo — tem carácter inovador face às normas que vigoravam no ordenamento jurídico à data em que nos autos a AT decidiu aplicar a CGAA e exigir o imposto em falta à sociedade Recorrida; ou se, pelo contrário, esta já era a solução que resultaria da correcta hermenêutica das regras legais então em vigor, podendo dizer-se que o legislador se limitou a positivar esse sentido em letra de lei.

3.5. Comecemos por analisar se a tese da AT nos autos se baseou na interpretação legal que veio a obter consagração expressa em 2019. A resposta não é totalmente positiva, pois, como vimos, a AT baseou a sua decisão na alegada responsabilidade tributária solidária que, ao abrigo do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, existiria entre a sociedade e os sócios em relação à obrigação tributária resultante da aplicação da CGAA.
Ora, parece evidente que estamos perante questões jurídicas diferentes. Tanto assim é que a alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019, de 3 de Maio, que aditou os referidos n.ºs 4 e 5 ao artigo 38.º da LGT, não modificou a redacção do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS. Tal indicia, à luz do elemento sistemático da interpretação jurídica, que a responsabilidade solidária que se consagra no n.º 4 do artigo 103.º do CIRS não contende com a responsabilidade tributária nos casos de substituição fiscal quando venha a ter lugar uma “requalificação” de uma operação ou facto tributário em razão da aplicação da CGAA. Caso contrário, o legislador teria sentido a necessidade de alterar a redacção do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, precisamente para excepcionar os casos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 38.º da LGT. Em outras palavras, a modificação legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019 não foi no sentido de alterar uma previsão normativa expressa anterior que regulava aqueles factos sob o regime da responsabilidade tributária solidária para os passar a submeter ao regime de responsabilidade fiscal subsidiária.
Também o elemento literal da interpretação jurídica apontaria para a não aplicação desta responsabilidade solidária ao caso dos autos, essencialmente, por duas razões. Primeiro, porque a situação dos autos – a reconfiguração tributária de um facto ou operação por efeito da aplicação da CGAA – dificilmente se pode subsumir, de forma directa, na previsão daquele n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, pois é difícil dizer que o pagamento aos accionistas das quantias respeitantes às amortizações decorrentes da redução de capital consubstanciasse “rendimentos não contabilizados nem comunicados como tal aos respectivos beneficiários”. Isso seria pressupor que aquela operação resultara de uma deliberação da sociedade totalmente alheia à vontade dos sócios e não é isso que sucede no âmbito da aplicação da CGAA, em que se trata apenas de a AT avaliar a substancia económica de uma operação da qual resulta aforro fiscal para saber se ela se deve considerar legítima no plano tributário (por ter uma razão substantiva económica) ou se a sua finalidade exclusiva ou principal se esgotava naquele aforro fiscal, caso em que a mesma é desconsiderada e requalificada para efeitos tributários como a operação sujeita a imposto que foi “indevidamente omitida ou evitada”.
Segundo, porque ainda que se pretendesse dizer que para este efeito, à CGAA poderia aplicar-se, por interpretação extensiva, a regra do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, tal é vedado pelo n.º 4 do artigo 22.º da LGT, que estipula como regra a responsabilidade apenas subsidiária e reserva para a responsabilidade solidária os casos em que tal se encontre expressamente previsto na lei.
Julgamos, por isso, que o n.º 4 do artigo 103.º do CIRS não é aplicável ao caso e, nessa medida, não constitui nem podia constituir, à data, pressuposto legal para a exigibilidade do imposto devido à sociedade Recorrida.

