Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0266/19.2BELRS
Data do Acordão:10/14/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS
NULIDADE INSUPRÍVEL
Sumário:I - A "descrição sumária dos factos" imposta pelo artº.79, nº.1, al.b), do R.G.I.T., enquanto requisito da decisão administrativa de aplicação de coima, deve ser interpretada à luz das garantias do direito de defesa, constitucionalmente assegurado (artº.32, nº.10, da C.R.P.), sendo satisfeito quando a descrição factual que consta da decisão de aplicação de coima seja suficiente para permitir ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados e poder, com base nessa percepção, defender-se adequadamente.
II - Tal requisito da decisão administrativa de aplicação de coima deve ser examinado em correlação necessária com o tipo legal no qual se prevê a infracção concretamente imputada ao arguido, pelo que os factos que importa descrever sumariamente na decisão se reconduzem aos que integram o tipo-de-ilícito em causa.
III - O artº.114, nºs.1 e 2, do R.G.I.T., visa as situações de retenção na fonte, quer a título definitivo, quer por conta do imposto devido a final, a tal se reconduzindo o elemento objectivo do tipo respectivo.
IV - Se a nulidade, referente à parte administrativa do processo contraordenacional, é constatada em recurso judicial da decisão de aplicação de coima, não deve ser decidida a absolvição da instância, mas sim a remessa do processo à autoridade administrativa competente para eventual sanação da mesma e renovação do acto sancionatório. Por outras palavras, tais nulidades, na medida em que inquinam a acusação, ou seja, a decisão que aplica a coima, devem visualizar-se como excepções dilatórias que geram a anulação dos termos subsequentes do processo que do acto inquinado dependam absolutamente e consequente devolução dos autos à autoridade administrativa que aplicou a coima, com vista a eventual renovação do acto sancionatório.
(sumário da exclusiva responsabilidade do relator)
Nº Convencional:JSTA000P26476
Nº do Documento:SA2202010140266/19
Data de Entrada:06/29/2020
Recorrente:AT- AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............, LDA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: ACÓRDÃO
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RELATÓRIO
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O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA deduziu recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto decisão proferida pelo Mº. Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, exarada a fls.77 a 99 do presente processo de recurso de contra-ordenação, através da qual julgou verificada a nulidade insuprível prevista no artº.63, nº.1, al.d), "ex vi" do artº.79, nº.1, al.b), ambos do R.G.I.T., mais anulando os despachos de aplicação de coima e o processado subsequente, tudo no âmbito dos processos de contra-ordenação nºs.3336-2017/60000103618, 3336-2017/60000103596 e 3336-2017/60000103600, os quais correm seus termos no 6º. Serviço de Finanças de Lisboa.
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O recorrente termina as alegações do recurso (cfr.fls.101 a 104-verso do processo físico) formulando as seguintes Conclusões:
A-Visa o presente recurso reagir contra a douta Sentença que julgou procedente o recurso de contraordenação apresentado nos termos do art.80.º do RGIT, referente ao procedimento contraordenacional, de aplicação da coima à Recorrida nos processos de contraordenação n.º33362017060000103618, n.º33362017060000103596 e n.º 3336201706000010360, pela prática das infrações p. e p. nos artigos 19.º n.º1 e 2 do CIVA e art.114.º n.º2 e 26.º n.º4 do RGIT, através dos quais lhe foram aplicadas as coimas únicas de 30.463,76€, 50.227,22€ e 52.214,35€;
B-Atendendo a factualidade dada como provada na decisão ora em crise – factualidade essa que a Fazenda Pública não coloca em questão – é entendimento da Representação da Fazenda Pública que, com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, o Ilustre Tribunal “a quo” não poderia concluir pela verificação da nulidade da decisão de aplicação da coima, nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 63.º do RGIT;
C-Pelo que, ab initio, independentemente do respetivo juízo sobre a descrição sumária dos factos versus a indicação da norma punitiva, e o preenchimento do conceito de falta de requisitos legais da decisão de aplicação da coima decorrente do art.63.º n.º1 al. d) do RGIT, importa atentar que jamais estiveram prejudicadas as garantias de defesa da arguida, e sempre a respetiva tutela jurisdicional e a descoberta da verdade material;
D-Por um lado, as normas punitivas são as previstas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 114.° do RGIT, normas que definem o tipo legal de ilícito contraordenacional, configurando-se o n.º 5 como norma que permite proceder ao preenchimento do tipo legal já definido;
E-Sendo certo que o tipo legal objetivo resulta de forma inequívoca e absoluta do artigo 114°, n.º 1 e n.º 2, do RGIT, conformando-se tão só o conceito de prestação tributária ao prescrito em normas auxiliares, como o sejam as contidas nos n.ºs 3 e 5 do artigo 114.º do RGIT e a referida norma do artigo 11.º do RGIT;
F-Pelo que, verificando-se que da decisão de aplicação de coima consta a descrição sumária dos factos que se refere à dedução indevida do IVA em apreço, mostra-se devidamente assegurado o exercício do direito de defesa do arguido, pois que na posse de todos os elementos essenciais da infração;
G-Por outro lado, pese embora as dúvidas que possam existir sobre o n.º2 ou n.º5 do art.114.º do RGIT, é manifesto que a mesma contém uma descrição sumária dos factos de forma a possibilitar à arguida o exercício efetivo dos seus direitos de defesa, nomeadamente a punição em apreço, com perfeito conhecimento dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram, e em termos bastantes para que se considere como adequadamente cumprido o requisito a que alude a al. b) do n.º 1 do artigo 79.º do RGIT (descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas);
H-Conforme melhor se pode aferir através da leitura do requerimento inicial de recurso da contraordenação em questão, a Recorrente percebeu cabalmente o conteúdo da decisão proferida pela Administração Tributária, exercendo plenamente o seu direito de defesa – tanto na fase administrativa como na jurisdicional!
I-A Fazenda Pública entende que dever-se-á considerar que a solução mais justa e acertada ao caso concreto, assim como a que manifestamente permite uma melhor aplicação do direito, é a não manutenção na ordem jurídica da douta sentença, e por essa via pela decisão da inexistência da alegada nulidade da falta dos requisitos legais da decisão de aplicação da coima, nos termos do art.63.º n.º1 al.d) do RGIT.
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Não foram produzidas contra-alegações no âmbito da instância de recurso.
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O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no qual termina pugnando pelo não provimento do recurso (cfr.fls.108 do processo físico).
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Com dispensa de vistos legais, atenta a simplicidade das questões a dirimir, vêm os autos à conferência para deliberação.
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FUNDAMENTAÇÃO
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DE FACTO
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A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.79 a 88 do processo físico):
A-Em 31.10.2017 foi levantado à Recorrente o auto de notícia de fls. 3 e 4 (numeração do SITAF) dos autos, com o seguinte teor:




B-No dia 31.10.2017, com base no auto de notícia referido na alínea antecedente, foi instaurado à ora Recorrente o processo de contraordenação nº 33362017060000103618, no Serviço de Finanças de Lisboa 6 (cfr. fls. 2 dos autos – numeração do SITAF);
C-Notificada para o exercício do seu direito de defesa, a Recorrente exerceu-o em 28.05.2018 (cfr. fls. 8 a 11 dos autos - numeração do SITAF);
D-Em 21.06.2018 foi proferido despacho de fixação da coima única no montante de 30.463,76 € com base no auto de notícia mencionado em A), aí constando, designadamente, o seguinte:




(cfr.doc. de fls. 19 a 21 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

E-Em 31.10.2017 foi levantado à Recorrente o auto de notícia de fls. 40 a 42 dos autos (numeração do SITAF) dos autos, com o seguinte teor:








F-Notificada para o exercício do seu direito de defesa, a Recorrente exerceu-o em 28.05.2018 (cfr. fls. 47 a 50 dos autos - numeração do SITAF);
G-Em 21.06.2018 foi proferido despacho de fixação da coima única no montante de 50.227,22 € com base no auto de notícia mencionado em E), aí constando, designadamente, o seguinte:








(cfr. fls. 53 a 53 dos autos – numeração do SITAF);

H-Em 31.10.2017 foi levantado à Recorrente o auto de notícia de fls. 81 e 82 dos autos (numeração do SITAF) dos autos, com o seguinte teor:




I-Notificada para o exercício do seu direito de defesa, a Recorrente exerceu-o em 28.05.2018 (cfr. fls. 86 a 89 dos autos - numeração do SITAF);
J-Em 21.06.2018 foi proferido despacho de fixação da coima única no montante de 50.227,22 € com base no auto de notícia mencionado em H), aí constando, designadamente, o seguinte:






K-A Recorrente apresentou recurso contra as decisões de fixação das coimas em 26.07.2018.

