Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0540/19.8BEBRG
Data do Acordão:01/13/2022
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:APRECIAÇÃO PRELIMINAR
REVISTA
QUESTÃO PROCESSUAL
PETIÇÃO INICIAL
INDEFERIMENTO LIMINAR
Sumário:Não é de admitir revista se o acórdão recorrido abordou as questões suscitadas nos autos com uma fundamentação consistente, coerente e plausível, sendo certo que as questões processuais abordadas no mesmo não revestem especial relevância ou complexidade jurídica superior à normal para as questões deste género.
Nº Convencional:JSTA000P28808
Nº do Documento:SA1202201130540/19
Data de Entrada:10/16/2021
Recorrente:A...............
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Formação de Apreciação Preliminar


Acordam no Supremo Tribunal Administrativo


1. Relatório
A…….., melhor identificado nos autos, vem interpor recurso de revista, nos termos do art. 150º do CPTA, do acórdão proferido pelo TCA Norte em 28.02.2020 que negou provimento ao recurso que interpusera do despacho de indeferimento liminar do TAF de Braga, de 09.04.2019, proferido na “acção administrativa comum” por si intentada contra o Ministério da Administração Interna, do Planeamento e das Infraestruturas, do Ambiente e do Mar.
Alega que as questões suscitadas na revista têm relevância jurídica impondo clarificação na aplicação do direito.

Não foram apresentadas contra-alegações.

2. Os Factos
Não foram fixados factos pelo acórdão recorrido.

3. O Direito
O art. 150º, nº 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de uma importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”.
Como resulta do próprio texto legal, e a jurisprudência deste STA tem repetidamente sublinhado, trata-se de um recurso excepcional, como, aliás, o legislador sublinhou na Exposição de Motivos das Propostas de Lei nºs 92/VIII e 93/VIII, considerando o preceito como uma “válvula de segurança do sistema”, que só deve ter lugar, naqueles precisos termos.

Na presente revista o Recorrente alega, em síntese, que na revista pretende ver discutidas três questões que o acórdão recorrido lhe suscita: i) o indeferimento liminar da petição inicial; ii) a excepção de ineptidão da petição inicial; e, iii) o despacho saneador.
Alega que o direito processual administrativo não precisa de se socorrer do processo civil, nomeadamente do disposto no art. 590º, nº 1 do CPC para resolver as referidas questões, dada a suficiência das normas dos arts. 80º, 87º, 88º e 89º do CPTA. Que a secretaria ao comunicar ao Juiz (na conclusão aberta) que tinha dúvidas quanto à configuração da acção, está a dizer que tem dúvidas se deve recusar ou não a petição inicial, nos termos do art. 80º do CPTA. E que tratando-se de um acto não previsto na lei, o tribunal devia notificar o autor da intenção da decisão a proferir e garantir-lhe o direito ao contraditório (art. 3º, nº3 do CPC).
Defende que não seria aplicável o disposto no art. 590º do CPC por se referir a gestão (do processo) posterior e subsequente aos articulados, e, por não estar prevista na lei processual administrativa, tendo esta mecanismos suficientes para regular as situações em causa. No caso o indeferimento da petição constitui a verificação da ineptidão da petição inicial prevista no art. 186º do CPC, mas esta está contemplada no art. 89º do CPTA, tendo como consequência a absolvição da instância.
Alega ainda que o acórdão não justifica de facto nem de direito a confirmação da sentença, quanto à improcedência definitiva da acção, violando os arts. 94º e 95º do CPTA.

Diremos, desde já, que não há fundamento para a admissão da revista.

Na presente acção intentada contra “Ministério da Administração Interna, do Planeamento e das Infraestruturas, do Ambiente e do Mar, representado pelo Ministério Público” peticionou-se o seguinte: “(…) deve a presente ação ser julgada procedente e provada e em consequência ser reconhecido que o autor deixou de ser proprietário do veículo automóvel de matrícula ………, desde 9 de Dezembro de 2009, e ser a matrícula cancelada”.
O Autor alegou, em síntese, que consta no Instituto de Mobilidade e dos Transportes, IP como titular do referido veículo, que adquiriu no ano de 2009, porém, em 09.12.2009, tal veículo esteve envolvido num acidente em virtude do qual ficou irremediavelmente danificado, tendo a Seguradora do veículo que embateu no seu automóvel assumido a culpa exclusiva do seu segurado no acidente, sendo que a mesma Seguradora solicitou-lhe os documentos do veículo, por carta de 18.12.2009.
Mais alegou que negociou a indemnização com a sociedade B…………. (……), SA (que representava a Seguradora) que reclamou para a sua representada o salvado, e que a partir da data do acidente deixou de possuir o veículo.