3.6. Não obstante, é porém também certo que a solução que veio a ser consagrada – de responsabilizar de modo originário pela dívida tributária que resulta da aplicação da CGAA a sociedade que sabia da construção que vem a ser desconsiderada no plano tributário e estava obrigada à retenção na fonte, reservando para os accionistas o papel de responsáveis subsidiários pela dívida que resulte dessa obrigação tributária – acaba por ser, na prática, quase idêntica à que resulta do n.º 4 do artigo 103.º do CIRS, pois em ambas a sociedade responde (ou pode responder) em primeira linha pela obrigação fiscal que resulta da aplicação da CGAA.
Na verdade, a solução a que em 2019 se deu consagração expressa na lei, que reserva nestas hipóteses – em que não o imposto devido por efeito da aplicação da CGAA deveria ser pago por retenção na fonte a título definitivo – para os que obtêm a vantagem fiscal um papel de responder subsidiariamente pela dívida tributária, acaba até por parecer mais “desviada” da regra de que a obrigação fiscal que resulta da aplicação da CGAA só pode ser exigida ao sujeito que obteve a vantagem fiscal e não àquele que a proporcionou, do que a tese defendida pela AT, segundo a qual existiria uma situação de responsabilidade solidária entre os beneficiários e aquele que tinha proporcionado o benefício. Parece que sob o prisma da segurança jurídica e da protecção da confiança, a “solução jurídica” sufragada pela AT nos autos se aproxima mais da finalidade da CGAA quando ela pretende neutralizar a vantagem fiscal do beneficiário da mesma.

3.7. Resta-nos, então, saber se a solução adoptada pela AT, de liquidar e cobrar o imposto à sociedade Recorrida se pode manter apenas com base na aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT e no artigo 63.º do CPPT, na redacção que os artigos tinham à data dos factos.
Para isso é importante atentar no elemento histórico com o intuito de tentar retirar dele o “sentido” desta alteração legislativa.

Na exposição de motivos que acompanhou a proposta de lei parece querer dizer-se que as regras da responsabilidade em caso de substituição tributária prevalecem neste caso sobre a regra de que a obrigação tributária que emerge da aplicação da CGAA só pode opor-se ao beneficiário da vantagem fiscal:

«[…] Prevê-se ainda que, nos casos em que das construções ou séries de construções qualificáveis como abusiva tenham resultado a não aplicação de retenção na fonte com caráter definitivo ou uma redução do montante do imposto retido a título definitivo, deve-se considerar que a correspondente vantagem fiscal se produziu na esfera do beneficiário do rendimento, tendo em conta os negócios ou atos que correspondam à substância ou realidade económica em causa, sem prejuízo da aplicação das regras gerais de responsabilidade em caso de substituição tributária, nos casos em que o substituto tenha ou devesse ter conhecimento daquela construção ou série de construções […]». [destacados nossos]

Se compulsarmos o que se disse no debate na generalidade a respeito da Lei n.º 32/2019, parece resultar daí que o legislador, ao introduzir os n.ºs 4 e 5 no artigo 38.º da LGT e alterar a redacção do artigo 63.º do CPPT, mais do que clarificar o sentido do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, veio “introduzir novidades” no ordenamento jurídico e alterar efectivamente o que estava em vigor, por forma a garantir maior segurança jurídica, quer aos contribuintes e sujeitos passivos, quer a AT na aplicação da CGAA.
Pode ler-se no debate parlamentar na generalidade o seguinte:
«[…] Mas esta proposta de lei tem uma inovação muito importante, do ponto de vista do ordenamento jurídico interno: promovemos uma alteração à cláusula geral antiabuso, prevista na lei geral tributária. Isto é importante, porque nos permite criar mais certeza tanto para os contribuintes, como para a Autoridade Tributária. Trata-se de direcionar a cláusula antiabuso para aqueles que, efetivamente, são os beneficiários dos rendimentos e prever os casos estritos em que possa haver substituição tributária e, também, o processo inerente ao acionamento dessa cláusula antiabuso […]». [destacados nossos]

A isso acresce o facto de que só com a alteração do artigo 63.º do CPPT é que o procedimento de aplicação da CGAA passou a exigir previamente – para os casos em que se apliquem as regras de responsabilidade em caso de substituição tributária (o n.º 5 do artigo 38.º da LGT) – um procedimento de inspecção dirigido também ao beneficiário do rendimento (artigo 63.º, n.º 4, al. b) do CPPT). E é também a partir deste momento que se clarificam as garantias do substituto e do substituído nestas situações de aplicação da CGAA, com a previsão de reclamação graciosa prévia obrigatória, que pode ser apresentada por ambos, caso em que a decisão de ambos procedimentos é da competência do mesmo órgão periférico regional, podendo aqueles ser apensados.