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A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: "…Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão de mérito e que, por conseguinte, importe registar como não provados…".
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A fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: "…Quanto aos factos provados a convicção do Tribunal fundou-se no teor dos documentos constantes dos autos…".
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a decisão recorrida julgou verificada a nulidade insuprível prevista no artº.63, nº.1, al.d), "ex vi" do artº.79, nº.1, al.b), ambos do R.G.I.T., mais anulando o despacho de aplicação de coima proferido nos processos nºs.3336-2017/60000103618, 3336-2017/60000103596 e 3336-2017/60000103600 (cfr.alªs.B), E) e H) do probatório) e todos os termos subsequentes constantes dos identificados processos.
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Desde logo, diremos que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal "ad quem", ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artº.412, nº.1, do C.P.Penal, "ex vi" do artº.3, al.b), do R.G.I.T., e do artº.74, nº.4, do R.G.C.O.).
O recorrente dissente do julgado alegando, em sinopse e como supra se alude, que ao contrário do decidido pelo Tribunal "a quo", não se verifica qualquer nulidade dos despachos de aplicação de coima por violação do artº.63, nº.1, al.d), "ex vi" do artº.79, nº.1, al.b), ambos do R.G.I.T., pois que das mesmas decisões de aplicação de coima consta a descrição sumária dos factos, no que se refere à dedução indevida do I.V.A. em apreço, mostrando-se devidamente assegurado o exercício do direito de defesa do arguido, pois que na posse de todos os elementos essenciais da infracção. Que a sentença recorrida violou o disposto nos artºs.63, nº.1, al.d), e 79, nº.1, al.b), ambos do R.G.I.T. (cfr. conclusões A) a I) do recurso) com base em tal argumentação pretendendo concretizar um erro de julgamento de direito da decisão recorrida.
Analisemos se a decisão recorrida padece de tal pecha.
Diz-nos o artº.63, nº.1, al.d), do R.G.I.Tributárias, que constitui nulidade insuprível do processo de contra-ordenação fiscal, além do mais, a falta dos requisitos legais da decisão de aplicação de coima, nulidade esta de conhecimento oficioso, conforme estatui o nº.5, da citada norma legal (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 17/10/2018, rec.1004/17.0BEPRT; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 23/01/2019, rec.207/17.1BEVIS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 6/05/2020, rec.1070/18.0BEALM; Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág.444).
Por sua vez, o artº.79, nº.1, do mencionado diploma (na esteira do artº.58, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, aprovado pelo dec.lei 433/82, de 27/10), consagra os requisitos que a decisão administrativa de aplicação de coimas deve conter e que são:
1-A identificação do arguido e eventuais comparticipantes;
2-A descrição sumária dos factos e a indicação das normas violadas e punitivas;
3-A coima e sanções acessórias, com indicação dos elementos que contribuíram para a sua fixação;
4-A indicação de que vigora o princípio da proibição da "reformatio in pejus";
5-A indicação do destino das mercadorias apreendidas;
6-A condenação em custas.
Não havendo na fase decisória do processo contra-ordenacional que corre pelas autoridades administrativas a intervenção de qualquer outra entidade que não sejam o arguido e a entidade administrativa que aplica a coima, os requisitos previstos neste artigo para a decisão condenatória do processo contra-ordenacional devem ser entendidos como visando assegurar ao arguido a possibilidade de exercício efectivo dos seus direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão. Por isso, as exigências aqui feitas deverão considerar-se satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.