O TAF de Braga indeferiu a petição inicial por ter entendido que “o pedido formulado na presente acção é manifestamente improcedente, pelo que, com este fundamento, indefere-se a petição inicial, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 590º do Código de Processo Civil ex vi artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
Isto porque, face ao disposto no art. 119º do Código da Estrada, se verificava que não havia o Autor alegado ter agido em conformidade com as disposições daquele preceito e respectivos procedimentos, para o cancelamento da matrícula, o qual tem de ser requerido ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP, o que não fora sequer alegado.

O acórdão recorrido, face às questões suscitadas no recurso de apelação interposto pelo mesmo recorrente [e que delimitam o objecto do recurso – arts. 608º, º 2, 635º, nº 4, 637º, nº 2 e 639º, nº 1, todos do CPC, ex vi do art. 140º, nº 3 do CPTA], conheceu das mesmas.
Uma das questões era a seguinte (no que interessa para a presente revista): se a decisão recorrida, que indeferiu liminarmente a petição inicial, com fundamento em manifesta improcedência do pedido, é nula por violação do princípio do contraditório [foi ainda invocada a nulidade da decisão por omissão de pronúncia e o erro de julgamento por alegadamente o indeferimento liminar da petição inicial se ter devido à procedência da excepção de ilegitimidade passiva].
Sobre a necessidade de contraditório quando esteja em causa o indeferimento liminar o acórdão disse, nomeadamente, o seguinte: “Um dos casos que tem sido alvo de discussão é o de se saber se a observância do princípio do contraditório impõe que se ouça e demandante nos casos de indeferimento liminar da petição inicial sobre os fundamentos desse indeferimento.
Embora a resposta a essa questão não seja absolutamente pacífica, o certo é que a jurisprudência largamente maioritária, à qual se adere, é no sentido que no caso de indeferimento liminar da petição inicial não há lugar à audição prévia do demandante sobre o motivo do indeferimento, uma vez que essa audição não só contraria a teleologia do indeferimento liminar, como a audição daquele se encontra assegurada, ainda que de forma diferida no tempo, ao permitir-se que o mesmo, independentemente do valor da causa e da sucumbência (art. 629º, nº 3, al. c) do CPC), possa sempre interpor recurso do despacho de indeferimento liminar da petição inicial, onde lhe cabe expor os seus fundamentos de irresignação em relação à posição sufragada em 1ª instância.
A propósito de uma invocada nulidade da decisão de 1ª instância “por consubstanciar formalidade não prevista na lei”, o acórdão recorrido referiu, nomeadamente, o seguinte: “…, por regra, nas ações administrativas não há lugar a despacho liminar do juiz, incumbindo à secretaria promover os termos do processo até ao despacho pré-saneador, e só neste despacho é que o juiz terá de conhecer da regularidade do processo.
No entanto, esta tramitação oficiosa até ao pré-saneador, sofre ainda a exceção que se encontra enunciada no art.º 590º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi art.º 1º do CPTA.
Nos termos deste preceito o juiz pode determinar (normalmente após a chamada de atenção pela secretaria ou, tratando-se de execução, pelo agente de execução) que lhe seja apresentada a petição inicial.
Acresce que independentemente dessa determinação do juiz para que lhe seja apresentado o processo para despacho liminar, incumbindo à secretaria assegurar o expediente, a autuação e a regular tramitação dos processos pendentes, nos termos estabelecidos na respetiva lei de organização judiciária, em conformidade com a lei do processo e na dependência funcional do magistrado competente (n.º 1 do art. 157º do CPC), daqui deriva que os funcionários judiciais podem, perante justificadas dúvidas com que se vejam confrontados, abrir conclusão ao juiz; expondo-lhe as mesmas para que este determine o procedimento processual a seguir.
Precise-se que o que se acaba de dizer, para além de ser uma decorrência da dependência funcional dos funcionários judiciais perante o juiz, também é uma consequência do dever de gestão processual que impende sobre o último (art. 7.º-A do CPTA), por força do qual é sobre este que, independentemente dos ónus que impendem sobre as partes e os funcionários, impende o dever de dirigir ativamente o processo e providenciar pelo andamento célere deste. (…)
Acresce que uma vez apresentado o processo ao juiz, seja por determinação deste, seja por iniciativa da Secção, este deverá indeferir liminarmente petição inicial nos casos taxativamente enunciados no referido n.º 1 do art. 590º aplicável ex vi art.º 1.º do CPTA.
Dir-se-á que este comando satisfaz manifestas razões de economia e celeridade processual, pelo que configura, inclusivamente, um poder-dever do juiz.
Com efeito, em caso de manifesta improcedência do pedido ou de manifesta procedência de exceções dilatórias insupríveis e que são do conhecimento oficioso do juiz, seria um contra senso e gravemente lesivo para o sistema de justiça em geral e para as partes em particular, que aquele deixasse prosseguir uma ação que ab initio estaria votada ao fracasso.
Quanto ao ali alegado erro de direito, por na apelação o Recorrente haver invocado que o indeferimento liminar se fundara na verificação da excepção de ilegitimidade passiva, o acórdão salientou que o apelante lavrava em manifesto equívoco já que o indeferimento liminar da petição inicial assentara na manifesta improcedência do pedido nela formulado pelo apelante, conforme claramente resultava daquela decisão.