3.7.1. Ora, os subsídios que podemos retirar do elemento histórico da interpretação jurídica, em vez de proporcionarem uma resposta directa à nossa questão, suscitam antes a necessidade esclarecer uma dúvida: i) a “novidade” que emerge da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 32/2019 para situações como a dos autos é a de que o substituto passa a responder pela dívida tributária quando o beneficiário da vantagem fiscal seja o substituído e desde que preencha os pressupostos no n.º 5 do artigo 38.º da LGT; ou devemos entender antes que ii) a “novidade” é a de que o beneficiário da vantagem fiscal, quando tenha o papel de substituído numa relação jurídica fiscal em que devesse ter tido lugar a retenção na fonte a título definitivo, passa também a poder responder subsidiariamente pela dívida tributária em relação às quantias que deveriam ter sido retidas pelo substituto e não o foram?

3.8. A resposta deve então buscar-se no elemento teleológico ou racional da interpretação jurídica. No essencial devemos perguntar se à luz da redacção do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, conjugado com o artigo 63.º do CPPT, à data dos factos, a liquidação do imposto resultante da aplicação da CGAA poderia ser dirigida à sociedade, por ter sido ela a deliberar e executar a construção que proporcionou a vantagem fiscal (como resulta do acto praticado pela AT) ou se, ao invés, aquela liquidação teria de ter como destinatários os sócios, por terem sido eles a beneficiar directamente da vantagem fiscal (tese que vem acolhida e proferida na sentença recorrida).
Ora, atentando exclusivamente no teor do artigo 63.º do CPPT na sua redacção à data dos factos concluímos, aí, como hoje, que o procedimento de aplicação da CGAA só podia ter como destinatário a sociedade, por ser ela e não os sócios, quem utiliza/pratica a construção que permite a obtenção da vantagem fiscal e, nessa medida, por ser ela, e não os sócios, quem, em sede procedimental, pode apresentar os argumentos que sustentem a racionalidade económica da construção utilizada e, com isso, afastar a aplicação da CGAA.
A prevalecer a tese vertida na sentença recorrida ter-se-ia de concluir que, na prática, era impossível aplicar a CGAA sempre que fosse utilizada por um sujeito passivo de IRC uma construção que proporcionasse uma vantagem fiscal da qual resultasse a “substituição” de uma operação em que devesse ter tido lugar uma retenção na fonte a título definitivo. É que de acordo com aquela tese, nessas situações, a aplicação da CGAA com desconsideração da referida construção “esbarraria” com esta perplexidade: i) no procedimento tributário do artigo 63.º do CPPT só o substituto poderia participar por ser ele o único que estaria em condições de “afastar” a aplicação da CGAA, justificando as razões económicas daquela construção; ii) mas a liquidação não poderia ter esta entidade como destinatária, por a vantagem tributária ter sido proporcionada a outro: os sócios. No absurdo, se a AT tivesse iniciado – como parece decorrer dessa decisão – o procedimento tributário do artigo 63.º do CPPT contra os sócios, a mesma tese defenderia que tal constituiria uma “distorção” da relação jurídica tributária por não terem sido os sócios a praticar o acto (a deliberação) que deu origem à construção que proporcionou a vantagem tributária que a CGAA desconsiderara.
Assim, concluímos que a tese sufragada pela sentença recorrida não se pode manter por repousar numa interpretação do n.º 2 do artigo 38.º da CGAA, conjugado com o artigo 63.º do CPPT, que, na prática, conduziria a uma impossibilidade de aplicação daquela norma. A interpretação que assegura a efectividade do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT é, assim, aquela que está subjacente à posição da AT, no sentido de que, sempre que a aplicação da CGAA resulte na desconsideração de uma construção que resulte na não aplicação de uma retenção na fonte a título definitivo, e pese embora o facto de a vantagem fiscal se produzir na esfera do beneficiário, é o substituto quem, em primeira linha, responde por essa obrigação tributária, sempre que a vantagem que o terceiro obtém resulte de uma operação praticada por ele, que levou à não retenção na fonte do imposto que agora (por efeito da desconsideração daquela construção) se pretende liquidar e cobrar.