Reflexamente, a exigência de fundamentação da decisão, com indicação dos elementos que contribuíram para a fixação da coima, impõe à autoridade administrativa uma maior ponderação, ínsita na necessidade de racionalização do processo lógico e valorativo que conduziu a essa fixação, e assegura a transparência da actuação administrativa, para além de facilitar o controlo judicial, se a decisão for impugnada.
Porém, é a necessidade de conhecimento daqueles elementos para a defesa do arguido e o carácter de direito fundamental que o direito à defesa assume (cfr.artº.32, nº.10, da C.R.Portuguesa) que justificam que se faça derivar da sua falta uma nulidade insuprível, nos termos do artº.63, nº.1, al.d), do R.G.I.T. (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 17/10/2018, rec.1004/17.0BEPRT; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 23/01/2019, rec.207/17.1BEVIS; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 6/05/2020, rec.1070/18.0BEALM; Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág.517 e seg.; Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, nº.5, 3ª. edição, 2010, Almedina, pág.143 e 144).
Concretamente, quanto à "descrição sumária dos factos" referida acima, não impõe o artº.79, nº.1, al.b), do R.G.I.Tributárias, a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal, conteúdo que é exigido pelo artº.374, nº.2, do C.P.P., para as sentenças proferidas em processo criminal.
Trata-se, neste artº.79, nº.1, al.b), do R.G.I.T., de estabelecer um regime de menor solenidade para as decisões de aplicação de coimas comparativamente com as sentenças criminais, regime esse justificável pela menor gravidade das sanções contra-ordenacionais. O que exige esta norma, interpretada à luz das garantias do direito de defesa, constitucionalmente assegurado (artº.32, nº.10, da C.R.P.) é que a descrição factual que consta da decisão de aplicação de coima seja suficiente para permitir ao arguido aperceber-se dos factos que lhe são imputados e poder, com base nessa percepção, defender-se adequadamente. Tal requisito da decisão administrativa de aplicação de coima deve ser examinado em correlação necessária com o tipo legal no qual se prevê a infracção concretamente imputada ao arguido, pelo que os factos que importa descrever sumariamente na decisão se reconduzem aos que integram o tipo-de-ilícito em causa (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 27/6/2007, rec.353/07; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 17/10/2018, rec.1004/17.0BEPRT; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 6/05/2020, rec.1070/18.0BEALM; Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág. 518).
No caso concreto, conforme se retira da matéria de facto, é imputado ao arguido a prática, enquanto autor material, de contra-ordenações puníveis nos artºs.114, nº.2, e 26, nº.4, do R.G.I.T., consubstanciando a A. Fiscal tal conduta como falta de entrega da prestação tributária (cfr.als.A), D), E), G), H) e J), do probatório).
O citado artº.26, nº.4, do R.G.I.T., limita-se a consagrar uma elevação para o dobro dos limites mínimo e máximo das coimas previstos nos diversos tipos-de-ilícito contra-ordenacional quando tenham por sujeito infractor uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada (cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág.294 e seg.; João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, Direito Sancionatório Tributário, Anotações ao Regime Geral, Almedina, 2020, pág.263 e seg.).
Pelo que, a punibilidade da conduta imputada à sociedade ora recorrida no âmbito dos presentes autos se reconduz ao citado artº.114, nº.2, do R.G.I.T., na versão resultante da redacção da Lei 64-B/2011, de 30/12, a qual tinha a seguinte previsão e estatuição:
Artigo 114.º
(Falta de entrega da prestação tributária)