Na presente revista o Recorrente não põe verdadeiramente em causa o acórdão recorrido quanto ao que decidiu, não lhe imputando qualquer erro de julgamento. O que diz é, por um lado, que o despacho de indeferimento liminar, previsto no art. 590º, nº 1 do CPC não seria aplicável ao processo administrativo, face à previsão dos arts. 80º, 87º, 88º e 89º, todos do CPTA; e, por outro lado, que o indeferimento liminar previsto naquele preceito contemplaria (apenas) os casos de ineptidão da petição inicial e/ ou a verificação de excepções dilatórias.
Não lhe assiste, porém, razão.
Desde logo, o art. 80º do CPTA apenas se refere aos casos de recusa da petição pela secretaria. No entanto, tal preceito não exclui que a secretaria apresente o processo ao juiz, nas circunstâncias bem explanadas no acórdão recorrido, e que este verifique que está perante uma das circunstâncias previstas no art. 590º, nº 1 do CPC, aplicável ex vi do art. 1º do CPTA, que justifique o indeferimento liminar da petição inicial, como foi o caso.
O Recorrente parece agora pretender que esse indeferimento liminar, no caso em presença, se deveu a ineptidão da petição (na apelação indicara a excepção de ilegitimidade passiva da Entidade Demanda). Não é, no entanto, assim.
Como bem se vê da decisão de 1ª instância e claramente decorre igualmente do acórdão recorrido, o indeferimento liminar teve por fundamento a manifesta improcedência do pedido, fundamento este também contemplado no nº 1 do art. 590º do CPC.
Ora, tendo-se verificado um dos motivos (taxativos, como refere o acórdão recorrido) para o indeferimento liminar da petição inicial, não há que aplicar os preceitos do CPTA respeitantes ao despacho pré-saneador, saneador e às excepções (respectivamente arts. 87º, 88º e 89º) porque o processo não ultrapassou a fase dos articulados (cfr. art. 87º, nº 1 do CPTA) e não estava sequer em causa qualquer excepção.
E, por maioria de razão, não são aplicáveis ao caso as disposições dos arts. 94º e 95º do CPTA (aplicáveis à sentença), pelo que o acórdão recorrido não os pode ter violado, visto que não lhe cabia apreciar o mérito da acção. Como pelos fundamentos constantes do acórdão recorrido não se vislumbra qualquer violação do princípio do contraditório, previsto no art. 3º, nº 3 do CPC.
Assim, perante a aparente exactidão do acórdão recorrido, que abordou as questões suscitadas nos autos com uma fundamentação consistente, coerente e plausível, e, porque as questões processuais abordadas no mesmo não revestem especial relevância ou complexidade jurídica superior à normal para as questões deste género, não deve ser admitido o recurso que se mostra desde já inviável, não se justificando postergar a regra da excepcionalidade da revista.


4. Decisão
Pelo exposto, acordam em não admitir a revista.
Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 13 de Janeiro de 2022. – Teresa de Sousa (relatora) – Carlos Carvalho – José Veloso.