Por aqui se percebe, como é afirmado nos trabalhos preparatórios da Lei n.º 32/2019, que sendo a regra do artigo 38.º, n.º 2 da LGT a de que a CGAA visa neutralizar financeiramente uma vantagem tributária indevida, e, por isso, o seu destinatário é quem dela beneficia (sendo, nestes casos, esses beneficiários os sócios), tal não significa que, o princípio da praticabilidade associado aos princípios da igualdade tributária e da racionalidade não imponham que nestes casos em que está subjacente à aplicação da CGAA uma relação jurídica de substituição fiscal total, com retenção na fonte a título definitivo, não devam também aplicar-se as regras da substituição tributária em geral. De acordo com estas regras, aquele que esteja legalmente obrigado à liquidação em substituição e não o faça, se tiver conhecimento (ou devesse ter) da construção que se substituiu a esta obrigação de retenção na fonte a título definitivo, será o responsável originário pelas quantias que devia ter retido e não reteve.
A novidade introduzida pela Lei n.º 32/2019, e que não pode aplicar-se no caso dos autos, é, pois, a de que também o substituído, no caso, os accionistas, podem ser chamados a responder por este crédito tributário, a título subsidiário e, por isso, passa também a ser exigida a sua participação no âmbito do procedimento de aplicação da CGAA, previsto e regulado no artigo 63.º do CPPT.
A exigência do imposto devido por efeito da CGAA à sociedade não é uma novidade é apenas a consagração em letra de lei (uma mera clarificação) do que, pelas razões antes esgrimidas, já se retirava das regras e dos princípios legais em vigor na redacção anterior dos preceitos legais em causa. De resto, a solução que aqui se adopta é um corolário da aplicação das regras da responsabilidade em caso de substituição tributária, em que não pode deixar de impender sobre aquele que legalmente está obrigado à retenção na fonte a título definitivo a obrigação de satisfazer, em primeira linha, o pagamento do imposto devido, que, por incumprimento da lei pela sua parte (não nos esqueçamos que estes são casos de liquidação tributária em substituição), o Estado deixou de arrecadar.
A única questão que se poderia suscitar era a de a referida obrigação, nestes casos, resultar do acto de aplicação da CGAA e não directamente da lei, pois o substituto, ao ter praticado (antes da aplicação da CGAA) uma operação diversa da que legalmente impunha aquela retenção na fonte, não poderia agora ser “responsabilizado por aquela omissão”. Mas também este argumento é afastado pelo facto de ser sempre exigível, por efeito da verificação dos pressupostos da correcta aplicação da CGAA, que no procedimento (decisão depois escrutinada em sede de impugnação judicial da liquidação ou do acto de correcção dos prejuízos fiscais) de aplicação da CGAA fique provado que o substituto “tinha conhecimento da construção”, o que significa, neste caso, que sabia (tinha o dever de saber) que as decisões de amortização com redução de capital poderiam, antes, ter dado lugar a distribuição de dividendos, cabendo-lhe explicar o fundamento económico da decisão que tomou.


III - Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e mandar baixar os autos para que o TAF aprecie o que ficou prejudicado, a saber, os restantes vícios imputados aos actos impugnados.


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Custas pelo Recorrido [nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi a alínea e), do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário].
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Lisboa, 12 de Maio de 2021. - Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (relatora) - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.