1-A não entrega, total ou parcial, pelo período até 90 dias, ou por período superior, desde que os factos não constituam crime, ao credor tributário, da prestação tributária deduzida nos termos da lei é punível com coima variável entre o valor da prestação em falta e o seu dobro, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
2-Se a conduta prevista no número anterior for imputável a título de negligência, e ainda que o período da não entrega ultrapasse os 90 dias, será aplicável coima variável entre 15% e metade do imposto em falta, sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
(…)
Por prestação tributária entende-se qualquer tributo que caiba cobrar à Administração Fiscal ou à Administração da S. Social (cfr. artº.11, al.a), do R.G.I.T.).
Com a utilização da expressão "prestação tributária deduzida" pretendeu o legislador aludir a todas as situações em que é apurada uma prestação tributária, isto é, uma quantia de imposto nos termos do artº.11, al.a), do R.G.I.T., pelo sujeito passivo e através de uma subtracção de uma quantia global, sendo que tal montante tem de ser entregue à A. Fiscal (cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág. 813 e 814; João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, Direito Sancionatório Tributário, Anotações ao Regime Geral, Almedina, 2020, pág.1069 e seg.).
Não existindo dolo, a falta de entrega da prestação nos termos da lei é susceptível de constituir a infracção por negligência, prevista no nº.2 deste artigo, sendo esta a espécie (ao nível do nexo de culpa - cfr. artº.24, nº.1, do R.G.I.T.) de contra-ordenação imputada ao arguido neste processo.
Ora, recorde-se que este normativo, o artº.114, nºs.1 e 2, do R.G.I.T., visa as situações de retenção na fonte, quer a título definitivo, quer por conta do imposto devido a final, a tal se reconduzindo o elemento objectivo do tipo respectivo (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 1/02/2017, rec.723/16; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/03/2017, rec.1406/16; Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág.812).
No caso "sub iudice", resulta da matéria de facto dada como provada que as infrações que vêm imputadas à sociedade ora recorrida consistem:
- Na dedução indevida de IVA, designadamente IVA deduzido nos campos das DP´s dos anos de 2013 e 2014, relativamente a Imobilizado, Existências, Outros Fornecimentos e Serviços e Regularizações a Favor do Sujeito Passivo (processos nºs 33362017060000103618, 33362017060000103596 e 33362017060000103600);
- Na falta de liquidação de IVA (processos nºs 33362017060000103596 e 33362017060000103600).
Por outro lado, nada consta nos presentes processos de contraordenação, em sede factual, no que respeita à entrega à sociedade arguida de quaisquer montantes de I.V.A., por parte dos seus clientes, revelando-se essencial a prova do efectivo recebimento dos montantes deste tributo, para o preenchimento típico da infracção tributária prevista no artº.114, nºs.1 e 2, do R.G.I.T.
Ou seja, existe uma manifesta incongruência entre o teor das descrições sumárias dos factos e a designação das normas punitivas, uma vez que no primeiro caso são indicados factos referentes à dedução indevida de I.V.A. e a falta de liquidação do mesmo tributo, ao passo que é indicada uma norma punitiva consubstanciada na alegada falta de entrega do I.V.A. já liquidado.
Na verdade, os comportamentos imputados à sociedade arguida e ora recorrida poderão subsumir-se na norma punitiva constante do artº.114, nº.5, al.a), do R.G.I.T. (falta de liquidação de I.V.A. e dedução indevida do mesmo imposto), mas não já, isoladamente, nos nºs.1 e 2 do mesmo preceito, sendo que aquela primeira norma não é indicada na decisão de aplicação da coima.
Esta realidade põe, claramente, em causa os direitos de defesa da sociedade recorrida, daí que as decisões da autoridade tributária que aplicaram as diversas coimas à arguida padeçam de nulidade, nos termos do estatuído nos artºs.63, nº.1, al.d), e 79, nº.1, al.b), do R.G.I.T. (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 16/05/2012, rec.160/12; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 1/02/2017, rec.723/16; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 8/03/2017, rec.1406/16).
Haverá, agora, que examinar qual o efeito da decretada nulidade insuprível da decisão de aplicação da coima exarada nos presentes autos.
A tal questão nos responde, em primeira linha, o artº.63, nº.3, do R.G.I.T.
Na sequência da declaração de uma nulidade insuprível, o processo não é necessariamente extinto, devendo ser praticados os actos necessários para que a mesma seja sanada. É isso que se infere do preceituado no artº.63, nº.3, do R.G.I.T., ao impor o aproveitamento das peças úteis ao apuramento dos factos, sendo este regime aplicável à generalidade das nulidades previstas no nº.1, do preceito, entre os quais se inclui a falta dos requisitos legais da decisão de aplicação das coimas. Assim, o efeito da declaração destas nulidades consiste na anulação dos termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente, devendo, porém, aproveitar-se as peças úteis ao apuramento dos factos, e não a absolvição da instância ou o arquivamento do processo contra-ordenacional. Os efeitos são estes mesmo que a declaração de nulidade ocorra na fase judicial do processo, após a apresentação do processo ao juiz, como evidencia a sistematização do R.G.I.T., dado que, da colocação sistemática do artº.63, deste diploma, se deve concluir que a mesma norma se aplica, tanto à fase administrativa, como à fase judicial do processo. Assim, se a nulidade, referente à parte administrativa do processo contraordenacional, é constatada em recurso judicial da decisão de aplicação de coima, não deve ser decidida a absolvição da instância, mas sim a remessa do processo à autoridade administrativa para eventual sanação da mesma e renovação do acto sancionatório. Por outras palavras, tais nulidades, na medida em que inquinam a acusação, ou seja, a decisão que aplica a coima, devem visualizar-se como excepções dilatórias que geram a anulação dos termos subsequentes do processo que do acto inquinado dependam absolutamente e consequente devolução dos autos à autoridade administrativa que aplicou a coima, com vista a eventual renovação do acto sancionatório (cfr.artº.52, do R.G.I.T.; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 25/11/2009, rec.938/09; ac.S.T.A.-2ª. Secção, 28/4/2010, rec.270/10; Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias anotado, 4ª. edição, 2010, Áreas Editora, pág.447; João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, Direito Sancionatório Tributário, Anotações ao Regime Geral, Almedina, 2020, pág.534).
Arrematando, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida, ao que se provirá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA que, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
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Sem custas (inexistência de norma legal que preveja a condenação da entidade recorrente em custas).
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 14 de Outubro de 2020. - Joaquim Manuel Charneca Condesso (relator) - Paulo José Rodrigues Antunes - Pedro Nuno Pinto Vergueiro.